A arte de vencer limites em busca de um mundo melhor
Tudo nela é fogo. O cigarro, o vestido vermelho, o decote. Até que ele aparece e os dois corpos se misturam em um movimento que une sensualidade e dança.
Depois do ápice do amor, ele a coloca na cadeira de rodas e a guia para fora do palco. Tudo não passa de uma encenação entre dois dançarinos, exceto o fato de ela, realmente, precisar da cadeira de rodas para se locomover.
Nesta segunda-feira, 21, quando se comemora o Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência, A TARDE ouviu a história de pessoas que superam os limites físicos e a falta de acessibilidade na cidade em busca da realização de sonhos.
E, se há alguém que se encaixa neste perfil, é Ninfa Cunha, 46, que protagoniza a coreografia Fogo (descrita no início do texto), ao lado do dançarino e coreógrafo Deo Carvalho.
Ela perdeu, parcialmente, as funções motoras dos membros superiores e inferiores em decorrência da síndrome Ataxia de Friederich (provocada pela união de primos carnais entre os bisavós). Mesmo com os movimentos comprometidos, Ninfa encontra energia para cumprir uma agenda ativa.
A rotina semanal inclui uma manhã inteira de aula no programa multidisciplinar de pós-graduação em Cultura e Sociedade, na Universidade Federal da Bahia (Ufba); ensaios de dança; realização de palestras e oficinas; atendimento ao público em redes sociais e apresentações artísticas.
Há 16 anos, a dança entrou na vida dela como terapia para o diabetes, no Hospital Sarah. "Eu pensei: por que não expandir isso para fora do hospital? Foi aí que descobri que a minha missão é dançar", diz ela, que coordena o projeto Perspectivas em Movimento, que, desde 2009, oferece formação artística para deficientes.
Com um riso largo no rosto, Ninfa diz amar o trabalho: "Às vezes, eu me sinto cansada, mas não o trocaria por nada". Quando há alguma pendência, como pagamento e atualização de documentos, ela faz questão de resolver pessoalmente.
"Um dia, recebi a ligação de um gerente, pedindo que eu mandasse alguém para digitar a minha senha e receber dinheiro por um trabalho que fiz, pois o local não era acessível para mim. Eu disse: se vire. Sou cliente do seu banco e mereço condições mínimas de acessibilidade. Entrei com uma ação civil pública e, hoje, já há rampa e piso tátil na agência da Graça", conta.
A atuação artística de Ninfa e de outras 99 pessoas com deficiência poderá ser conferida no espetáculo Caymmi e a Poética dos Sentidos, programado para sexta-feira, sábado e domingo próximos, no Espaço Xisto Bahia, nos Barris.
A apresentação faz parte da I Semana Cultural Acessível, realizada pelo Espaço Xisto Bahia em parceria com o Perspectivas em Movimento (veja a programação completa abaixo).
Missão bonita
Foi no último dia 6 de agosto que a aposentadoria bateu à porta do professor de matemática Olivaldo Passos, 65, mas ele mandou aguardar.
Para o deficiente visual, não é nada fácil se deslocar sozinho de segunda a sexta- -feira, de Pernambués para o Instituto dos Cegos, no Barbalho. Mas o prazer de ensinar o motiva a querer ficar um pouco mais.
"Nós temos uma missão bonita, a de formar cidadãos. O reconhecimento dos alunos é o nosso grande salário", opina.
Apesar da paixão pelo ofício, Olivaldo critica as armadilhas de Salvador: "A cidade está um canteiro de obras. No meu bairro, os passeios são cheios de desníveis e buracos. Além disso, a administração pública não nos consultou sobre a implantação do piso tátil. Nenhum cego consegue andar um quilômetro sobre aquilo, porque machuca o pé. A iniciativa é louvável, mas eu preferia andar sobre um passeio padronizado com o meio-fio alto", comenta.