Companhia Teatro dos Novos, do Vila Velha, comemora 60 anos com montagem de "A Tempestade", de Shakespeare | A TARDE
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Companhia Teatro dos Novos, do Vila Velha, comemora 60 anos com montagem de "A Tempestade", de Shakespeare

Publicado segunda-feira, 02 de dezembro de 2019 às 09:41 h | Atualizado em 02/12/2019, 09:48 | Autor: Gilson Jorge
A peça, com direção de Márcio Meirelles, estreia no dia 3 de janeiro
A peça, com direção de Márcio Meirelles, estreia no dia 3 de janeiro -

Às 14h da última terça, pouco antes do ensaio aberto de A Tempestade, de William Shakespeare, alguns funcionários do Teatro Vila Velha ainda não sabiam se haveria atividades, por causa do temporal que caiu sobre a cidade. Mas o ensaio aconteceu e, sob a direção de Márcio Meirelles, a peça estreia 3 de janeiro, marcando os 60 anos da Companhia de Teatro dos Novos, criada por dissidentes da então recém-criada Escola de Teatro da Ufba e que virou referência para todo o país, influenciando inclusive o cineasta Glauber Rocha.

Stopem, stopem é um espetáculo fantástico”, elogia Meirelles,  ao falar sobre a importância da peça dirigida por João Augusto Azevedo, diretor da primeira formação da companhia, que trouxe para os palcos elementos do cordel. 

 “Glauber considerou que essa é uma peça tropicalista, no sentido de reivindicar a brasilidade no teatro”, afirma o pesquisador Raimundo Matos de Leão. Ele aponta, porém, a mudança de postura do cineasta em relação às inovações trazidas a partir da criação da Escola de Teatro. “Ele fazia inclusive observações sobre a homossexualidade do diretor da escola [Martim Gonçalves]”, diz Leão. 

Foi por causa da Escola de Teatro, aliás, que Glauber entraria em contato com um de seus atores preferidos, Othon Bastos. “Todo mundo que participou daquele período teve experiências extraordinárias”, diz Othon ao A TARDE,  depois de reclamar que não tem mais o que falar sobre o assunto e contar que foi recentemente procurado para participar de um documentário sobre a companhia e sobre o teatro que ajudou a construir com o próprio suor e que desde 1994 é administrado por Márcio Meirelles.

 Algumas coisas continuam muito parecidas no Teatro Vila Velha, como o espírito coletivo. Todo mundo tem que fazer de tudo. “Temos no total cerca de 80 pessoas no teatro. Os alunos da Universidade Livre, que são uns 50, têm que cuidar da luz, da comunicação, da portaria”, afirma Chica Carelli, coordenadora de formação do TVV.

Mito da fundação

Em uma tarde de primavera de 1958, faltando três meses para a conclusão do curso da primeira turma de teatro da Ufba, a estudante Sonia Robatto levantou-se da cadeira em meio à aula do diretor-fundador da escola, Martim Gonçalves, que a admoestou: se saísse, não voltaria mais. 

O médico pernambucano trazido pelo reitor Edgard Santos para inaugurar a primeira escola universitária de teatro da América Latina havia cumprido as expectativas e trouxe à capital baiana profissionais de renome nacional e internacional que colocaram a Bahia em destaque no Brasil no campo das artes cênicas. 

Mas a reação provinciana aos seus grandiosos projetos, divergências com um de seus professores convidados, o carioca João Augusto e o espírito rebelde de parte de seus 20 alunos ameaçavam os seus planos.

Sonia levantou, abrindo mão do diploma, então de nível técnico, e foi seguida por Othon Bastos, Carlos Petrovich, Echio Reis, Tereza Sá, Maria Francisca e Carmem Bittencourt, que juntamente com João Augusto formariam a revolucionária Companhia de Teatro dos Novos, cuja estreia  completa 60 anos no próximo mês de janeiro.

Posteriormente, o grupo recebeu a adesão de Mário Gadelha, Mário Gusmão e Wilson Mello, que todavia não entram como membros da Sociedade Teatro dos Novos.  

O sonho de fazer um teatro pulsante começou a ser construído pelos jovens de classe média baiana que, além de passar os textos, dividiam entre si as tarefas técnicas, administrativas e até de sair batendo de porta em porta na vizinhança para vender ingressos, uma espécie de Testemunhas de Dionísio.

Com a mesma paixão com que encenava textos clássicos em locais como o antigo teatro do Edifício Oceania, o grupo viajava na boleia  de caminhão para fazer apresentações na periferia de Salvador e em cidades do interior. 

Ao mesmo tempo, começava a campanha “Nós os Novos aceitamos tudo o que é velho”, para recolher materiais usados que pudessem ser utilizados na construção do Teatro Vila Velha, conquista do grupo, inaugurado em 1964 em um terreno no Passeio Público, cedido pelo governador Juracy Magalhães. 

Teto de zinco

O projeto foi feito gratuitamente pelo arquiteto Sílvio Robatto, irmão de Sonia. “Era um ambiente muito confortável. O único problema era que com o teto de zinco, quando chovia, ficava tudo alagado”, lembra o pesquisador Raimundo Leão, referindo-se ao teatro original.    

Uma estrutura metálica foi doada pelo jornalista e poeta Odorico Tavares, pernambucano que adotou a Bahia e fez oposição sistemática à gestão de Gonçalves na Ufba – assim como o governador. 

A briga entre Gonçalves e os estudantes foi parar na mesa do reitor Edgard Santos, que exigiu do professor que aceitasse a volta dos alunos ao curso. O gestor rígido, que havia impedido o próprio reitor de entrar no teatro com sua comitiva porque um espetáculo já havia começado, desta vez teve que se render à autoridade de Santos.

A medida foi parcialmente eficaz. João Augusto voltou a dar aulas por um tempo, mas os estudantes se recusaram a fazer provas. “Sabíamos que viria uma reprovação”,  diz Sonia, que, como Othon Bastos, admite o peso da rebeldia, “natural à juventude”, na decisão coletiva de afastamento da universidade.

Uma dos poucos sobreviventes da sociedade, da qual se mantém como vice-presidente, Sonia faz questão de ressaltar a importância de Martim Gonçalves para o desenvolvimento do teatro na Bahia, mas credita parte da divergência ao que considera ter sido uma manifestação de ciúmes do diretor, que não teria digerido bem o sucesso de seus professores convidados, especialmente João Augusto, junto ao alunado. 

Autor da dissertação Abertura para outra cena: o moderno teatro na Bahia, que estudou a produção cênica local entre 1940 e 1960, o professor Raimundo Matos Leão considera que questões de relacionamento teriam sido insuficientes para desencadear o rompimento. 

Para ele, havia dois projetos individuais em jogo: “As pessoas falam de um Martim autoritário, mas João também era. Para conduzir a sociedade até o fim, ele usou mão forte. Tanto que muitos atores se afastaram”.  

Sonia se casou em 1964 e mudou para São Paulo; Othon Bastos e sua mulher, Martha Overbeck, também atriz, foram para o Rio de Janeiro em 1967; e, posteriormente,  Petrovich também se afastou do grupo, que foi comandado por João Augusto até sua morte, em 1979.  “Eles poderiam ter feito o mesmo trabalho na Ufba”, opina Leão, para quem não havia incompatibilidade estética entre as partes.

Se apenas a morte encerrou a trajetória de João Augusto no teatro baiano, aos 53 anos de idade, o seu mentor inicial no estado, Martim Gonçalves, teve uma permanência limitada a cinco anos. “Eu classifico a sua passagem pela capital baiana como fulminante”, declara a atriz, jornalista e pesquisadora Jussilene Santana, que mantém no Rio de Janeiro, desde o ano passado, o Instituto Martim Gonçalves. No ano que vem, ela deve publicar uma tese sobre o ex-diretor da Escola de Teatro.

Ontem e hoje

Com a morte do diretor, Echio Reis assume a Sociedade Teatro dos Novos (STN) e o Vila e monta um coletivo de artistas que funciona até 1985, quando ele repassa a administração do teatro à Funceb, por meio de um convênio. Em 1987, Carlos Petrovich assume a direção, mas em crise financeira o Vila Velha passa a alternar programação infantil com peças pornôs. Em 1994, Márcio Meirelles assume a direção do Vila, totalmente reformado, com Petrovich à frente da STN.

Atualmente, a STN é formada por Márcio na presidência e Sonia Robatto na vice-presidência. A sociedade é dona do teatro e responsável pelo conteúdo. A gestão administrativa do TVV está a cargo da ONG Sol Movimento da  Cena. 

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