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Uma cilada junina

Leia a crônica de autor de "O coração em outra América"

Publicado domingo, 26 de junho de 2022 às 06:00 h | Autor: Evanilton Gonçalves*, escritor
"Cobrança obrigatória de couvert em bar ou restaurante deveria ser proibida por lei"
"Cobrança obrigatória de couvert em bar ou restaurante deveria ser proibida por lei" -

Cobrança obrigatória de couvert em bar ou restaurante deveria ser proibida por lei. Veja bem, eu falei cobrança obrigatória. Então, me desculpem os bons músicos e também as pessoas dispostas a financiar indistintamente essa experiência musical, mas essa é uma crônica sobre uma experiência ruim num momento em que eu voltava a celebrar os festejos juninos.

A questão é que quando quero pagar pra ouvir música, costumo ir a shows, em que sei que vou ouvir o que gostaria de ouvir, não a bares ou restaurantes, onde posso ser surpreendido por músicos que não estão em sintonia com minha noite. Por isso a sensação de má sorte me invadiu e contaminou os amigos que me acompanhavam numa ida ao Pelô.

Explico: a gente mal havia chegado, depois de comprarmos umas bebidas no Cravinho, e já curtíamos o clima gostoso do forró ao vivo no Largo do Cruzeiro. Começamos a ensaiar passos de forró e eu, que não sei dançar, até me animei e me movimentei descoordenado, sem medo de ser feliz. Alguém do grupo falou em voz alta: valeu esperar, erguendo o copinho descartável de cafezinho, sem cafezinho, e apontando pra faixa suspensa na decoração colorida com a referida frase.

Estávamos há dois anos sem o nosso maravilhoso São João, porque um organismo diminuto em formato de coroa atacou os mamíferos pelo mundo e fez sucumbir muitos de nós. Divaguei por um instante: desde que o animalesco (é bom lembrar) Homo Sapiens (quanta humildade, hein?) passou a ter grande influência sobre a transformação do ambiente, as coisas não andam nada boas.

Quem foi que disse mesmo que queria comer algo, hein? Até hoje, seguimos apontando o dedo uns pros outros como naquele meme dos vários homens-aranhas. O fato é que saímos do forró gostoso e de graça e nos deslocamos indecisos até entrarmos num restaurante que nenhum de nós havia entrado antes. Pronto. O artista do estabelecimento, que mantinha o ritmo do arrasta-pé que corria solto lá fora, saiu de cena assim que sentamos. Foi substituído por um sujeito que parecia ter sido arrastado às pressas de algum palco de rock alternativo com a missão de provar aos ali presentes que ele era capaz de causar ruído ao som reinante no Centro Histórico no período junino. Eu achava que tudo tinha seu espaço e seu lugar, mas o sujeito, vestido de preto dos pés à cabeça, que empunhava um violão desafinado e executava o minimalismo musical, achava que não.

Enquanto nos entreolhamos, o tempo ficou em suspenso, confuso. Passou um tempão até tudo parecer muito rápido, agitado e com uma resolução acelerada, como acontece com esta crônica.

Nossos sentidos emprestam cores e sabores ao mundo. Havia expectativas frustradas em meu grupo. A comida e a bebida demoraram pra chegar. Chegaram e se provaram ruins. Nos questionamos por que não saímos assim que os sinais do além alertavam pra uma cilada. Como uma espécie de salvação inesperada, um exército de baterias se aproximou do local onde estávamos e com seu ritmo ensurdecedor fez o músico interromper a contragosto sua apresentação. Era nossa deixa.

Erguemos as mãos como quem pede socorro e a garçonete trouxe a conta. Aí veio o susto, o valor inflacionado pelo couvert. Pensei nessa palavra, inflação, e em toda desgraça que ela representa quando está alta. Até protestamos, mas, afinal, estamos no Brasil, país onde se paga até pra sofrer.

*Evanilton Gonçalves é autor de O coração em outra América (Paralelo13S)

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