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Maratonando o mundo

Publicado domingo, 10 de julho de 2022 às 06:00 h | Autor: LUISA SÁ LASSERRE
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Existem dois tipos de pessoas: a que devora uma barra de chocolate de vez e a que come aos pouquinhos, guardando pra depois e fazendo durar um tempão. Eu faço parte do segundo tipo. Receio que não seja falsa modéstia, mas alguma crença limitante de escassez.

Lembro de quando era criança e ganhava um ovo de páscoa. Ia degustando pedacinho por pedacinho até o mês seguinte. Ainda tenho na cabeça a imagem congelada do papel de diamante negro adormecido na prateleira da geladeira. É assim até hoje; tem uma barra de chocolate 70% aberta aqui há semanas e nada de acabar.

É um pouco a sensação de “se terminar, não vai ter mais” com “vou guardar o melhor pro final”. A verdade é que eu até gosto de chocolate (se for de qualidade, com mais cacau do que açúcar), mas vivo sem, numa boa. Compulsão zero.

Sou assim com outras coisas também. Prefiro que as crianças não aniquilem a macarronada em uma refeição só pra ter um pouco guardado mais tarde. Pode dar fome à noite, e é uma mão na roda. Melhor garantir, né?!

Outro dia meu marido descobriu um remanescente potinho de açaí que, sabiamente, armazenei atrás de outras vasilhas no congelador. Isso porque eu sabia que, se deixasse à vista, já teria sido consumido faz tempo. Gosto de saber que tem um açaí lá me esperando para aquele dia que der muita vontade.

Algum guru de internet pode dizer que estou vibrando na escassez, que é melhor enxergar a abundância existente no mundo. A gente cozinha outro macarrão, compra outro chocolate. Mesmo o açaí, a gente arranja. Está tudo bem. Eu sei, eu sei.

Mas arrisco imaginar que quem não resiste a devorar uma barra de chocolate no mesmo dia leva esse tipo de atitude para outros âmbitos da vida. Urgência em querer tudo pra já, falar de todos os assuntos na mesma conversa, ocupar cada minuto livre.

Tenho reparado em outro tipo de compulsão: por séries. Deu origem até a um verbo inventado: maratonar – o equivalente de devorar, mas aplicado aos conteúdos audiovisuais. “Seis séries incríveis pra você maratonar ainda hoje”, me diz a manchete de um site. Embora a gente fale ou escreva e todo mundo entenda, esse verbo sequer existe nos dicionários.

Já tem até pesquisas acadêmicas estudando o fenômeno recente, atrelado ao sucesso dos serviços de streaming. Uma vez que você não precisa mais esperar até a semana seguinte para a TV exibir o próximo episódio do seu seriado favorito, por que não assistir a tudo de uma vez em um único fim de semana?

Basta lançar uma série ou temporada nova que todo mundo começa a comentar nas redes sociais e em círculos de amigos. Em poucos dias (seriam horas?), todos os conhecidos já assistiram, menos você – quer dizer, eu. Quem tem tanto tempo livre assim, meu Deus?

Eu sei, os episódios são construídos narrativamente para nos manter presos ao enredo. Termina um e já não nos aguentamos de ansiedade pra saber o que vem no próximo. É só dar trela que nos prendemos ao emaranhado de conflitos, dramas e mistérios dos personagens. Já era.

Estaremos perdendo a capacidade de degustar um episódio por vez, assim como quem lê um capítulo de um livro por dia? O que mais não estamos conseguindo apreciar aos poucos? Um fim de tarde, um papo com amigos sem pressa, uma manhã livre em casa, sem nada tão importante pra fazer.

Não é só mais uma barra de chocolate, mais uma série. Não é só o novo hit da playlist de sucesso, a última notícia, o vídeo mais viralizado. É tempo sendo preenchido sem contemplação, sem espera ou reflexão, sem respiros de silêncio.

No mundo de hoje, nada fica pra amanhã, e gente como eu está sempre atrasada. Fazer o quê? Vou ali me atualizar com mais um episódio da série que fez sucesso meses atrás, enquanto como um pedacinho do meu chocolate, que vai continuar guardado no armário da cozinha pra outro dia que der vontade.

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