Crimes que assombraram Salvador continuam cercados por mistérios | A TARDE
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Crimes que assombraram Salvador continuam cercados por mistérios

Pergunta de um leitor sobre um crime ocorrido em 1942 levou à pesquisa sobre este e outros casos semelhantes

Publicado sábado, 18 de maio de 2024 às 00:00 h | Autor: Cleidiana Ramos
Na Ladeira de Santa Tereza foram deixados embrulhos com partes de um corpo humano masculino. Nunca se soube a identidade da vítima, o que impossibilitou saber a motivação e o autor
Na Ladeira de Santa Tereza foram deixados embrulhos com partes de um corpo humano masculino. Nunca se soube a identidade da vítima, o que impossibilitou saber a motivação e o autor -

O aposentado Arnóbio Baqueiro, 94 anos, ao ligar para agradecer pela edição desta coluna sobre a Festa da Ribeira, publicada em janeiro deste ano, perguntou se era possível encontrar no acervo do Cedoc informações sobre o assassinato do espanhol Dorindo Pinheiro Cal, ocorrido em 1942. Pelo relato de Seu Arnóbio, um clima semelhante aos livros e filmes de mistério tomou Salvador com a pergunta sobre a identidade do assassino. O assunto me fez lembrar de outro crime que assombrou a capital baiana: os embrulhos com partes de um corpo masculino que foram deixados na Ladeira de Santa Tereza no início da década de 1970.

“Como meu pai era espanhol e Dorindo também esse relato chamou a nossa atenção. Eu nunca esqueci e quando chega principalmente o início de ano, ao ver A TARDE, eu já me lembro do mistério sobre quem matou Dorindo Cal”, diz Arnóbio Baqueiro.

Dono da pastelaria Expresso Mundial, Dorindo Cal havia chegado ao Brasil em 1909.

“O sr. Dorindo Pinheiro Cal é um antigo comerciante, nascido em Linhares, província de Pontevedra, na Espanha. Com a idade de 14 anos chegou ele à nossa capital, procedente do porto de Vigo, a bordo do vapor Madalena, a 8 de setembro de 1909. Após alguns anos de trabalho, o sr. Cal estabeleceu-se em um armazém no Largo da Saúde, intitulado “Novo Continentti”, tendo, mais tarde, vendido aquela casa, transferindo-se para a ladeira da Praça, onde inaugurou o “Expresso Mundial”, hoje mudado para a rua do Aljube”. (A TARDE, 22/01/1942, capa).

O comerciante foi assassinado de forma brutal com sete golpes na cabeça. Ainda foi encontrado com vida. Ao longo dos dias seguintes sucederam-se as notícias de suspeitos, com seus nomes divulgados nas reportagens. Outros apareciam como testemunhas por ter presenciado algo ou alguém suspeito nas imediações do crime.

“Cerca de 11 horas da noite do crime, Maria de Lurdes, residente na ladeira do Pau da Bandeira, passava pela porta do "Expresso Mundial em demanda a uma festa intima. Falando a nossa reportagem, Maria disse que viu o sr. Cal sosinho encostado ao balcão do seu estabelecimento. No passeio, andando nervosamente de um lado para o outro, estava um individuo escuro, de estatura regular, vestido em uma roupa azul escura com a gola do palitó suspensa. Neste momento, vinha um bonde. O homem então virou-se para a parede até que o veiculo passasse o que impediu que a testemunha guardasse as suas feições. Continuando o caminho, Maria, ao passar próximo ao desconhecido, ouviu este. monologando, dizer: — É hoje! Tem que ser esta noite! Não poderei viver se não liquidar isto hoje! Maria assustou-se e acelerou o passo. Adiante, olhou para traz e viu o desconhecido penetrar na casa comercial do sr. Cal”. (A TARDE, 23/1/1942, capa).

  • Na Ladeira de Santa Tereza foram deixados embrulhos com partes de um corpo humano masculino. Nunca se soube a identidade da vítima, o que impossibilitou saber a motivação e o autor
    Na Ladeira de Santa Tereza foram deixados embrulhos com partes de um corpo humano masculino. Nunca se soube a identidade da vítima, o que impossibilitou saber a motivação e o autor |
  • Assassinato de Dorindo Pinheiro Cal ocorreu em 1942, nas imediaçoes da Rua Chile
    Assassinato de Dorindo Pinheiro Cal ocorreu em 1942, nas imediaçoes da Rua Chile |
  • Assassinato de Dorindo Pinheiro Cal ocorreu em 1942, nas imediaçoes da Rua Chile
    Assassinato de Dorindo Pinheiro Cal ocorreu em 1942, nas imediaçoes da Rua Chile |
  • Arnóbio Baqueiro, 94 anos, fez consulta que virou tema da coluna
    Arnóbio Baqueiro, 94 anos, fez consulta que virou tema da coluna |

Especulações

“Todo crime que não tem uma autoria definida cria fascínio porque estabelece uma aura de mistério. Todas as pessoas apelam para o imaginário e fantasiam. E a não solução é que dá margem a tudo isso”, analisa a jornalista Jaciara Santos. Especialista na cobertura da área de Segurança Pública, ela é diretora de Comunicação da Associação Bahiana de Imprensa (ABI).

Recentemente, a instituição lançou a campanha intitulada Protocolo Antifeminicídio – Guia de Boas Práticas para a Cobertura Jornalística. “O nosso objetivo é pedagógico. Trata-se de uma sugestão com o passo a passo da apuração e da redação. Não é uma imposição, mas é preciso alertar que muitas vezes a cobertura sobre a morte de mulheres acaba por torná-las vítimas depois da morte com espaço para o assassino e versões das quais ela não pode mais se defender”, diz Jaciara Santos.

A apuração em um campo tão complexo continua a apresentar desafios. Ainda no início dos anos 2000, Jaciara Santos diz que atuou em um campo em que as mulheres eram vistas com desconfiança. Agentes e delegados preferiam passar a informação apenas para os homens que estavam na apuração dos casos. “Mas eu não me intimidei e construí uma relação de confiança com muitas fontes na área de segurança, inclusive os que estavam no campo da apuração de crimes”, acrescenta Jaciara Santos.

E um dos princípios básicos da área de investigação de crimes, que se aprende logo no início, é sobre a necessidade de preservação do local em que ocorreu um homicídio, algo que foi desrespeitado à exaustão no caso Dorindo. Segundo os registros de A TARDE muita gente acessou o local da morte.

“Para se solucionar um crime, as primeiras horas são fundamentais. A preservação da cena é crucial, o que não aconteceu neste caso. Segundo os relatos em A TARDE as pessoas entravam e saíam, mexiam na cena e em uma época com poucos recursos científicos para auxiliar a investigação”, analisa a jornalista.

E ainda tinha o disse me disse típico de uma cidade com pouco mais de 290 mil habitantes como era a Salvador da época. O crime teve mais ingredientes de choque por ocorrer numa área central. No final de janeiro, duas semanas depois, as notícias ganharam um tom de desânimo em relação a uma solução para o caso.

“Mais um dia se passou sem que a polícia tenha uma trilha que a ajude a descobrir o matador de Doríndo Cal. Todas as diligencias tem sido até aqui infrutíferas. As pessoas que foram detidas como suspeítas ou para averiguações encontram-se já em liberdade. Nada ficou apurado que pudesse conduzir a polícia à descoberta do crime. Tudo ainda no terreiro das suposições. A polícia, em verdade, não sabe de que se tem de valer para elucidação do bárbaro assassínio. Todas as pistas dão erradas”. (A TARDE 31/01/1942, p.4).

Hipóteses como latrocínio foram descartadas logo de início. As suposições de vingança por Dorindo ter delatado um homem à polícia ou de ter se queixado de roubo por gente de confiança não se sustentaram. A reportagem do dia 31 chegou a levantar a possibilidade de que ele estivesse envolvido em algum romance tido como proibido, com uma mulher comprometida, por exemplo. Um ano depois, o assunto já havia sido reduzido ao registro de uma nota na edição de 20 de janeiro de 1943 afirmando que o caso ia ser reaberto. Mas, em anos posteriores, não apareceram novidades. O que voltou às páginas do jornal foram outros crimes.

“A história da morte de Dorindo Cal eu não conhecia, mas sim o do homicídio de Argeu Costa que foi chamado de O Caso do Livreiro e ocorreu na rua Padre José Anchieta, perto de onde Dorindo foi morto como constatei agora”, diz Jaciara Santos que escrevia para uma coluna especializada sobre crimes que ganharam repercussão.

O crime relatado pela jornalista foi tema de uma reportagem publicada na edição de 5 de janeiro de 1959. Segundo o texto de A TARDE, mesmo com várias pessoas presas e a tentativa de dificultar o trabalho dos jornalistas, não se chegou à autoria do assassinato a golpes de barra de ferro desferidos na cabeça do engenheiro, no interior da Livraria Científica, estabelecimento do qual ele era um dos proprietários.

Novo choque

Quase 30 anos depois das perguntas sobre o assassinato de Dorindo Cal, novamente o centro da cidade foi o cenário do horror: partes de um corpo foram encontradas enroladas em pacotes, na Ladeira de Santa Tereza.

O caso dos chamados “embrulhos da Ladeira de Santa Tereza” ou do “esquartejado” causaram pânico em uma era em que os jornais e as rádios se constituíam na principal fonte de informação da maioria das pessoas. “É um assunto pesado, mas a notícia chocou realmente todo mundo”, diz o aposentado Arnóbio Baqueiro.

Para escrever sobre este caso, a jornalista Jaciara Santos consultou diversas informações sobre o que virou mistério. Além da pergunta sobre o assassino, nunca se soube quem foi a vítima, pois não havia a cabeça e as impressões digitais foram suprimidas. Mas este caso teve também a hipótese de motivação por homofobia.

“Houve a suspeita de que pode ter sido homofobia, pois além do pênis ter sido deixado intacto havia algumas fissuras na região anal do corpo, o que trouxe essa hipótese”, diz Jaciara. Mas o que poderia ser pista, em sua avaliação, pode ter contribuído para a falta de interesse na solução do caso. “Cheguei a ouvir de um delegado que trabalhou na investigação que ele não se sentiu atraído pelo crime. Eu realmente não consigo entender como algo tão brutal não desperta o interesse de ter todas as perguntas respondidas. A impressão que fica é que a suspeita de que a vítima podia ser um homossexual foi a justificativa para o desinteresse de ir até o fim em um caso já difícil”, acrescenta.

O corpo repartido mobilizou pessoas que procuravam por parentes. Uma mulher chegou a ir até o Instituto Médico Legal (IML) para conferir se a cicatriz que estava em uma das partes do corpo era a mesma de seu irmão desaparecido e experimentou as agruras de se envolver em um tema que despertou tanto interesse: devido às notícias em detalhes divulgadas em uma rádio, ela teve que lidar com uma multidão de curiosos em frente à porta de sua casa. Um ano depois, o corpo foi sepultado, sem identificação, e o caso virou mais um dos muitos mistérios da capital baiana.

A boa memória de Arnóbio Baqueiro nos permitiu fazer uma investigação que um acervo como o do Cedoc A TARDE oferece e garantir uma qualificação analítica a partir da colaboração de uma especialista como Jaciara Santos. Além de contar as histórias dos crimes identificamos as formas de realização do trabalho policial e da cobertura jornalística dos períodos. É um alívio constatar que algumas práticas foram abandonadas como a de registar em uma reportagem os nomes e outros detalhes sobre pessoas cuja condição de suspeitas não resistiu a algumas perguntas. Há muito a melhorar, mas a exposição dos detalhes de um crime passou a ser tratada com mais cuidado por um número, ainda bem, significativo de jornalistas.

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*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia

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