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"A vida das crianças hoje é um zapping completo"

Publicado segunda-feira, 05 de outubro de 2015 às 10:28 h | Autor: Carla Bittencourt
Teresa Messeder
Teresa Messeder -

Eram os anos 70 numa escola em Paris. A professora reparou que os alunos voltavam do recreio vermelhos e despenteados, suando e balançando suas pastas muito pesadas. Ela viu que não podia dar uma boa aula sem ter antes uma pausa: aquilo era yoga. Passou então a pedir que as crianças deixassem suas pastas, sentassem tranquilamente, colocassem os cotovelos sobre as mesas, as mãos sobre os olhos e começassem a ver imagens. O mar com ondas. Um pico de neve cintilando ao sol. Quando saía para fazer fotocópias e deixava a porta da sala entreaberta, quem passasse veria meninos e meninas trabalhando, como se um adulto estivesse lá com eles. A adulta em questão era Micheline Flak, fundadora do RYE (Recherche sur le Yoga dans l'Education ou Pesquisa de Yoga na Educação). E nas suas primeiras turmas de pesquisa estava a portuguesa Teresa Messeder, 76. Ao lado de Flak, ela ensinava os alunos a desenvolverem a imaginação e a tomarem consciência. Não era um método pedagógico, era uma experiência. Mais de 35 anos depois, Messeder, que preside o RYE no Porto, em Portugal, segue trabalhando para que crianças e jovens saibam respirar e estar atentos, algo que de tão simples se esquece. De passagem por Salvador, onde ministrou um curso de yoga para professores de escolas públicas e particulares, ela falou à Muito.

O RYE propõe o yoga não como disciplina específica, mas como elemento que conecte todas as áreas de uma escola. Como isso se dá na prática?
Professores de diferentes disciplinas se formam nessas técnicas de yoga na educação e as utilizam em sala. Temos professores de química, de francês, de inglês, de história que aplicam as técnicas quando sentem que há necessidade delas. Para motivar as crianças ou para acalmá-las, dar energia quando estão cansadas e, também, para que tenham equilíbrio e boa memória.

É comum associar yoga e atividade física. Esse trabalho tem relação com aulas de educação física também?
O yoga pode até ser relacionado à atividade física, mas não está limitado a isso. Não há um sítio onde se pode colocar a disciplina "yoga". É um trabalho no qual a pessoa está completamente interiorizada no sentido da concentração, da atenção ao corpo, da respiração, e esses três componentes é que propõem uma outra forma de estar no mundo, de relaxar e de sentir o corpo harmonizado com as suas várias funções.

Como tem sido a receptividade dos professores que fazem esse treinamento?
Muito grande. O RYE foi fundado em Paris, em 1978, para responder a uma necessidade. Desde aquela época víamos os pediatras dizendo que recebiam crianças cansadas demais porque o ensino era muito pesado, a rotina era muito agitada. Então esses médicos começaram a procurar a fundadora do RYE (Micheline Flak), que era professora de inglês, conhecia bem o yoga, resolveu adaptar certas técnicas com as crianças e começou a ter um ótimo resultado. Isso foi se expandindo em vários países da Europa - Espanha, Portugal, Itália, Inglaterra, Bélgica, Bulgária e também na América do Sul, Chile, Brasil, Argentina, Uruguai...

Fiz essa pergunta pensando no Brasil, onde ao ensino ainda falta tanto. Como o yoga pode dialogar com as escolas no contexto de tantas privações?
Não estamos falando de yoga, mas de um método educativo inovador, uma resposta a uma necessidade, e o problema não é só do Brasil. Agora, isso também depende dos países. Em 2013, o RYE foi reconhecido pelo Ministério da Educação da França e passou a fazer parte do currículo das escolas. O próprio ensino tem mudado muito na França, era algo hiperintelectualizado e estava cansando as crianças. O que eles estão tentando fazer agora é ter essas disciplinas "intelectuais" de manhã e, à tarde, práticas que os próprios alunos podem escolher. O yoga na escola surgiu depois disso e pode ser aplicado em qualquer horário por qualquer professor que conheça as técnicas.

Como são essas técnicas?
São muitas e bem variadas, mas podemos falar basicamente de técnicas calmantes, energizantes e equilibrantes. Os professores conhecem as técnicas e conhecem os alunos, então eles agem conforme a necessidade de cada um. Se os alunos estão cansados, por exemplo, fazem um pequeno relaxamento, de três a cinco minutos, o que pode mudar completamente o ritmo da aula.

Uma queixa frequente entre educadores no Brasil refere-se à hiperatividade. Há professores que lidam com o tema punindo alunos ou apoiando o uso de medicamentos. O yoga seria uma alternativa?
No caso de alunos hiperativos, é preciso, primeiro, conseguir que eles se concentrem. Mas, sobre a hiperatividade, já está provado que este é um problema que vem também do açúcar, do excesso de açúcar que é utilizado na alimentação das crianças.  Agora mesmo, em Portugal, o governo está preocupado com a comida que é disponibilizada nas cantinas das escolas. Antes, eles levavam coisas saudáveis de casa, agora vão à cantina, bebem uma coca-cola e comem uns pãezinhos com chocolate. A alimentação está muito desequilibrada. Isso não é nosso papel, não somos nutricionistas, mas temos procurado muito, junto às escolas em Portugal, rever a comida das cantinas e cortar todos esses excessos também com os pais. Acho que essa tomada de consciência tem que acontecer em todos os países, e agora em Portugal está se fazendo muito isso mesmo. Outro dia, minha filha veio me mostrar uma revista com uma reportagem sobre os malefícios do açúcar. Ela tem uma filha de três anos, que está sendo criada longe disso, que limita-se a comer frutas, umas passas, umas bolachinhas de arroz, e não prova o que tem aquele sabor que realmente é perigoso. Não podemos esquecer que somos aquilo que comemos.

A senhora mencionou atividades escolares em dois turnos na França. No Brasil, há muitos pais que sobrecarregam os filhos com cursos extraclasse. Qual a importância de incluir pausas no dia a dia dessas crianças e jovens?
É total. No RYE, as pausas são feitas pelos professores na sala de aula. No dia que percebem que precisam, eles promovem o relaxamento, que é algo muito apreciado, sobretudo entre os adolescentes. Para eles, é uma descoberta enorme porque a vida das crianças e dos jovens é um zapping completo. Saem daqui, vão para ali, chegam em casa e não param. Eles não sabem, não conhecem o caminho de uma interiorização. Então, por meio do relaxamento, descobrem a paz, a calma que não vivem normalmente e que é tão importante porque é o que vai recarregar suas energias. O descanso hoje também está prejudicado. Eles não dormem as horas necessárias, vivem numa agitação permanente, e isso é resultado de uma sociedade em que os pais trabalham muito para ter muitas coisas. Não vou generalizar, sei que tem quem trabalha porque realmente precisa, mas estamos numa sociedade de consumo em que todos precisam sempre ter mais e as pessoas tornam-se escravas. Elas são roldanas de uma máquina incrível que não para. E o pior é que as crianças praticamente não têm contato com seus pais.

Hoje, vemos crianças bem pequenas já familiarizadas com celulares e tablets, mas que nem sempre brincam com brinquedos analógicos. Como estabelecer um meio-termo nesse sentido?
É difícil, porque os pais delas também estão quase sempre atrás das máquinas. Eu vejo a minha neta, com três anos, que já chega em minha casa, vê a televisão e quer assistir aos filmes de Disney. Eu deixo, só um bocadinho, depois é só brincadeira, e acho que ela gosta. Quando os pais se dedicam a brincar, a entrar na idade dos filhos, é muito bom. O problema também, para as crianças, é viver essa distância tão grande dos adultos. Os pais têm os filhos, mas não conhecem o funcionamento deles ou têm tempo para estar com eles. Porque, para estar com crianças, é preciso descobrir ou lembrar das crianças que fomos.

Os professores capacitados pelo RYE podem passar esse aprendizado adiante?
Depende. Primeiro, é importante que os professores sejam praticantes, porque ninguém pode dar aquilo que não conhece. Nossos cursos têm um controle, um trabalho de formação. Porque, senão, hoje em dia tudo se faz. E é preciso saber exatamente o que se está fazendo. Essas técnicas, se mal empregadas, podem até causar problemas. Mas hoje em dia tudo é moda, tudo é produto de consumo. Agora estão a explorar o yoga com as crianças e aparece também muita gente a falar de meditação para crianças sem saber o que estão a fazer.

Não é possível então trabalhar meditação com crianças?
A meditação, tal como se fala, é uma técnica para adultos. Uma pessoa pode concentrar-se e meditar sobre um assunto, que é o que nós conhecemos no Ocidente como meditação. Na igreja católica havia sempre a meditação sobre um tema. Isso é uma coisa. Agora, quando se fala de meditação e yoga, é completamente diferente. É difícil explicar, mas é quando nossa consciência liberta-se desses pensamentos constantes e descobre que temos outro espaço. Não é um saltitar daqui para acolá. É um conjunto de técnicas conhecido  desde quatro mil anos antes de Cristo em que usamos a concentração e a respiração para atingir a calma mental. Então nos sentimos livres. É a mesma coisa de ver o céu cheio de nuvens e, de repente, vem o vento e o céu está todo azul. Encontramos o sol. Uma vez vi uma frase no metrô de Paris, onde vivi muitos anos, que dizia assim: "Por detrás do nosso sol há um outro muito mais brilhante que nos é escondido por nossos hábitos". Mas nós sempre temos que trabalhar e não temos aquele espaço para nós. E a meditação começa por isso. Agora, como pedir a uma criança que esteja a concentrar-se para atingir esse estágio? Crianças são imprevisíveis, querem descobrir coisas. As crianças precisam viver no mundo delas e não que estejam a ser puxadas pelos adultos a serem adultos pequenos.

Talvez falte também aos adultos colocar a infância em sua própria vida...
Adultos estão preocupados como,  dia a dia, têm suas ações acumuladas e um estresse enorme. Já não têm sensibilidade. Ontem, numa das oficinas, trabalhamos os sentidos, que são algo que os adultos, em geral, perderam.  O tato, o cheiro, o gosto e, com isso, descobrem como se fosse a primeira vez que comessem ou que sentissem. Redescobrem o que um dia já tiveram.

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