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"A Bahia como nação está relacionada ao processo do 2 de Julho", diz antropólogo

Publicado sexta-feira, 02 de julho de 2021 às 06:06 h | Autor: Cleidiana Ramos
Jocélio Teles, professor titular de Antropologia da Ufba | Foto: Arquivo pessoal
Jocélio Teles, professor titular de Antropologia da Ufba | Foto: Arquivo pessoal -

Em 1923, Salvador festejou de uma forma apoteótica o centenário da Independência do Brasil na Bahia. Durante dez dias, A TARDE deu um espaço privilegiado para a cobertura da comemoração. A importância do registro cotidiano de grandes e pequenos acontecimentos faz dos acervos de jornais espaços importantes para o resgate da memória e pesquisa continuada. No Portal 2 de Julho (portal2dejulho.ffch.ufba.br), por exemplo, reportagens integram o conjunto de documentos disponibilizados no projeto que foi coordenado por Jocélio Teles dos Santos, 62 anos, doutor em antropologia e professor titular da Universidade Federal da Bahia (Ufba). Lançado no ano passado, de forma virtual devido à pandemia de coronavírus, o projeto contou com a doutora em história e professora da Ufba Wlamyra Albuquerque como coordenadora. A ação tem o objetivo, de acordo com Santos, de estimular a compreensão sobre a comemoração do 2 de Julho como um fenômeno mais amplo e para além da festa. “É provável que esse sentimento de que a Bahia é uma nação, tão propagado a partir dos anos 60 do século XX por intelectuais, governos municipais e estaduais, artistas, mídia e imprensa, seja a coroação de um processo iniciado cem anos antes, via o 2 de Julho”, diz Santos, que é autor de livros como O Dono da Terra – o Caboclo nos candomblés da Bahia e O poder da cultura e a cultura no poder. Estas várias perspectivas da celebração são apresentadas pelo antropólogo e professor nesta entrevista à jornalista e doutora em antropologia Cleidiana Ramos.

Como surgiu a ideia do desenvolvimento do Portal 2 de Julho?

Desde o século XIX, nós baianos damos muita importância à comemoração da Independência da Bahia, que carinhosamente chamamos de O 2 de Julho. Vários historiadores já escreveram sobre o processo da Independência e o desfile comemorativo. E o que fizemos? Criamos o Portal 2 de Julho (portal2dejulho.ffch.ufba.br) para disponibilizar documentos, fotos, vídeos, matérias de jornais, artigos, palestras e referências bibliográficas que estimulem estudantes do sistema público e privado de ensino, pesquisadores e o público em geral a compreenderem esse importante fenômeno na história da Bahia e do país. O portal é um repertório de fontes de pesquisa, com a intenção e o desejo do exercício da interdisciplinaridade entre o conhecimento histórico e antropológico.

Qual foi a trajetória de desenvolvimento desse projeto e equipe que o produziu?

O projeto foi iniciado em 2018, coordenado por mim, e contando com a coordenação de Wlamyra Albuquerque, professora do departamento de História da Ufba. Tivemos o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Cnpq) para a constituição do portal e das bolsas-pesquisa de Mona Lisa Nunes, Marcele Moreira, Ingrid Leoni e Renê Salomão, que fizeram o levantamento e a catalogação das matérias de jornais do século XIX a XXI, das atas, poesias e manuscritos na Biblioteca Nacional, Biblioteca Central do Estado da Bahia, Arquivo Público do Estado da Bahia, Centro de Digitalização-Cedig, Fundação Pedro Calmon, Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Museu de Arte da Bahia, e na Biblioteca Virtual Consuelo Pondé. Fotografias foram disponibilizadas pelo Arquivo Histórico Municipal de Salvador/Secult. Acrescentamos vídeos disponibilizados online sobre o desfile. No cortejo de 2019, editamos um vídeo sobre a relação dos adeptos de terreiros de candomblé com os carros emblemáticos do Caboclo e da Cabocla, um fenômeno secular no espaço público. Registramos também a participação das balizas LGBTQIA+ no desfile das bandas de colégios, que ocorre no período da tarde. Esses vídeos foram produzidos por você, Cláudio Rodolfo e Susana Rebouças. O desenvolvimento do sistema web Portal 2 de Julho foi realizado por Luciano Nascimento.

O 2 de Julho é uma festa cívica, um grande protesto, ou isso e outras muitas coisas misturadas?

Usando o delicioso baianês: é tudo isso e muito mais. Não são recentes os múltiplos significados da festa e sobre a festa da nossa Independência. Costumo salientar que o 2 de Julho, desde a sua primeira comemoração, em 1824, constituiu-se em um rito de disputa do espaço público. A narrativa que se cristalizou sobre a origem do desfile é um exemplo dessa disputa. Anualmente, reiteramos o caráter popular do desfile. Destacamos o lugar da Bahia na Independência do Brasil, e a resistência no Recôncavo baiano e na Ilha de Itaparica. Basta observar as falas de representantes das instituições oficiais, em diferentes conjunturas políticas, e o que dizem os jornais e as mais variadas mídias. O que fala essa interpretação que, nós, os baianos reproduzimos? É uma narrativa mítica no sentido de articulação do passado, presente e futuro que vai atravessando gerações, desde a segunda metade do século XIX, registrada por Manuel Querino, no início do século XX. Dá conta de populares, a maioria negros e mestiços, que colocaram um velho mestiço descendente de indígena, em cima de uma carroça tomada dos portugueses, e todos saíram desfilando do Largo da Lapinha ao Terreiro de Jesus. Se olharmos para os anos que se seguiram, do que antecedia a festa ao que acontecia durante o desfile, e até nos dias atuais, o 2 de Julho é uma disputa contínua no espaço público.

Como foi a trajetória de ocupação de uma festa cívica pelo Caboclo, esse encantado multifacetado?

O imaginário nacional sobre o índio está presente na sociedade brasileira desde o século XVIII, e isso pode ser visto no século seguinte com a literatura indianista, especialmente em romances de José de Alencar. O processo da Independência da Bahia eleva o índio como símbolo nacional, visto como o Caboclo. Vale lembrar que o termo caboclo já existia nos séculos XVII e XVIII para designar o índio em geral, e que “já estava semiaculturado”. O autóctone (índio) deixou de ser aquele que não foi dominado no processo de colonização, e passou a significar o “dono da terra”. Uma frase chama a atenção no dito popular: “o verdadeiro caboclo é o índio”. Mas esse processo não foi tranquilo. Dois anos depois da primeira comemoração, a imagem do Caboclo sobre uma carroça foi esculpida para o desfile, mas o carro da Cabocla que o acompanha somente o seria em 1846. Foi uma decisão do tenente general José de Souza Soares de Andrea, português naturalizado brasileiro, presidente e comandante de armas da Província da Bahia, que considerava uma humilhação imposta aos portugueses somente desfilar o carro do Caboclo. Daí que fizeram uma estátua de uma cabocla representando Catarina Paraguassu, esposa do legendário Caramuru, e mãe mítica da Bahia, empunhando a bandeira nacional, e mostrando ao povo a frase de D. Pedro I – “Independência ou Morte”. O propósito era a substituição e a consequente eliminação do carro do Caboclo no desfile. Registros históricos mostram diversas reações dos veteranos da guerra da Independência, até no Teatro São João, com agressões físicas. E um exaltado chegou a declarar naquele recinto das elites: “Olha, o Caboclo pertence ao povo, não é do governo. E ele sai nem que tenha que morrer alguém”.

Quando o 2 de Julho se sedimenta como uma festa da identidade e do orgulho baiano?

Acho que é um processo contínuo que tem o nascedouro na data comemorativa, em 1824, e que vai se solidificando ao longo dos anos e décadas seguintes. A imprensa é o locus dessa proto-baianidade, desde os anos que se seguiram à comemoração, mas também os poetas, e os políticos. É provável que esse sentimento de que a Bahia é uma nação, tão propagada a partir dos anos 60 do século XX por intelectuais, governos municipais e estaduais, artistas, mídia e imprensa seja a coroação de um processo iniciado cem anos antes, via o 2 de Julho. A letra do hino ao 2 de Julho é um primor para desvelar o que, nós, os baianos pensamos: é um clamor à liberdade, é o orgulho nativo (baiano) que derrotou o despotismo, afinal de contas foi “de Cabrito a Pirajá” que a pátria ficou livre. O que nos daria identidade política. Tudo isso marcado nesse primeiro verso, pois se o sol nasce no Dois de Julho, “é sinal que nesse dia até o sol é brasileiro”. Quer mais orgulho, identidade política, provincianismo e narcisismo do que está contido nesse verso? Penso que isso não é coisa de gente abestada, não!

Em seu livro O poder da cultura e a cultura no poder, o senhor analisa a disputa entre Estado e os movimentos negros pela conquista dos signos da cultura afro-brasileira. No 2 de Julho tem algum movimento nesse sentido? E, se positivo, quem são esses agentes?

A disputa no desfile é em sentido mais plural. É multifacetada e visível, desde a concentração no Largo da Lapinha, ao longo da caminhada, e até o Terreiro de Jesus. É algo que atravessa o espaço público durante décadas. Observemos o empurra-empurra e o bate-boca entre os políticos que os jornais registravam nos desfiles do período pós-redemocratização. Não se trata de mera, ou única disputa, entre governo e oposição, sejam os do município ou do Estado. Partidos de esquerda já foram às vias de fato na ocupação de espaço físico durante o cortejo. Tendências internas de diversos partidos e suas respectivas lideranças também para lá vão. Organizações não-governamentais, movimentos populares, entidades da sociedade civil passaram a ocupar o espaço público reservado ao desfile. O desfile das bandas e suas balizas LGBTQIA+, no período da tarde, aponta também nessa direção. Confesso que nesse momento já não dou conta da pluralidade das disputas durante o desfile. O interessante é pensar que a simbologia ali presente é apropriada nas mais variadas formas. Tudo isso envolve um cortejo marcado por sujeitos e organizações que vão da macro a micropolítica.

Já é o segundo ano sem o cortejo do 2 de Julho. Lives e debates na Web tornaram-se a forma de comemorar a data no ano passado e possivelmente neste. Estes formatos digitais, a seu ver, podem ser um recurso para aproximar novas gerações dessa comemoração? Ou nada muda?

Diante dessa tragédia que é a pandemia, não nos restou outra forma de comemorar a data magna. Lives e debates foram estimulados em 2020. Obviamente, a imprensa isso destacou, chamando a atenção para o fato de que o 2 de Julho aconteceu “sem o povo”. É a tradução do que seja lido como “povo baiano”, que atravessa décadas e décadas. Ainda há muito que aprender, descobrir, produzir e interpretar. O formato digital pode ser um recurso para alargarmos a participação e o conhecimento sobre o 2 de Julho. É uma forma de não ficarmos insatisfeitos e termos que ir “chorar no pé do Caboclo”. Ou para usar outras expressões baianas, virtualmente, podemos continuar a “fazer um Dois de Julho”, no intuito de designar alguma coisa festivamente popular, já que devemos “tocar o carro pra Lapinha”. Essa última expressão quer dizer que algo precisa ser feito de qualquer forma e que não pode parar.

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