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Reportagem de A TARDE relatou crime de bigamia quase consumado

Texto conta como Aureolina Santiago conseguiu impedir o segundo casamento do marido Raul Nunes de Oliveira

Publicado sábado, 19 de março de 2022 às 06:01 h | Atualizado em 19/03/2022, 09:40 | Autor: Cleidiana Ramos* | [email protected]
O crime de bigamia foi o tema da reportagem publicada há 87 anos
O crime de bigamia foi o tema da reportagem publicada há 87 anos -

Em seu livro Entrevista: o Diálogo Possível, a jornalista, doutora em Ciências da Comunicação e professora da Universidade de São Paulo (USP), Cremilda Medina, dentre outras questões, destaca como os jornais costumam dar, vez ou outra, espaço para os anônimos. São aqueles que, provavelmente, só vão aparecer nos periódicos uma vez na vida, mas, dependendo da história que protagonizam, esta pode ser uma aparição marcante. Foi o caso de Aureolina Santiago, que, abandonada pelo marido com quem tinha uma filha, descobriu e conseguiu impedir o que seria o segundo casamento do homem que estava usando um nome falso. Se consumado, seria bigamia, uma ação que continua configurada como crime com pena de reclusão de dois a seis anos. A publicação da história nos dá a oportunidade de debater sobre o tema 87 anos depois.  

“Bigamia é o casamento civil de uma pessoa já casada civilmente com outra, ou seja, são dois atos iguais repetidos por pessoas diferentes tendo um núcleo comum: o bígamo”, explica Raul Palmeira, defensor público. Ele é titular da 15ª Defensoria Pública de Instância Superior voltada para a área criminal e sediada em Salvador. 

O crime de bigamia está estabelecido no Código Penal, com os artigos 235, 236 e 237 relacionados a este delito. O Código penal é de 1940, mas em 1935 essa prática já estava configurada como crime. “Naquela época o Brasil não era uma república federativa. O Brasil ainda se chamava Estados Unidos do Brasil. Cada estado tinha o seu código, mas na Bahia o crime estava configurado”, explica Raul Palmeira. Ele acrescenta que a pessoa que se casar com o bígamo também pode sofrer sanções.

Professora de Direito Civil e mestra em Família na Sociedade Contemporânea pela Universidade Católica de Salvador (UCSal), Graça Neves aponta que, em 1935, o contexto social continuava nocivo para as mulheres. Neste período, houve a ascensão de movimentos autoritários como o nazismo e o fascismo juntando-se à cultura machista e sexista brasileira.

“O adultério só deixou de ser crime há pouco tempo e de forma predominante as mulheres é que saíam prejudicadas perdendo os poucos direitos no casamento. Em um caso, como os de bigamia tinha-se quase frequentemente duas mulheres prejudicadas. Era comum que as duas não soubessem do relacionamento duplo”, analisa.  

Questões sobre relacionamentos afetivos chegam, às vezes, à esfera penal, como a bigamia
Questões sobre relacionamentos afetivos chegam, às vezes, à esfera penal, como a bigamia |  Foto: Canva | Divulgação
 

Engano fracassado

Em relação à história publicada por A TARDE não há informações sobre a quase segunda esposa de Raul Nunes de Oliveira que é chamada no texto de “Maria de Tal”. Essa ele conheceu em um baile após abandonar Aureolina, e, para realizar o segundo casamento, estava utilizando o nome de Vivaldo Nunes de Oliveira. 

Dá para imaginar o que um casamento formal significava no espaço social da Salvador do período. Muitas mulheres não trabalhavam ou batalhavam pela renda com atividades informais. Casar era buscar ou mesmo garantir maior segurança econômica, mas também a posição social de estar em um núcleo familiar reconhecido legalmente. Não conseguir casar-se, para muitas mulheres, trazia o temor de uma trajetória considerada fracassada: na quase totalidade dos casos não seria mãe, objetivo maior nos discursos sobre o papel feminino e, possivelmente, representaria um peso vitalício no orçamento doméstico, especialmente sob a perspectiva do pai. 

Portanto, pode-se imaginar o esforço de Aureolina Santiago para impedir o casamento ilegal do seu marido, Raul: 

“Informada a respeito. d. Aureolina passou a vigiar com grande cuidado o esposo, e. sabendo que no sabbado Raul iria realizar o segundo casamento, foi até o Forum, e ali chegando, dirigiu-se ao juiz, Pedro Santos, e disse-lhe: — "Dr. meu marido que se chama Raul Nunes de Oliveira vae se casar, hoje. Apresenta-se para o segundo casamento com o nome de Vivaldo Nunes de Oliveira. Elle não pode se casar". (A TARDE, 29/4/1935, p.10). 

Convocado pelo juiz Pedro Santos para uma acareação com Aureolina, Raul não foi ao fórum. Pessoas que o jornal afirma ter interesses no segundo casamento, mas sem definir as razões, apresentou à esposa reclamante um convidado. Era ao que parece um truque para ganhar tempo, pois, em seguida, o juiz recebeu o pedido para a realização do casamento na casa de Raul ainda apresentando-se como Vivaldo. 

“O juiz despacha, declarando que iria realizar o casamento de Vivaldo, em audiência especial, na casa do mesmo, sob a condicção de ser acompanhado por Aureolina e testemunhas. Os interessados e amigos de Vivaldo declararam não acceitar tal condição e, neste caso, desistiam do casamento”. (A TARDE 29/4/1935, p10). 

A TARDE trouxe reportagem sobre bigamia
A TARDE trouxe reportagem sobre bigamia |  Foto: Canva | Divulgação
 

Mas a história pode não ter sido encerrada com a desistência do casamento. Segundo o texto de A TARDE, o caso foi encaminhado para apuração de responsabilidades.  

Mudanças

Com um Código Penal em vigência há 80 anos, algumas mudanças no âmbito criminal, incluindo as relacionadas aos relacionamentos conjugais, vêm sendo realizadas, como a retirada do status de crime para o adultério. Em outras esferas do direito, a união estável dá garantias a relacionamentos em que o casamento civil ou o religioso com efeito civil não foi o modelo adotado. 

Uniões estáveis na interpretação rígida do Código Penal não configuram, em tese, o crime de bigamia no caso de duas que foram formalizadas pela mesma pessoa. “Para a configuração do delito é preciso o casamento civil ou o casamento religioso com efeito civil sucedido de outro casamento civil ou religioso com efeito civil”, destaca Raul Palmeira. 

Mas como o comportamento incluindo as relações humanas é complexo e dinâmico há exceções que impõem novos debates sobre as regras estabelecidas. Nesses casos, as decisões de tribunais superiores, como os dos estados, podem criar um precedente que indique uma postura a ser adotada em casos semelhantes. Em 2020, a 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul reconheceu como união estável um relacionamento paralelo a um casamento civil e admitiu a partilha de bens adquiridos durante a relação extraconjugal, mas com busca por meio de outra ação.  

A autora da ação viveu 14 anos com um homem que se manteve legalmente casado até a sua morte nove anos antes. Ela alegou que os dois chegaram a morar juntos em localidades do Rio Grande do Sul e do Paraná. A decisão também considerou o conhecimento da esposa sobre o relacionamento extraconjugal do marido. 

“As decisões costumam tentar acompanhar as mudanças sociais que vão acontecendo. Atualmente, por exemplo, há um projeto de lei tramitando na Câmara Federal para que os relacionamentos com mais de duas pessoas, que é chamado de poliamor, seja reconhecido com status legal. É difícil aprovação em alguns casos por conta de tabus e outras questões no âmbito moral, especialmente no Brasil, mas as sociedades são dinâmicas”, acrescenta Graça Neves.  

A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período. Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE. Confira mais conteúdo de A TARDE Memória, no portal A TARDE, e em A TARDE FM.

*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em Antropologia

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