“O Código de Defesa do Consumidor foi uma ilusão”, diz professora de Direito e escritora | A TARDE
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“O Código de Defesa do Consumidor foi uma ilusão”, diz professora de Direito e escritora

Publicado domingo, 05 de dezembro de 2021 às 06:00 h | Autor: Gilson Jorge
Foto: Rafael Martins | Ag. A TARDE
Foto: Rafael Martins | Ag. A TARDE -

Depois de 14 anos na Defensoria Pública do Estado da Bahia, a mestre em direito e professora alagoana Marta Torres tem muita história para contar. Boa parte delas tem muito a ver com a dificuldade das pessoas atendidas em entender a linguagem jurídica e aceitar que, sim, por mais injusto que parecesse, elas estavam encrencadas por descumprirem cláusulas em suas relações de consumo. Poeta e atriz, Marta encontrou na arte uma maneira de suavizar o conteúdo jurídico que queria expressar. Primeiro, quando lançou o documentário Ser-tão Inocente: as crianças de Monte Santo, de 2012, em que recorre ao audiovisual para explicar as petições e argumentos envolvendo um caso de adoção irregular de cinco crianças. Prestes a lançar o livro de crônicas Direito e arte no golpe de 2016 no Brasil, na próxima quinta, dia 9, no restaurante Pedra da Sereia, às 17h, a defensora pública    fala nesta entrevista sobre as incongruências no processo de destituição da presidente Dilma Rousseff há cinco anos, as falhas no Código de Defesa do Consumidor e a importância de simplificar a linguagem jurídica.

Em que momento você pensou em misturar arte e direito para tornar as questões jurídicas mais compreensíveis ao público?

Essa ideia veio do mestrado em relações sociais e novos direitos, na Universidade Federal da Bahia. Em 2011, tive aulas com os professores Nelson Cerqueira e Rodolfo Pamplona Filho. Nessas aulas, discutia-se muito a desconstrução da linguagem jurídica. Na época, eu já era defensora pública, atuava na defesa do consumidor. E já estava o tempo todo nesse processo de explicar para as pessoas o direito do consumidor, questões muito corriqueiras, numa linguagem que elas entendessem. E naquele ponto eu já estava atuando com processos judiciais com pessoas que, às vezes, não tinham nenhuma escolaridade para poder entender o que estava acontecendo no processo. Era sempre uma desconstrução desse formalismo da linguagem jurídica através da arte. Aí eu fiz o documentário Ser-tão inocente [sobre as crianças adotadas irregularmente em Monte Santo, Bahia] que era uma petição jurídica em forma de vídeo, com pedido, qualificação das partes, argumentação, no formato de uma petição escrita, só que em vídeo. E então comecei a fazer teatro, dava aula de direitos humanos na Faculdade Ruy Barbosa e fazia apresentações com grupos de poesia de Salvador. Em 2016, um grupo de escritores da área do direito mantinha um grupo de WhatsApp, o pessoal da Empório do Direito. Ninguém falava ainda sobre essa combinação de direito e arte, eram sempre artigos voltados para técnicas jurídicas. Foi quando saiu uma intimação judicial sobre um caso de violência policial e eu tinha presenciado, levado tapa também. Coisas do Porto da Barra (risos). Eu fui escrever e eles me deixaram publicar. Então, passei a escrever todos os domingos, com outra linguagem, mais literária. Foi o semestre inteiro até quando aconteceu o impeachment de Dilma Rousseff e começou a ficar meio chato no meio acadêmico porque as pessoas não estavam dando a devida importância para o momento, segundo eu entendia. Achava que era para ter acontecido uma explosão de revolta de quem estava entendendo o que estava acontecendo. E o pessoal não se revoltou.

Pelo título do livro, para você foi um golpe...

E olha que eu não defendo o PT. Inclusive quem achar que eu estou defendendo o PT porque estou falando que é golpe, em diversos momentos do livro é capaz de olhar assim e dizer “que menina chata, porque ela falou isso?”. Inclusive não foi culpa do PT, porque não trabalho com essa coisa de culpa, trabalho com os fatos. Escolhas políticas e suas consequências. Pode inclusive ter havido uma grande boa vontade, mas certas consequências, principalmente na área de defesa do consumidor, que foi o que eu vi, não tiveram boas consequências.

Tipo...

Tipo o Fies (Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior). Nossa, o Fies eu achei um fiasco.

As dívidas dos estudantes aumentaram.

No início, virou coisa boa e todo mundo se empolgou, e depois virou dívida, com quem trabalhava com as dívidas e os resultados dos processos dizendo “é dívida mesmo, quem vai ter que pagar é o seu avô, que foi o fiador do contrato”. Quando eu vi aquilo, não tinha como não criticar a política econômica que o PT tinha traçado antes. Mas nem por isso vi motivo para a aberração jurídica que foi a votação do impeachment. Eu fiquei: “Como assim?”.

Nesse grupo de WhatsApp dos escritores do direito, imagino que tinha um grupo que via como golpe e outro não.

Nem foi isso. Não foi que acharam que não era golpe. É que nas especialidades jurídicas, tal qual na medicina, as pessoas ficam entretidas nas disputas internas que estão travando. No ano do golpe, eu falo o golpe de 2016, porque foram vários golpes, teve o golpe do Código de Processo, teve a entrada em vigor do Código Florestal, que só de lembrar me dá vontade de chorar…

Então, veio a ideia do livro e você decidiu que iria escrever de uma outra forma?

Houve coisas propositais. Por exemplo, o documentário. Quando fui fazer a edição, pensei que seria uma petição jurídica para algum dia quando eu fosse dar aula. Mas, para mim, foi natural, eu sempre escrevi poesia, desde criança. Foi um momento em que eu estava trabalhando muito em casa e era uma hora de descansar da escrita unicamente do direito e fazer essa passagem e me expressar de outra forma, mais leve, embora o conteúdo continue sendo o conteúdo do direito. Shakespeare, em uma passagem de  Antonio e Cleópatra, diz que a mensagem contamina o mensageiro. Que Cleópatra quer matar o mensageiro que trouxe a notícia de que Antonio tinha casado com Otávia. E o mensageiro diz “mas eu não fiz nada…” (risos). Eu estava tentando não me contaminar com a mensagem. Tentando falar de outra forma o que eu já tinha falado diversas vezes [na defensoria] e as pessoas não captavam. Eu estava numa fase meio apocalíptica: dizia que ia trabalhar na Defensoria, colocava minha capa da morte e meu cajado para matar as esperanças das pessoas. Todos os dias, era o meu trabalho. Eu tentava dar notícias horríveis para as pessoas de uma forma que elas não ficassem com tanto ódio de mim. Vinte por cento das pessoas que eu atendia me processavam internamente na defensoria porque eu estava dando aquelas notícias. Eu tinha que dar notícias ruins, trabalhar em processos que não davam resultados, me matando de trabalhar e estudar procurando uma solução e não achando. E ainda porque eu entendi também que a defensoria pública, nas instituições criadas pelo sistema capitalista, é o SAC do sistema capitalista. Você tenta tudo, não consegue, vai reclamar na defensoria para entrar com uma ação contra quem quer que seja. É o fim de linha. Quando a defensoria não lhe dá uma resposta, você continua na defensoria, brigando com a própria defensoria. Eu tinha que entender maneiras diferentes de dar más notícias.

Você lembra de um caso mais drástico que a pessoa ficou muito revoltada?

Tem vários. Agora, olhando para trás, dá vontade até de rir. Tinha estagiários que riam junto na época, de tão terrível que era. A pessoa chegava dizendo “Olha, estou gravando. Vou levar você para o Varela”. E a gente tinha que lidar com essa coisa de a qualquer momento ter um escândalo e você ser cancelada. Isso não é novidade. Em 2016, já tinha isso. Qualquer deslize e você podia ser cancelado para o resto da vida.

Como foi a sua reação ao impeachment?

Na época, eu não me dei conta do tamanho do golpe que o impeachment representou. Hoje eu percebo mais. Acho que todo mundo percebe mais hoje porque foram sucessivos golpes. Naquela época, foi montado o terreno para que agora os golpes no direito, vários, estejam acontecendo de uma forma muito mais natural.

Dilma foi tirada para que as coisas começassem a acontecer a partir de Temer...

Exato. Mas já tinha havido algumas reformas importantes que têm consequências e que a gente está vendo agora. Por exemplo, a coisa da mineração, a Amazônia. Várias coisas terríveis. No livro, eu aviso. Por isso, que a capa do livro é um Brasil com um foguinho começando. Até 2016 foram jogando querosene e, em 2016, com o impeachment, riscaram o fósforo. Teve as eleições de antes [2014] que já tinham rachado o país, mas o que houve antes foi para preparar para o impeachment de Dilma. E foi feito de uma maneira que eles pudessem colocar a responsabilidade sobre o que estava acontecendo no governo do PT. Porque eles nunca, no meu ponto de vista, interromperam o projeto militar que foi traçado. Eu digo isso de forma legal. Em 1970, aqueles dispositivos legais  não foram interrompidos com a Constituição de 1988. Os processos continuaram. As mudanças na legislação ambiental sempre eram para proteger o patrimônio e não o meio ambiente. Isso vem de lá de trás e não parou de ser assim. Eu entendo que o Código de Defesa do Consumidor foi uma ilusão, criada para incentivar o consumo e as pessoas pensarem que tinham direitos. Depois, esses direitos foram retirados através das mudanças da composição dos ministros do STJ (Supremo Tribunal de Justiça) e aí mudando as interpretações que eram dadas ao código, mudando os resultados. O Código de Defesa do Consumidor, hoje, não é de muita utilidade. Tem algumas conquistas que estão no dia a dia, o maior respeito que a gente tem. No Peru, por exemplo, que não tem um código de defesa do consumidor como o nosso, é muito mais fácil ter abuso por parte dos lojistas. Aqui, para o pequeno comerciante, o pequeno prestador de serviços, o código veio como uma forma de educar. Para muitas coisas. Agora, em nível de plano de saúde, banco, essas instituições grandes, quando o código seria justamente para proteger o consumidor da massificação das relações de consumo, para esses daí eu acho que foi uma ilusão. Primeiro, eles deram o direito e depois interpretaram que ‘opa, opa, não é bem assim’.

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