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Sinistros de trânsito são grande problema de saúde pública

Presidente da Associação Brasileira de Medicina do Tráfego avalia o cenário de acidentes de trânsito

Publicado domingo, 22 de maio de 2022 às 20:22 h | Autor: Jane Fernandes
Antônio Meira Júnior é  presidente da Associação Brasileira de Medicina do Tráfego
Antônio Meira Júnior é presidente da Associação Brasileira de Medicina do Tráfego -

Presidente da Associação Brasileira de Medicina do Tráfego (Abramet), Antônio Meira Júnior integra a diretoria do Conselho Regional de Medicina da Bahia e da Associação Bahiana de Medicina. Especialista em Medicina do Tráfego, ele fala, nesta entrevista exclusiva, sobre os sinistros de trânsito como problema de saúde pública.

Como avalia o cenário brasileiro em relação aos acidentes de trânsito? 

A gente tem, cada vez mais, reforçado a mudança do nome dos acidentes de trânsito para sinistro de trânsito, porque quando fala acidente dá ideia de algo acidental, do acaso, e a gente sabe que a maioria das tragédias no trânsito são provocadas e são passíveis de prevenção, têm o envolvimento do fator humano, um desrespeito à lei de trânsito e poderia ser evitado, aí a ABNT mudou o nome para sinistro de trânsito, mas vai demorar um tempo para o pessoal se adequar. Esses sinistros de trânsito representam a segunda causa de morte não natural no país, em alguns estados chega a ser o primeiro. No caso da Bahia é o segundo, perdendo para mortes traumáticas como homicídio, então é um grande problema de saúde pública. O Brasil foi signatário da última Década de Ação pela Segurança Viária, que foi de 2011 a 2020, com o objetivo de reduzir em 50% o número de mortes, e o Brasil não conseguiu atingir isso, reduziu cerca de 37%. Salvador foi um exemplo nacional de uma cidade que conseguiu atingir a meta, Salvador reduziu em mais de 50% o número de mortes. Mesmo assim, a quantidade de mortes e sequelados vítimas de sinistros de trânsito é uma coisa intolerável, porque imagine que você está tendo perdas de vida, com a maioria das vítimas representadas por adultos jovens do sexo masculino, numa fase ativa produtivamente, então imagine uma mãe que perde um filho recém-formado vítima de acidente de trânsito, que sai de casa sorrindo, feliz, contente e não volta para casa, não existe um remédio, alguma coisa que possa diminuir o sofrimento da família que perde um ente no trânsito, a nossa meta é sempre chegar ao zero. A gente sabe que isso é difícil de acontecer, mas é possível, alguns países têm reduzido drasticamente o número de feridos e de lesões no trânsito. O Brasil está reduzindo, mas ainda tem que reduzir muito, e uma das coisas que precisa ser feita é que o governo, os gestores, os prefeitos, os secretários, os governadores, toda parte executiva, legislativa, judicial, todos os órgãos coloquem como prioridade isso, cada um fazendo a sua parte. Estamos bastante esperançosos, pois entrou em uma nova Década, e o Brasil também tem um plano nacional pela redução de lesões e mortes no trânsito, chamado Penatrans, então a gente acredita que depois de ter passado uma década em que não conseguimos atingir o objetivo, agora nessa segunda década da ONU e com o plano nacional, a gente acha que dessa vez será possível atingir a meta de reduzir em 50% o número de mortes, ou até mais, porque a gente está vendo um maior engajamento em relação a isso. 

Na avaliação da Abramet, os sinistros de trânsito são percebidos como um problema de saúde pública pelos governos e pela sociedade?

Na verdade não, a gente acha que precisa de um maior engajamento. Quando tem uma doença que causa um grande número de mortes tem um engajamento maior, a gente vê que com o trânsito é como se o pessoal se acomodasse com o que acontece e não priorizasse as ações. A gente sabe que a maioria das ações preventivas tem efeito, os sinistros de trânsito são passíveis de prevenção, eles podem ser evitados, então a gente acha que ainda não chegou ao ideal, que precisa de maior dedicação e maior empenho para que se consiga combater esse agravo de saúde pública tão grave que é o sinistro de trânsito. E a gente está esperançoso com o Penatrans, porque tem visto que o governo pelo menos tem um plano e ele está sendo levado de estado a estado com a solicitação de uma assinatura de compromisso, então está tendo um compromisso formal para se cumprir a meta, então acreditamos que pode dar certo. Vemos que quado se fala em trânsito, o pessoal pensa em engenharia, educação e legislação. Ótimo, esse tripé tem tudo a ver com trânsito, mas esquecem do principal, o deslocamento humano hoje, com essas tragédias, ocupa a segunda causa de morte não natural, é um dos maiores problemas de saúde pública do país, então precisa de uma consideração maior da saúde, dos gestores de todos os níveis. É muito mais barato investir em prevenção, em cada um dólar investido em prevenção do acidente de trânsito você economiza seis dólares, então se você investe na prevenção que é mais barato, você vai reduzir o número de acidentes, reduzindo o número de acidentes, você reduz o número de vítimas que serão atendidas nos hospitais, então acaba liberando leito hospitalar para aqueles outros tipos de doenças que não são passíveis de prevenção. As vítimas de trânsito são muito mais onerosas para o Estado, porque são vítimas que sofrem vários traumas, têm o chamado politraumatismo, passam por cirurgias grandes, precisam de atendimento médico de vários especialistas, como neurologista, ortopedista, angiologista… precisam ficar internados em unidade de terapia intensiva (UTI). Com a prevenção vai diminuir o número de acidentes, mais vidas serão salvas, menos pessoas serão encostadas no INSS, ou seja, menos pessoas inaptas ao trabalho, o que causa também demanda de recurso público. É bom para a cidade, é bom para as pessoas, então precisa de um engajamento geral. Muitas vezes o pessoal quando imagina o trânsito só pensa em multa, só pensa em Detran, em fiscalização, e a gente sabe que a fiscalização é uma etapa, que é importante, mas não é suficiente. 

A Abramet considera que a legislação de trânsito brasileira é adequada? O que falta para que os resultados sejam mais expressivos?

A legislação brasileira em relação a trânsito é uma das melhores do mundo. Nós achamos o Código de Trânsito Brasileiro uma das leis mais bem escritas do Brasil e e isso também é considerado lá fora, a questão no Brasil é a impunidade. É difícil você ver uma pessoa presa porque matou outra no trânsito enquanto estava dirigindo sob efeito de álcool, tem inúmeros recursos, inúmeras maneiras de burlar a lei, que acaba dando a impressão que você não vai ser punido, aí fica aquela sensação de impunidade, acabam prevalecendo aqueles infratores contumazes. Se você for comparar com os Estados Unidos ou outros países, se a pessoa for pega dirigindo usando álcool e teve um acidente, ela vai para a cadeia, essa é a diferença. Nós temos uma lei muito boa, mas o que acontece é que impera a impunidade e acaba virando uma certa lei morta, então a gente precisa aperfeiçoar e punir mais. Outra coisa importante é que além da punição, a gente precisa focar na educação, campanha de conscientização tem que ser uma coisa permanente. Tem a fiscalização também, pois na Bahia, a maioria dos municípios não tem o trânsito municipalizado, então acaba não tendo a presença do Estado, a fiscalização lá, e aí tem a impunidade. A  gente acredita que a municipalização do trânsito é importante e o que falta é a lei ser mais efetiva, acabar com a impunidade e fiscalizar mais. Não se leva a lei de trânsito muito a sério, o povo relaciona muito à questão da multa, existe uma ideia de que a multa existe para alguém ganhar dinheiro, isso tem que acabar. Existe uma coisa simples para você prevenir multa: seguir a lei de trânsito. A educação é uma coisa contínua e a longo prazo, é uma das coisas mais efetivas. Para mudar o comportamento, a educação de trânsito tem de vir desde a infância. Não é educação apenas de ensinar uma placa de trânsito, mas levar preceitos de cidadania e respeito ao próximo. O tema da campanha do Maio Amarelo desse ano é “juntos salvamos vidas”. Não é só a Abramet, não é só o Detran, não é só a Polícia Rodoviária Federal, todo mundo tem de compreender o seu papel. 

Recentemente, um acidente com um ex-BBB chamou a atenção para o uso do cinto de segurança no banco de trás. Quais os riscos de não usar o cinto mesmo atrás?

Existe uma falsa impressão de que no banco traseiro você está mais seguro, muitas pessoas não usam o cinto de segurança por conta disso. Outras pessoas também acham que o cinto de segurança não é necessário ou que aqueles cintos abdominais, do banco de trás de carros mais antigos, não ofereciam segurança adequada, o que não é verdade. O cinto é importantíssimo no banco de trás, pois vai oferecer proteção, evitar que você seja projetado para fora do carro, que você colida com outras pessoas ou com partes do carro. Se você não estiver utilizando o cinto de segurança no banco de trás, aumenta em cinco vezes o risco de morte do ocupante do bando da frente, mesmo ele utilizando o cinto. Isso se deve ao fato do ocupante do banco de trás ser arremessado violentamente contra o ocupante do banco dianteiro, transformando-se numa real ameaça à integridade daquela pessoa, porque o ganho de massa daquele corpo que se desloca em alta velocidade é enorme. É preciso utilizar o cinto de segurança em todas as posições do veículo, é imprescindível, é um equipamento praticamente simples e que tem um efeito extraordinário na redução do número de mortes nos acidentes de trânsito. É bom lembrar que o cinto é um dispositivo de segurança passiva, ele não impede o acidente, ele impede as consequências de um acidente, no acidente ele vai lhe manter naquele local evitando que você tenha lesões graves ou óbito. 

Qual o papel da medicina do tráfego na promoção de um trânsito seguro? 

 Está na lei, entrou recentemente no Código de Trânsito, que para realizar o exame de aptidão física e mental do condutor ou daquele candidato a condutor precisa ser especialista em medicina do tráfego. Cabe ao médico dizer se aquela pessoa está apta a conduzir um veículo em segurança. Não estando apta naquele momento, se ele tiver alguma comorbidade, alguma doença, algum problema que seja passível de recuperação, ele pode receber um resultado de inapto temporário até ele corrigir, voltar e poder ser habilitado com segurança. Tem casos que não pode ser habilitado e cabe ao médico dizer isso. Além disso, nós realizamos ações e estudos capazes de contribuir com a promoção da saúde e prevenção do sinistro de trânsito, sempre tentando preservar vidas e diminuir o sofrimento. Nós realizamos também trabalhos científicos ligados à medicina e segurança do tráfego. Como habilitar uma pessoa com mobilidade reduzida, pessoa com deficiência? Que adaptação veicular tem que ter o carro daquela pessoa que não tem duas pernas, por exemplo, para que ele possa dirigir. Esse trabalho de inclusão social da pessoa com deficiência é um trabalho que a gente tem muito orgulho de fazer. Colaboramos com o poder público na concepção e elaboração de leis, na última alteração do Código de Trânsito, nós fomos recordistas em citações de parlamentares, eles utilizavam as emendas e citavam dados científicos da Abramet, da medicina do tráfego. A gente atua muito com o poder público para que o tráfego receba o tratamento de atividade de saúde pública, que o povo esquece, bota o tráfego apenas como questão de engenharia e de educação. Em toda a atuação da Abramet, a gente divulga e incentiva a preservação da vida do tráfego, nos deslocamentos. Vale lembra que o nome é medicina do tráfego porque atua em qualquer tipo de deslocamento humano, seja ele terrestre, aquático, aéreo, tudo tem a presença da medicina do tráfego. Por exemplo, as pessoas que voam como piloto, copiloto, tripulação, eles têm que ter também um certificado médico aeronáutico, como se fosse uma CNH, e nesse certificado, uma das especialidades envolvida, não é a única, é a medicina do tráfego. Mas o nosso foco principalmente é nessa questão do trânsito e a gente tem orgulho de dizer que dois trabalhos nossos viraram lei, que foi a lei seca e a lei das cadeirinhas, baseadas em estudos técnicos da Abramet. 

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