Projeto 'Culinária de Terreiro' promove vivências gastronômicas e espirituais | A TARDE
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Projeto 'Culinária de Terreiro' promove vivências gastronômicas e espirituais

Publicado segunda-feira, 18 de outubro de 2021 às 06:00 h | Autor: Gilson Jorge
Gastronomia e vida espiritual: ela produz o próprio azeite | Foto: Olga Leiria | Ag. A TARDE
Gastronomia e vida espiritual: ela produz o próprio azeite | Foto: Olga Leiria | Ag. A TARDE -

Em uma tarde de 2014, Solange Borges saiu de Coqueiros de Arembepe, um loteamento vizinho à Estrada do Coco, incumbida de encontrar um novo endereço para o seu terreiro de Candomblé. O dono do imóvel que lhe havia sido doado disse que pretendia construir um condomínio residencial na área e não queria a permanência do templo.

Com o acerto de indenização pelo dinheiro investido, ela sai pouco depois de meio dia e ao anoitecer encontrou um terreno disponível nas imediações da BA 512. Um assentamento em terreno doado pelo Governo do Estado sete anos antes, com estradas de terra batida, gasodutos no subsolo, nas proximidades do maior polo petroquímico do Hemisfério Sul.

“Eu conheço a cidade quase toda, mas nunca tinha visto essa região”, destaca a cozinheira Solange, que é funcionária pública aposentada, ao relembrar a sua instalação no local, que faz parte de uma área hoje conhecida como Agrovila Pinhão Manso. Em toda a extensão do assentamento, há mais de 100 famílias. Mas apenas 20 participam da agrovila.

Quando o carro da reportagem estaciona, Solange recebe as visitas com um discreto sorriso e sem o comprimento usual em tempos de pandemia, com o toque dos punhos. Mesmo antes da disseminação do coronavírus nunca foi de muito contato físico, herança familiar.

Preparar comida para alguém é, segundo ela, uma das maiores manifestações de afeto que se pode ter. “Eu não gosto muito de ficar bajulando as pessoas, abraçando, beijando. Minha forma de mostrar afeto é fazer comida”, pontua, iniciando uma série de sorrisos largos que seguiriam até o fim da entrevista.

A mesa com um cesto de frutas, garrafa térmica com café e aipim cozido é ocupada nas laterais. “Apenas a pessoa que chefia a casa deve se sentar nessa cabeceira”, ensina Solange, apontando para um canto da mesa, embora ela mesma não tenha exercido a prerrogativa. Mas não pense em ocupar a outra extremidade. Sentar-se à outra cabeceira seria um desafio à liderança da dona do imóvel.

Fogão a lenha

A casa, ainda inconclusa mas com um exuberante fogão a lenha, está voltando a receber grupos de interessados em aprender sobre a gastronomia baiana do ponto de vista espiritual. Fazer óleo de dendê e fritar acarajé e preparar outras receitas (além de, claro, saborear os pratos), mas também como viver e cultuar o sagrado.

“Aqui estamos construindo uma história bem bacana”, define a mameto [sacerdotisa], que tem incentivado 20 famílias vizinhas a plantar itens que podem ser comercializados em feiras e planeja construir uma casa de farinha para beneficiar a mandioca produzida na vizinhança, além de lofts para hospedar visitantes que queiram permanecer por vários dias.

Por ora, as vivências começam às 9h e seguem até as 14h. “Mas tem gente que fica até de noite”, conta. Por uma taxa de R$ 249, o interessado pode marcar a participação na vivência através do Instagram @culinariadeterreiro. A vivência pode ser feita online também, com preço a combinar. Parte do dinheiro é usado na compra dos ingredientes nas mãos dos vizinhos.

Um dos objetivos de Solange com a vivência é normalizar o Candomblé e derrubar preconceitos sobre o culto. Explica alguns rituais sagrados, como a raspagem de cabeça, e desmistifica informações que circulam como a ideia de que o iniciado fica trancado num quarto por vários dias.

A necessidade de comunicar as rotinas do Candomblé veio quando sua filha passou por uma experiência constrangedora, com um colega de sala cheirando o seu corpo porque tinha escutado que as pessoas de santo fediam.

Mesmo em face a manifestações racistas e classistas, Solange não se deixa afetar. Rolando no celular a barra de comentários de um post na sua conta do Instagram, exibe uma ofensa à sua aparência física, mas sorrindo conclui que deve se tratar de um perfil falso pela pouca quantidade de seguidores em relação aos perfis que essa conta segue.

Tecnologia

No meio do mato, em uma área em que o sinal de internet é instável, a tecnologia tem sido fundamental para a divulgação de seu projeto. Orgulhosa, Solange mostra o vídeo recebido de uma aluna de São Paulo, mostrando sua evolução ao bater a massa do acarajé.

E uma foto com um sambista da Beija-Flor no Rio de Janeiro, que depois da aproximação virtual anunciou sua vontade de conhecer o projeto. “Um dia, ele ligou querendo saber como chegar. Eu perguntei onde ele estava e ele disse: aqui, numa praça em Camaçari’”, conta, rindo.

Outra paulistana, a chef e pesquisadora Aline Guedes fez vivência online. “Solange é um ser iluminado, uma pessoa de muita representatividade para mim que sou também uma mulher negra, mãe de três crianças, e que também busco dentro das minhas pesquisas esse resgate”, afirma Aline, que estuda a questão dos quilombos e conheceu Solange virtualmente em maio deste ano.

O chef soteropolitano José Machado foi conhecer o Culinária de Terreiro em novembro de 2017, depois que um amigo compartilhou informação sobre o projeto no Facebook. Marcou com um grupo, pegou carona e partiu para Camaçari. “Eu sou muito curioso. Liguei imediatamente e falei com a própria Solange. Sempre que posso estou lá com ela fazendo receitas, resgatando a comida de afeto que era feita por nossos pais e avós”, declara.

Solange começou a se envolver com culinária ainda aos 9 anos quando, recém-chegada de Salvador, com a mãe, uma ex-empregada doméstica, a ajudava a vender acarajé nas ruas de Camaçari. “Eu me apaixonei por fazer comida”. Depois de ter sido aprovada e concurso público, três anos após a morte de sua mãe, foi trabalhar no Hospital Geral de Camaçari. Graduou-se em Letras, trabalhou como assessora de político, mas nunca deixou de fritar acarajé. Sempre que havia um evento na cidade, tratava de montar um tabuleiro.

Para Solange, que é mameto do terreiro Unzo N’Ganga, foi inquice [divindade, em línguas banto] que abriu os caminhos para que ela encontrasse esse terreno há sete anos. O dono do imóvel anterior, por sua vez, não conseguiu ainda levar adiante o seu projeto de condomínio. “Eu passei por lá outro dia e não tinha nada construído”, declara.

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