Promotora de Justiça aponta drama de pessoas sem documentos | A TARDE
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Promotora de Justiça aponta drama de pessoas sem documentos

Lívia Sant´Anna Vaz explica como a falta do registro civil torna pessoas invisíveis para o Estado

Publicado sexta-feira, 08 de abril de 2022 às 09:19 h | Atualizado em 08/04/2022, 11:51 | Autor: Cleidiana Ramos
A promotora de justiça Lívia Sant´Anna Vaz diz que falta de documentos é negação da cidadania.
A promotora de justiça Lívia Sant´Anna Vaz diz que falta de documentos é negação da cidadania. -

A edição de A TARDE publicada no dia 24 de julho de 1929 trouxe a história de Luiz Gonzaga Pereira. Aos 109 anos, ele procurou a redação do jornal porque não tinha documentos e queria comprovar a sua idade. O drama de Luiz Gonzaga continua o de muitas brasileiras e de muitos brasileiros que estão na categoria de “indocumentados” e não têm acesso sequer à certidão de nascimento, o que inviabiliza o  tirar outros documentos. Nessa entrevista, a promotora de justiça Lívia Sant´Anna Vaz analisa essa questão e seus desdobramentos para negação de cidadania a essas pessoas. Doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e nomeada, em 2020, como uma das pessoas de descendência africana mais influentes do mundo, na Edição Lei & Justiça, Livia Sant' Anna Vaz é titular da Promotoria de Justiça de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa, sediada em  Salvador.

Cleidiana Ramos

ATM: Continua comum, infelizmente, o caso de pessoas sem documentos básicos como o registro civil, no Brasil.    

Lívia Sant´Anna Vaz: Sim. Nós temos milhões de pessoas indocumentadas no Brasil. E isso diz respeito à própria existência da pessoa. Uma pessoa sem registro civil de nascimento é uma pessoa que oficialmente para o Estado não existe. Isso vai interferir em vários aspectos, em várias dimensões de direitos como por exemplo, o direito à memória dessas pessoas, o direito à identidade com todo o sentido que essa palavra traz. Não é só o direito ao nome, mas à própria identidade de se sentir parte de um país, de se sentir parte de uma sociedade, de se sentir efetivamente cidadão ou cidadã. Isso nos remete à história de luta do povo negro nesse país, porque o pós- abolição, o famoso 14 de maio de 1888 e a promessa de cidadania para o povo negro nunca foi cumprida. A ausência de registro é um dos aspectos do não cumprimento dessa promessa de cidadania ao povo negro brasileiro. Óbvio que o registro não é suficiente para garantir plena cidadania, mas a inexistência do registro traz um obstáculo severo para o gozo de plena cidadania. É uma espécie de inexistência civil, de morte civil em vida não possuir registro de nascimento.  Quem não tem um registro de nascimento não tem condições de ter outros tantos documentos como Registro Geral, Carteira de Trabalho, CPF, não pode abrir conta em banco, não pode se matricular em uma escola, em um curso, não pode ter acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS). Uma série de direitos deixa de ser assegurada por conta da ausência do registro civil.

ATM:  Qual é o perfil das pessoas que mais têm dificuldades para conseguir documentos como o registro civil?  

LSV: O perfil da população que mais tem dificuldades em acessar direitos de um modo geral, inclusive o registro de nascimento, são as pessoas negras e pobres desse país. Isso é muito mais comum do que se possa imaginar.  É um problema persistente que inclusive o Estado não enxerga como algo importante como algo estratégico. Há várias ações possíveis e necessárias para que possamos reduzir o número de pessoas indocumentadas. Mas há uma imensa dificuldade para que essas pessoas acessem as instâncias adequadas com atribuições para resolver o problema. Pessoas que não tem registro de nascimento precisam ajuizar uma ação para que haja a abertura  tardia do registro civil e essas informações não chegam para essas pessoas. Seria preciso uma busca ativa por parte do estado, mas além disso uma política pública que garantisse a integração das políticas de documentação porque nós temos os cartórios que fazem o registro de nascimento e outros registros civis; nós temos as secretarias de segurança pública que emitem os registros gerais; nós temos outros sistemas de documentação e de identificação. Então era preciso que todos esses sistemas fossem integrados, dialogassem entre si para que fosse possível uma política de integração que reduzisse o número de pessoas indocumentadas.  Há práticas pontuais, como os balcões de cidadania, de registros civis e tudo mais, muitas vezes com integração do poder judiciário com a defensoria pública, com os cartórios, mas são políticas pontuais. É necessário que o estado adote uma política pública estratégica de integração dessas políticas de documentação para que a gente tenha uma redução significativa do número de pessoas indocumentadas.

 ATM: Qual é a sua sensação ao ler a história de Luiz Gonzaga?

LSV: Quando eu leio a história de Luiz Gonzaga um mais velho nosso, um ancestral, me vem muito à mente a história e dor das pessoas negras que tiveram a sua identidade, sua memória, sua história e sua ancestralidade roubadas pelo sistema escravocrata. Uma das estratégias desse sistema escravocrata era retirar os nomes originais das pessoas. As pessoas africanas escravizadas que chegavam ao Brasil nessa diáspora forçada perdiam o direito ao nome africano. Atribuíam a essas pessoas outros nomes e sempre com menção aos seus senhores e senhoras. As pessoas eram consideradas coisas, réis, propriedades. Então era Maria dos Santos, ou seja, Maria que pertencia à família Santos. Isso coloca para nós a impossibilidade de acessar a nossa ancestralidade.  A ausência de uma política pública atual para pessoas indocumentadas é também reminiscência de um país que ainda se estrutura no racismo, que ainda tem muitas reminiscências de um pensamento escravocrata. Pessoas negras não conseguem retroagir na sua árvore genealógica para além de suas bisavós e bisavôs. A exclusão documental é uma continuidade dessa mentalidade escravocrata no sentido de que essas pessoas indocumentadas não podem transmitir a sua identidade familiar para as suas filhas e seus filhos. Então nós acabamos tendo gerações de pessoas indocumentadas.  Isto é sobre direito à identidade, direito à continuidade de sua linhagem, de sua ancestralidade, também direito à memória. Pensando em seu Luiz Gonzaga nós perdemos a memória de a trajetória de uma pessoa que serviu a esse país e que não teve sequer a sua existência reconhecida.

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