Na Bahia para rodar Malês, Antonio Pitanga fala da história do Brasil

Uma semana após completar 83 anos, ator retorna para a cadeira de diretor

Publicado sábado, 11 de junho de 2022 às 17:32 h | Atualizado em 11/06/2022, 17:34 | Autor: João Gabriel Veiga*
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Pitanga atua e dirige o longa Malês, ainda sem previsão de estreia
Pitanga atua e dirige o longa Malês, ainda sem previsão de estreia -

Antônio Pitanga é a prova definitiva de que a história não para. Uma semana após completar 83 anos, o ator que marcou o Cinema Novo e se consagrou como um dos pilares do audiovisual e do teatro fala sobre se lançar em mais um desafio: retornar para a cadeira de diretor. Mais de quatro décadas desde Na Boca do Mundo, Pitanga finalmente está realizando seu projeto dos sonhos, o longa-metragem Malês — atualmente em fase de filmagens aqui na Bahia.

Em entrevista ao jornal A TARDE, Antônio conta que se vê muito mais novo do que a idade, algo que seu filho Rocco — que também está no elenco de Malês —, enfatiza: “é um garoto que joga futebol, desfila, faz tudo”. Nas palavras do próprio Antônio, “o que envelhece é jogar toalha”. Com a energia de quem nasceu no Pelourinho e foi batizado na Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, o artista ainda tem muitas histórias para contar – histórias de sua vida e da História com H maiúsculo que ele considera essenciais para o Brasil.

Uma delas é a história da Revolta dos Malês, capítulo do passado da Bahia e do país que inspira um projeto que Antônio gestou por décadas.

“O Glauber [Rocha] sempre me dizia ‘a gente tem que produzir Malês pra você dirigir’. A gente conversou sobre isso em um dos últimos momentos que o vi antes dele morrer, quando fizemos o último filme dele [A Idade da Terra, de 1980]. Ele dizia que a gente tinha que voltar pra Bahia, pra Salvador”, conta.

“Eu sou baiano, nasci na primeira capital do país”, prossegue Antônio. “Todos os movimentos, desde a Revolta dos Alfaiates, Búzios, os Malês… Tudo isso me foi ensinado. Os mais antigos sabem da história, e eu sou um deles. Nasci quase no início do século passado, então tenho a história muito narrada. São histórias que entendo desde criança, quando estudei no Colégio Ypiranga, onde também estudou Castro Alves”. Ele lamenta que essas histórias tenham deixado de ser contadas para as gerações mais jovens.

De volta para a Bahia, terra que ele chama de Pequena África, o cineasta reflete sobre o que se conta da história do Brasil. “Pouco se conta sobre ela, e menos se conta quando os protagonistas são negros ou negras. Tenho essa necessidade de mostrar que esses negros são brasileiros, alguns foram sequestrados da África, terra-mãe da sabedoria, alguns nasceram aqui e fizeram o mais importante levante desse país”, ele diz, e aponta também outros nomes de outros períodos que ou não são citados, ou cuja negritude é apagada, como Juliano Moreira, Machado de Assis e Lima Barreto.

“Isso me cutuca. A gente só sabe que nossa formação é branca de olhos azuis, mas não é só isso. Cadê as lideranças negras, as mulheres como Tia Ciata? Como a gente conta a história do nascimento do samba sem passar por Santo Amaro, pelo Recôncavo baiano? A história que cresci ouvindo dos meus avós é a história do Brasil que não está nos livros. E se a história não está toda nos livros, não tem como a formação ser completa. Quem escreveu essa história? Eu também quero escrever ela. Essa é a nossa chance de contar a história”, declara.

Esse conto do levante dos escravos contra o Império em 1835 — considerado o maior da história brasileira — é contado por Antônio a seus filhos antes mesmo de estruturar o projeto do filme e caçar financiamento. “A história chegou dentro de casa para mim”, conta o caçula Rocco Pitanga, que também relembra ouvir sobre esse projeto a pelo menos vinte anos.

Já sua filha mais velha, Camila Pitanga, recorda-se exatamente do primeiro momento em que Antônio a convidou formalmente para participar do filme. “Meu pai, como diz a Elisa Lucinda, é um grande griô, um grande contador de histórias, seja as da sua vida, seja emblemáticas como Malês. Ele me passou essa história quando caminhávamos nas pedras do Pelourinho, quando a gente tava filmando Pitanga [documentário dirigido por Camila em 2017]. Não foi a primeira vez que a ouvi, mas foi muito importante para entender o sentido da realização do filme, do projeto”, conta.

Falar sobre o hoje

Camila e Rocco integram o elenco de Malês, ele em papel de protagonista junto a Samyra Carvalho. O filme narra a jornada de Kalima e Dassalu, jovens noivos muçulmanos da aristocracia do Reino de Òyó, na África de 1833. Em plena cerimônia de casamento, eles são capturados, separados e vendidos como escravos para o Brasil. Ao chegar na Bahia, encontram um mundo completamente diferente daqueles que conhecem, e passam a lutar por sua liberdade, enquanto buscam se reencontrar em meio à principal luta armada feita por escravizados contra o domínio português.

As crianças de Pitanga falam com olhos brilhando sobre a experiência de estar no set do pai. “Eu fiquei num orgulho, sabe? Não só pelo sentido da história que a gente tá contando, mas no sentido da realização desse grande homem que é Antônio Pitanga”, relata Camila. “E é um set extremamente harmonioso, contando com uma equipe aguerrida, apaixonada pelo trabalho. Tudo transcorreu com muito afeto, muito amor, seja amor ao projeto, seja amor a nós, família que somos”.

Rocco acrescenta: “É uma delícia ser dirigido por um ator. Ele tem toda a consciência e a sensibilidade de deixar a liberdade artística acontecer, porque existe uma coisa muito maior do que tá escrito no roteiro, tem alguma coisas nas entrelinhas. Ao estar sendo dirigido por um diretor que também é ator, existe uma cumplicidade muito grande de não ficar somente e objetivamente no que tá proposto”.

Eles também refletem sobre a importância dessas histórias, valores transmitidos dentro da família. “É quase que fazer uma reparação cultural. É colocar à mostra, em exposição, uma coisa que foi deturpada e a gente sofre os impactos até os dias de hoje. A gente sofre o impacto do estigma”, pondera Rocco.

“Acho que não só Malês”, diz Camila, “mas todo o repertório audiovisual da história que a história oficial não conta dá a oportunidade de fazer a leitura de como a nossa pretitude foi extremamente organizada, combativa, insurgente, e que essas insurgências sejam também espelho do que a gente pode fazer pelo nosso país hoje, da nossa potência de transformação e união. Ele age no simbólico para falar sobre o hoje”.

Vou bater na porta e abrir

Um drama histórico centrado na perspectiva humana dos fatos, Malês concluiu sua primeira fase de gravações em Maricá, no Rio de Janeiro, e agora viaja para filmar na Bahia.

Uma das raras produções nacionais de grande porte a mostrar tantos rostos negros à frente e atrás das câmeras, a falta de apoio e financiamento foi uma das razões da demora de décadas para o projeto sair do papel.

“Tenho batido em portas e encontrado na Bahia uma liderança que me apoia muito”, conta Antônio, que encontrou um estúdio e distribuição na Globo Filmes e apoio da Prefeitura de Salvador e do Governo do Estado.

“O filme é da Bahia, do Brasil, e preciso de vocês para fazê-lo. Não tenho como fazer sozinho. Preciso de parcerias, financiamento. Não pode ser só o Pitanga ter uma ideia maravilhosa. Cinema custa dinheiro, mas o retorno do PIB que a cultura dá para o governo brasileiro é imenso”.

“As pessoas precisam ter noção do nível de emprego que um filme dá. A gente vai empregar mais de 500 pessoas. Direta e indiretamente, chega até quase mil. Só de equipe, tem mais de 250 pessoas, e ainda tem a figuração baiana, atores e atrizes baianos… Esse pessoal come onde? Dorme onde? Tudo isso é imposto, emprego… O que a gente devolve quando a gente pede apoio, financiamento, é gigante, esse dinheiro é devolvido”, explica.

No entanto, Pitanga diz que esses percalços não o desestimulam. Afinal, ele vê a cultura como algo essencial para a vida, e sua luta como um capítulo de uma história que não acaba: “A Bahia é a música, é a dança, a culinária. Esses elementos da cultura africana são o pilar que mantém o brasileiro vivo. Você come, você dança, você canta a cultura negra. É difícil, mas a gente continua trabalhando, assim como eu acordo todo dia, jogo bola, ouço música. Eu me recuso a parar porque já era para o negro não ter mais que pedir. Eu vou bater na porta e vou abrir ela”, afirma.

Rocco e Camila, ambos atuantes também como produtores nos bastidores de outras produções, enxergam o presente e o futuro do cinema brasileiro com olhos otimistas. Para Rocco, apesar da falta de investimentos, o público diz o contrário do empresariado sobre filmes como Malês: “A gente tem feito cada vez mais filmes, e o público tem aceitado cada vez mais também”.

“É uma demanda que você pode conferir na estreia do Medida Provisória”, responde Camila ao ouvir sobre a noite de lançamento avassaladora do filme em Salvador. “Aqui no Rio foi a mesma coisa, em São Paulo também, a gente pode falar sobre esse filme como um grande termômetro de uma demanda de plateia, de público. O grande dilema desse filme era ter poucas salas, porque as salas que estão exibindo o filme estavam absolutamente lotadas e aquém do anseio do público de assistir”.

Os espaços — dentro das salas de cinema, nos sets de filmagens, e em toda sociedade — não podem ficar vazios, defende Antônio. “Eles nunca ficam vazios. Quando eu e Glauber saímos da Bahia, os jovens como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Moraes Moreira, todos daquela turma ocuparam o espaço. A Tropicália nasceu dessa discussão de que Brasil é este, que Brasil nós queremos. A gente queria voltar pra Bahia para fazer parte dessa conversa. E voltamos”, anuncia.

*Sob supervisão do editor Chico Castro Jr.

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