Cléo Martins
Tá caindo fulô, tá caindo fulô...
Cléo Martins
Coisa bela é a celebração de vida boa no aiê, a terra.
Nada tão doce quanto festa de aniversário das grandes lideranças do candomblé. Encontram-se amigos(as) queridos(as) e o papo é colocado em ordem.
Nada mais sacudido do que cantar, dançar, comer, sentir-se em movimento de vida plena, minha gente!
Por falar nisso, o Carnaval está aí e as águas vão rolar. Alegria pura.
Atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu, não é mesmo? Mas a gente tem que ir devagar para que no próximo ano possa sair atrás do trio elétrico.
Domingo passado, 19 de fevereiro, dia dos aniversários de Mirella, a minha sobrinha, filha de Regina de Iemanjá, e de Ebame Cidália de Iroco, do Gantois, a querida mestra de todos nós, pude rever os amigos nas festividades dos 80 anos da sacerdotisa decana da Massaranduba: América do Carmo Santana Cabral, a Mãe América.
As comemorações tiveram início pela missa na Igreja Matriz do bairro. O templo católico romano estava repleto de sacerdotes e sacerdotisas da Religião dos Orixás, Voduns e Inquices, o que coroa o sonho de homens e mulheres de boa vontade imersos na Fonte Suprema de amor.
Tantos amigos. Equedes Teresinha e Sinhá, da Casa Branca, Equede Nirinha, do Alaketu, o Babalorixá e jornalista Anselmo (também aniversariante), Rita Virgínia do Opô Afonjá...
Pessoas de diferentes credos unidas pela sede de paz. É o que nos dá força para seguirmos em frente.
Lembro-me das palavras de São Paulo, o Apóstolo, em sua belíssima missiva escrita da prisão, a Carta aos Filipenses; meu texto paulino predileto, porque de todos a mais carinhosa: Tudo posso naquele que me fortalece (Fl 4,13).
A missa em homenagem às oito décadas de existência de Mãe América, filha de Iansã e Ogum minha irmã duas vezes foi momento particular de charme e ternura.
A veneranda ialorixá do Ilê Axé Ogunjá Tiluaiê Orubaí, próximo da igreja católica, trouxe ao mundo muitos filhos e filhas. Tanto biológicos quanto nascidos por força do enorme coração, a exemplo de sua Sandra, e dos muitos omorixás espalhados pelo Brasil.
Mãe América deu à luz Américo, Lacerda, Nancy, José, Antonio, o caçula, e maié do terreiro.
Teve duas barrigas de gêmeos: Bárbara e Balbino, Clóvis e Carlos.
Balbino, filho de Ogum e babalaxé da comunidade, seguiu os passos maternos. Na condição de sacerdote experiente, zela dos Orixás da família e de todos que batem às portas da Casa da Massaranduba.
Clóvis, padre jesuíta que não esconde ser filho de Oxum, desde cedo respondeu à vocação sacerdotal na histórica Companhia de Jesus. No dia do aniversário de sua mãe, durante a Celebração Eucarística por ele presidida, proclamou que também festejava 28 anos de profissão religiosa.
Mãe América é mulher reconhecida pela própria vocação ecumênica. Não é de admirar que tenha filhos sacerdotes de tradições diferentes cuja síntese é o amor pela herança africana, reconhecidamente acalentada, defendida e preservada por padre Clóvis, o jesuíta, por Balbino, Antonio e Raimundo, sacerdotes da religião dos Orixás.
Raimundo de Obaluaê é babalorixá fundador de seu próprio terreiro. A exemplo de seu irmão mais velho, Balbino, foi iniciado na Corcunda de Iaiá, a lendário Casa jeje savalú.
Mãe América, a ialorixá mais velha da Massaranduba, cujo templo conta cinco décadas de existência, foi iniciada aos 13 anos por Adervirá de Mutá: descendente de antigos angoleiros da Bahia.
A filha de Iansã, prosseguiu a trilhar seu caminho religioso amparada pelo povo da Corcunda de Iaiá, sob a liderança de Mãe Tança de Nanã, Pai Vitorino, Pedrinho, Mariazinha e tantos outros e outras retornados ao orum.
Depois da missa, fomos ao templo onde os atabaques aguardavam a imponente ialorixá.
Entoaram-se cânticos religiosos. Pétalas de rosas vermelhas e brancas homenagearam a veterana filha de Oiá/Iansã, elegante em seu tailleur amarelo claro.
Feijoada. Diversos assados. Saladas. Acarajés e abarás: os melhores abarás que eu, amante do acarajé, comi em minha vida. Havia frango na massa. Supimpa! Do céu. De querer e berrar por mais.
Cerveja. Muita, muita cerveja na tarde quente feito a terra ancestral. O céu, de tão azul, exigia óculos de lentes escuras.
O barracão do terreiro, com perfume de incensos, lembrou-me Uidá, no Benim.
Perguntei ao amigo Balbino de Ogum casa cheia o que achava de sua mãe.
O sacerdote respondeu-me na hora.
Sacerdotisa, guerreira, benevolente, severa, mulher do povo, dotada de uma espiritualidade ecumênica.
Lembrei-me do cântico de glória da missa,
Tá caindo fulô
tá caindo fulô
Lá no céu, cá na terra
tá caindo fulô...
Umedeceram-me os olhos.
Que flores caiam agora, amanhã e por muitos e muitos anos, fortalecendo a esperança.
Cléo Martins
([email protected]), advogada e escritora, é a Agbeni Xangô do Axé Opô Afonjá e Iyagan.