ABRE ASPAS | BACO EXU DO BLUES
"A gente se acostumou com o sofrimento"
Aos 26 anos, o rapper e compositor reflete e faz refletir sobre o amor no novo álbum
Por Marcos Dias
Na faixa Me desculpa Jay Z, do álbum Bluesman, em 2019, o soteropolitano Baco Exu do Blues reconhece que tem medo de se conhecer. Já havia passado pela projeção nacional em 2016, quando lançou a faixa Sulicídio (com o pernambucano Diomedes Chinaski), e estourado com o álbum de estreia, Esú, em 2017, que contém o sucesso Te amo disgraça. Agora, com o lançamento do terceiro álbum, QVVJFA (Quantas Vezes Você Já Foi Amado?), ele se aprofunda no universo dos afetos. E continua ampliando referências sonoras, com samples de um afrosamba de Vinícius de Moraes e Baden Powell, de Jorge Mautner e Nelson Jacobina (Lágrimas negras, na voz de Gal Costa), entre outros. Diogo Moncorvo, a pessoa por trás de Baco, voltou a morar em Salvador durante a pandemia depois de passar três anos em São Paulo. De alguma forma, fez o percurso arquetípico que Joseh Campbell descreve como a jornada do herói: quando alguém recebe um chamado para a aventura, se lança nos desafios, e retorna afetando a sua dimensão de origem. Ainda é cedo para saber como ele vai conduzir essas experiências, já que a aventura, como conhecer a si mesmo, talvez seja obra para a vida inteira. Por ora, aos 26 anos, ele reflete e faz refletir sobre o amor no novo álbum – que tomou a frente do já anunciado projeto Bacanal. Mas atente à noção do rapper: "Quando falo de amor estou falando de todos os tipos de amor, inclusive do autoamor".
Geralmente, depois de um primeiro disco bem-sucedido, o segundo é considerado um desafio. Qual a sua sensação com o terceiro?
A sensação no momento é que consegui evoluir de alguma forma, consegui chegar em algum lugar bom, que amadureci como artista, como pessoa. Acho que muito pelo fato de ter lançado o primeiro disco muito novo. Então, tive esse espaço de amadurecimento de vida musical, fazer um retrato pequeno de cada fase da minha vida e de crescimento em cada disco.
Na primeira faixa de QVVJFA você, diz que "cantar sobre amar talvez seja mais revolucionário". Neste momento da sua vida, as outras frentes de combate vêm depois?
É porque eu parto do princípio que o amor é um agente revolucionário primário muito forte, inclusive o que dá força pra gente. Quando falo de amor, estou falando de todos os tipos de amor, inclusive do auto-amor. Então, é sobre isso: acho que a manutenção do afeto tanto ao seu semelhante quanto a você mesmo, dá mais força para você conseguir lutar e pautar as coisas, de fato. Quais são as formas de se ganhar uma guerra, vamos dizer assim, as formas mais fáceis de você ganhar uma guerra? Consegue me dizer?
Cada um guerreia de uma forma, não?
Mas tem os princípios básicos, as coisas que você precisa fazer para conquistar um povo: você precisa acabar com o suprimento e a autoestima deles. Na medida em que as pessoas perdem, perdem a força e acreditam que não conseguem mais lutar contra você, que são insuficientes, você ganha, correto? Então, é exatamente a mesma coisa que fazem com pessoas negras durante anos e anos e anos e anos e anos. A gente se sente insuficiente diante de nós mesmos, tá ligado? De receber afeto, de ocupar lugares. Essa insuficiência não é não merecer, a gente quer ocupar esses lugares, sabe que pode ocupar esses lugares, mas mesmo quando ocupa esses lugares parece que não foram feitos para a gente. Então, enquanto a gente tiver a autoestima extremamente abalada, como é que vai lutar contra a agressão dos outros se a gente mesmo se autoagride?
Isso também não é uma realidade para algumas pessoas da comunidade LGBTQIA+?
Acho que de todas as minorias, se a gente pensa em como o mundo é construído. Eu penso da seguinte forma: a gente tem um padrão não só estético mas de status quo de ser do bem, um padrão cristão católico romano que define muito bem isso, o que é ser um homem, o que é ser uma pessoa de bem, o que é ser bonito, o que é ser inteligente, e tudo que vai de encontro a esses ensinamentos é meio que rejeitado, expurgado, diminuído e transformado em piada, em algo pejorativo, em ofensas. Então, acho que todas as formas de minorias passam por dores semelhantes, apesar de serem extremamente diferentes.
Na música Mortais e fatais 2, com sampler de Tempo de Amor, de Baden Powell e Vinicius de Moraes, significativamente chamada tempo de amor, você também fala que se sente "vítima da falta de abraço do mundo".
É sobre isso: "Ah, bem melhor seria poder viver em paz, sem ter que sofrer, sem ter que chorar", e boto numa localidade de um jovem negro. Acho que todos nós queremos viver em paz, bota fé? É uma forma de ressignificar as coisas também e uma faixa muito importante pra mim, que fez muito parte da minha vida. Acho que é tudo que nós precisamos e queremos, só viver em paz. A gente se acostumou com o sofrimento, virou algo comum o sofrimento, a dor. E as pessoas fingem que não é problemático a forma que as minorias no nosso país normalizaram o fato de que vão nascer e viver convivendo com o sofrimento de uma forma muito mais intensa do que qualquer outra pessoa.
De certa forma, nos outros álbuns você também trata de afetos, mas numa órbita mais da sexualidade, talvez mais voltada para a genitalidade. Esse processo de ampliar esse seu campo de afetos, passa por um amadurecimento?
Eu discordo um pouco. Acho que as pessoas confundem um pouco o fato de eu não ter problemas de falar sobre sexualidade e sobre temas sexuais com o fato do discurso que eu passo estar atrelado a isso. Não é porque eu utilizo uma linha falando sobre sexo que, necessariamente, a música toda é sobre isso. Existe uma ruptura de entendimento geral, e acho normal que isso aconteça porque a gente vive num país demasiadamente careta, então, quando a gente fala de sexo assusta. Ainda mais quando é um tipo de música que não estão acostumados a ouvir certas coisas. Mas é algo que faz parte da minha vida, com certeza faz parte da sua vida e da vida de todo mundo. Como as minhas músicas são retratos da minha vida, às vezes vai ter algo sobre, mas não necessariamente a música é só sobre sexo. Às vezes, o espanto é tanto que faz algumas pessoas não entenderem o que a música é, de fato. A quantidade de informação que essa pessoa está perdendo só pelo fato de ficar abismada com uma frase (risos) é meio agoniante pra mim. Bluesman, por exemplo, quase todas as músicas falam sobre problemas de saúde psíquica. Esú só tem uma música que falo sobre sexo, Te amo disgraça, que tem muitas camadas, falo sobre muitas coisas ali, mas entendo também que, às vezes, focam só naquilo e acabam perdendo o entendimento geral.
Mas há também uma crítica à sexualização dos corpos negros.
Sim, exatamente, só que querendo ou não, eu vivi a vida toda fora do padrão, era muito difícil sexualizar a minha pessoa, então, de certa forma, acabei sexualizando minhas músicas.
Você voltou para Salvador durante a pandemia. A ideia é ficar?
Sim, moro em Salvador, vou continuar morando em Salvador.
E como é a cidade que você vê nesse retorno?
Salvador continua a mesma Salvador de sempre, que é caótica, bonita, perigosa, mas poética, artística, me inspira. É onde entendo as pessoas, sei como as pessoas são. É minha casa, meu lugar, onde eu me sinto confortável, onde cresci ouvindo elas falarem do jeito que falam, gesticular do jeito que gesticulam, me traz um entendimento muito maior das pessoas do que qualquer lugar do mundo que eu esteja. Quando estou em Salvador eu consigo entender tudo ao meu redor.
Você criou o selo 999, pensando também nos talentos de Salvador. O que acha do rap local?
O rap da nossa cidade é fortíssimo, muito original. O selo é muito importante pra mim, desde sempre tive essa vontade de ter um selo com artistas negros e negras baianos, períféricos, talentosos, que eu pudesse ajudar de alguma forma, que eu pudesse ampliar as vias de comunicação desses talentos, ajudar a profissionalizar. Então, é a realização de um sonho ter o selo, ter nosso estúdio, trabalhei muito para fazer isso acontecer e ver as coisas acontecendo é muito satisfatório.
O QVVJFA acabou saindo antes do do Bacanal, que havia sido anunciado, como é que é que ficou essa sequência?
É tranquilo, porque QVVJFA é uma prévia, um pouco do sabor da profundidade do Bacanal. Acho que o QVVJFA já é um disco que mostra um Baco diferente, e o Bacanal é a conclusão desse caminho que eu tô seguindo, é um lugar um pouco mais denso, um pouco mais sensível, um pouco mais doído ainda do que QVVJFA. Acho que QVVJFA é um preparativo para a força natural que Bacanal é.
De certa forma, é mais Diogo e menos Baco?
Todos os meus trabalhos são muito mais Diogo do que Baco, se a gente for parar para analisar, eu me derramo muito nos meus trabalhos. Mas o Bacanal é onde eu puxo questões muito complicadas e pessoais. Uma coisa fantástica nele é que eu não falo só do problema, eu explico de onde veio o problema, de uma forma direta e coesa, e isso pra mim é muito especial, poder não só reclamar, mas reclamar falando: o problema veio daqui, nasceu aqui e é preciso isso aqui pra sair do problema. Trago soluções (risos).
O disco novo tem uma parceria com Gloria Groove (Samba in Paris), isso aponta um flerte com a música pop?
Eu faço música, não gosto muito de categorias em si, mas de jeito nenhum foi tentando entrar em algum tipo de mercado ou me aproximar do pop trazendo a Gloria para o disco. Eu trouxe a Gloria porque ela é uma das artistas que mais admiro no momento agora da nossa geração. É alguém que eu queria muito dividir uma faixa porque o talento é uma coisa absurda. Só queria poder dividir a faixa com uma pessoa que eu admiro muito.
QVVJFA foi lançado dia 26 de janeiro e 24h depois já tinha mais de 2 milhões de plays no Spotify, logo logo depois entrou no top mundial dos dez maiores lançamentos da semana e continua subindo. Você viu que, recentemente, Neil Young tirou as faixas dele dessa plataforma por causa do podcast de maior sucesso deles, o The Joe Rogan Experience, que é negacionista em relação à covid-19 e chegado a teorias da conspiração. Joni Mitchell também anunciou que sairia. O que pensa a respeito?
Eu respeito muito, mas não é uma coisa que eu faria. Vou te dar um exemplo claro: eu vivo num mundo de brancos, que é contra a minha imagem e a dos meus semelhantes, mas simplesmente eu não tenho como me retirar desse mundo por causa disso. O YouTube está cheio de merda mas nem por isso a gente sai dele, o próprio jornalismo está cheio de merda mas nem por isso eu não leio entrevistas. Acho que cada conteúdo é um conteúdo e cada um tem a sua responsabilidade social. Uso as plataformas de comunicação para me comunicar, e se existem plataformas que posso me comunicar vou me utilizar delas.
As redes também de agitaram com a decisão de Chico Buarque não cantar mais Com açúcar com afeto (de 1967), por causa de críticas feministas. Você reveria alguma representação sobre mulheres na sua música, se fosse o caso?
Eu já revi coisas que falei, mas não foi por esse assunto. Sinceramente, acho que tenho bastante cuidado sobre isso. O grande erro da minha carreira foi uma fala em Sulicídio e retirei ela de todas as plataformas e me desculpei por essa fala. Agora, não consigo pensar em outra que eu tenha me passado, de alguma forma. Se me passei, que alguém toque uma ideia comigo e mostre onde eu me passei. Sempre fui bastante respeitoso.
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