Cléo Martins | A TARDE
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Cléo Martins

Publicado sexta-feira, 24 de fevereiro de 2006 às 00:00 h | Autor: JORNAL A TARDE

Tá caindo fulô, tá caindo fulô...



Cléo Martins


 

Coisa bela é a celebração de vida boa no aiê, a terra.



Nada tão doce quanto festa de aniversário das grandes lideranças do candomblé. Encontram-se amigos(as) queridos(as) e o papo é colocado em ordem.



Nada mais sacudido do que cantar, dançar, comer, sentir-se em movimento de vida plena, minha gente!



Por falar nisso, o Carnaval está aí e as águas vão rolar. Alegria pura.



Atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu, não é mesmo? Mas a gente tem que ir devagar para que no próximo ano possa sair atrás do trio elétrico.



Domingo passado, 19 de fevereiro, dia dos aniversários de Mirella, a minha sobrinha, filha de Regina de Iemanjá, e de Ebame Cidália de Iroco, do Gantois, a querida mestra de todos nós, pude rever os amigos nas festividades dos 80 anos da sacerdotisa decana da Massaranduba: América do Carmo Santana Cabral, a Mãe América.



As comemorações tiveram início pela missa na Igreja Matriz do bairro. O templo católico romano estava repleto de sacerdotes e sacerdotisas da Religião dos Orixás, Voduns e Inquices, o que coroa o sonho de homens e mulheres de boa vontade imersos na Fonte Suprema de amor.



Tantos amigos. Equedes Teresinha e Sinhá, da Casa Branca, Equede Nirinha, do Alaketu, o Babalorixá e jornalista Anselmo (também aniversariante), Rita Virgínia do Opô Afonjá...



Pessoas de diferentes credos unidas pela sede de paz. É o que nos dá força para seguirmos em frente.



Lembro-me das palavras de São Paulo, o Apóstolo, em sua belíssima missiva escrita da prisão, a Carta aos Filipenses; meu texto paulino predileto, porque de todos a mais carinhosa: “Tudo posso naquele que me fortalece” (Fl 4,13).



A missa em homenagem às oito décadas de existência de Mãe América, filha de Iansã e Ogum – minha irmã duas vezes – foi momento particular de charme e ternura.



A veneranda ialorixá do Ilê Axé Ogunjá Tiluaiê Orubaí, próximo da igreja católica, trouxe ao mundo muitos filhos e filhas. Tanto biológicos quanto nascidos por força do enorme coração, a exemplo de sua Sandra, e dos muitos omorixás espalhados pelo Brasil.



Mãe América deu à luz Américo, Lacerda, Nancy, José, Antonio, o caçula, e maié do terreiro.

 Teve duas barrigas de gêmeos: Bárbara e Balbino, Clóvis e Carlos.



Balbino, filho de Ogum e babalaxé da comunidade, seguiu os passos maternos. Na condição de sacerdote experiente, zela dos Orixás da família e de todos que batem às portas da Casa da Massaranduba.



Clóvis, padre jesuíta que não esconde ser filho de Oxum, desde cedo respondeu à vocação sacerdotal na histórica Companhia de Jesus. No dia do aniversário de sua mãe, durante a Celebração Eucarística por ele presidida, proclamou que também festejava 28 anos de profissão religiosa.



Mãe América é mulher reconhecida pela própria vocação ecumênica. Não é de admirar que tenha filhos sacerdotes de tradições diferentes cuja síntese é o amor pela herança africana, reconhecidamente acalentada, defendida e preservada por padre Clóvis, o jesuíta, por Balbino, Antonio e Raimundo, sacerdotes da religião dos Orixás.



Raimundo de Obaluaê é babalorixá fundador de seu próprio terreiro. A exemplo de seu irmão mais velho, Balbino, foi iniciado na Corcunda de Iaiá, a lendário Casa jeje – savalú.



Mãe América, a ialorixá mais velha da Massaranduba, cujo templo conta cinco décadas de existência, foi iniciada aos 13 anos por Adervirá de Mutá: descendente de antigos angoleiros da Bahia.



A filha de Iansã, prosseguiu a trilhar seu caminho religioso amparada pelo povo da Corcunda de Iaiá, sob a liderança de Mãe Tança de Nanã, Pai Vitorino, Pedrinho, Mariazinha e tantos outros e outras retornados ao orum.



Depois da missa, fomos ao templo onde os atabaques aguardavam a imponente ialorixá.



Entoaram-se cânticos religiosos. Pétalas de rosas vermelhas e brancas homenagearam a veterana filha de Oiá/Iansã, elegante em seu tailleur amarelo claro.



Feijoada. Diversos assados. Saladas. Acarajés e abarás: os melhores abarás que eu, amante do acarajé, comi em minha vida. Havia frango na massa. Supimpa! Do céu. De querer e berrar por mais.



Cerveja. Muita, muita cerveja na tarde quente feito a terra ancestral. O céu, de tão azul, exigia óculos de lentes escuras.



O barracão do terreiro, com perfume de incensos, lembrou-me Uidá, no Benim.



Perguntei ao amigo Balbino de Ogum – casa cheia – o que achava de sua mãe.



O sacerdote respondeu-me na hora.



– Sacerdotisa, guerreira, benevolente, severa, mulher do povo, dotada de uma espiritualidade ecumênica.



Lembrei-me do cântico de glória da missa,

– “Tá caindo fulô

 “tá caindo fulô

 Lá no céu, cá na terra

 “tá caindo fulô...”

 Umedeceram-me os olhos.

 Que flores caiam agora, amanhã e por muitos e muitos anos, fortalecendo a esperança.



Cléo Martins

([email protected]), advogada e escritora, é a Agbeni Xangô do Axé Opô Afonjá e Iyagan.

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