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01/04/2024 às 9:00 - há XX semanas | Autor: Priscila Miraz*

MUITO

Olhares - A memória das árvores

Olhar um mapa é antes de tudo se perder

Cigarras povoam a enorme árvore da instalação quem procura o que não guardou, quando encontra não reconhece
Cigarras povoam a enorme árvore da instalação quem procura o que não guardou, quando encontra não reconhece -

Derramei minhas fábulas em seiva de terra com meus olhos d'água foi o título do capítulo expositivo de JeisiEkê de Lundu, que esteve aberto para visitação no Goethe-Institut, de 31 de janeiro a 28 de março. JeisiEkê é artista visual, escritora e performer transvestigênere nascida na divisa de Minas com a Bahia.

Cartas náuticas, mapas, caminhos pontuados, entremeados aos caminhos de pessoas próximas e também desconhecidas, compõem uma maneira de abrir os sentidos para o contato com as esculturas, pinturas, videoperformances e instalações da artista.

Isso porque temos tanto a presença dessas representações visuais inventadas de organização do espaço e do tempo nas produções da artista – as Cartas náuticas para atravessar a dor (2023), desenho em nanquim, aquarela e tinta de terra sobre papel de algodão e canson – quanto pela forma que o diálogo curatorial e museográfico deu para as obras no espaço expositivo, possibilitando trajetos sem os fechar numa ordem exata – desvio do mapa, caminhos vicinais que desembocam e se alimentam de memórias que a artista movimenta e compartilha como imagem e palavra.

Olhar um mapa é antes de tudo se perder. Paradoxo de uma criação humana que tem o objetivo direto, claro, de localizar com precisão. Mas é preciso saber usar um mapa. Aprender suas proporções relativas e todos os acordos que as escalas nos pedem, numérica e graficamente, para sua exatidão caber num papel.

Com as cartas náuticas de JeisiEkê, nosso acordo é sobre o espaço e o tempo que está entre as linhas do mapa, suspenso na fronteira, e que é todo um mundo que nos envolve: “Revisar as cartas antes de avançar em pleno mar das memórias. Precaver-se de todos os instrumentos antes de partir”, aviso que aparece em uma das cartas náuticas. A partir daí, feito o acordo, habitamos a fabulação, mais do que a fábula. Fazemos juntas.

O som predominante é o das cigarras que povoam a enorme árvore da instalação quem procura o que não guardou, quando encontra não reconhece (2024), e que faz vibrar, lá na outra sala de exposição, as linhas em preto e marrom da carta náutica maior, estendida sobre um suporte horizontal. Nos dobramos sobre ela para ver e ouvimos.

Uma parte dos trabalhos que fazem parte desse capítulo expositivo foram criadas na experiência da residência artística Ocupação Casamendoeira, realizada na casa de Dona Norma, no Povoado do Cruzeiro, zona rural de Conceição da Feira, por sua neta, a escritora e artista visual Deisiane Barbosa. Foi na exposição antes da casa, da árvore, com trabalhos das artistas participantes da residência, que entrei em contato com a produção de JeisiEkê de Lundu.

Estavam lá as pinturas O pente de Manjove ressurge nos fios da memória, Provérbios de fogão à lenha e Fogão de Dona Norma, a escultura Fogão para alimentar toda essa gente, os pratos de nagé em que foram feitas as biotintas e uma caixa de madeira com pequenos vidros com as tintas prontas, a videoperformance Gesto para despertar pilão, e a escultura Dispositivo de ligação entre os olhos d´água e a amendoeira.

Também estava lá o título da exposição, que repito aqui: Derramei minhas fábulas em seiva de terra com meus olhos d'água. Repito o título da exposição junto com os de alguns dos trabalhos, porque assim, perto uns dos outros, podemos percebê-los como núcleos narrativos que reúnem em si acontecimentos e pessoas que continuam em outro conto ou que se perdem, tomam outro rumo. A própria forma como a artista se refere à exposição – capítulo expositivo – diz o quanto a escritora está implicada no processo poético.

Todo esse enovelamento de pequenos núcleos narrativos conectados abarca também o envolvimento da visitante: abrir as portas da sala em que estava a árvore de cinco metros da instalação quem procura o que não guardou, quando acha não reconhece, recendendo a serragem de jacarandá que recobria o chão, no mesmo instante me carregou de volta pros sábados que passei com meu pai na marcenaria. Minha infância esteve ali, presente também. O título da obra é uma frase que o avô da artista falava muito e que passou a ser repetida por sua mãe.

Essa árvore escultura foi criada para o espetáculo Esperando Godot, texto de Samuel Beckett, que em 2022 foi dirigido por Mirian Fonseca em Salvador. Depois de restaurada, essa árvore foi o centro da instalação que tomou conta de uma sala toda do Goethe-Institut, com o chão de serragem de cores distintas, com as nagés que comportam no fundo os resquícios da feitura das tintas de terra, com as cigarras nos galhos.

Nessa mesma sala, também foi exibida a videoperformance Gesto para despertar pilão (2023), realizada na Casamendoeira, ritual coletivo para retornar ao convívio cotidiano o pilão de Dona Norma: ele é trazido para fora da casa, lavado e seco para servir novamente como local de transformação de matéria.

Memória em fabulação

As presenças das avós em seus objetos e o entrecruzamento de suas histórias a partir da memória em fabulação da artista, são os nós de onde se espraiam as outras narrativas, e se esse nó se faz visível, talvez seja na escultura Dispositivo de ligação entre os olhos d´água e a amendoeira (2023).

Dona Norma, matriarca da casamendoeira, Manjove, avó materna de JeisiEkê que habitou olhos d’água: a vida começa com a memórias das árvores, até mesmo as águas dos rios, que depois espalham as memórias pelo mundo.

No O livro das árvores, uma publicação resultante do projeto A natureza segundo os Ticuna, encontramos que para a cultura ticuna foi de uma árvore, uma samaumeira caída, que se formou o rio Solimões, e de seus galhos, outros rios menores e os igarapés. Todo o mundo cabe na memória de uma árvore, que sabe também do barro, elemento fortemente presente nos trabalhos de JeisiEkê.

O pente de Manjove é uma lembrança que se materializa em o pente de Manjove ressurge nos fios da memória (2023), no díptico pente de Manjove: miragem em chão de terra vermelha (2023), e na pintura em tecido em que quatro pentes de Manjove repetidos do lado direito são acompanhados de frases: “com suas onze filhas cavucou/ fogão coberto de barro branco para fazer crescer gente/ fogão coberto de barro branco de alimentar toda minha gente/ alimentar toda essa gente”.

Duas esculturas do pente também aparecem: uma em argila marrom, quebrada, outra em argila branca, sobre farinha de mandioca em uma caixa transparente, pentear é gesto de lembrar (2023).

Numa das pinturas do pente de Manjove, lemos que toda primeira segunda-feira de janeiro de todo ano, as filhas de Manjove pintavam de branco a casa. Que Manjove desenrolava seus longos cabelos, os alisava com os dedos, penteava com um pente de osso de tartaruga que guardava novamente num coque no alto da cabeça.

São gestos cotidianos, dos mais banais, que fazemos sem perceber, aqueles que repetimos e que os que estão próximos de nós veem e voltam a ver, que rememorados ao lado da ritualização de outros, como a pintura da casa, são os elementos que fabulam na poética de JeisiEkê, que cria outros, como a repetição dos pentes em processos distintos, como a ritualização do gesto de acordar o pilão.

“O gesto aqui é mais importante que a materialidade, colher a terra, tratar a argila para só depois modelar uma forma que pode fazer lembrar alguma coisa. Tento me lembrar do pente de Manjove, do fogão que fora barreado com suas várias filhas, da farinha: alimento de todas as minhas gerações anteriores. Quero criar aqui uma lembrança”, nos diz a artista.

O pente de Manjove feito de argila, sendo barro é também o fogão de dona Norma, que é também o fogão de Manjove. Fogão para alimentar toda essa gente (2024) são cinco esculturas em adobe, palha da costa, papelão, ouro e garrafa de licor de Cachoeira, cinco fogões de barro que conectam as histórias contadas e as em suspensão nas fronteiras que habitam, de onde operam a partir de nossas possibilidades de também estarmos nesse espaço de fábula, deslocando-nos continuamente, abarcando os elementos ao redor para constituir aquilo que presenciamos conforme somos, afinal, como disse John Berger, a relação entre o que vemos e sabemos está sempre aberta.

*O conteúdo assinado e publicado na coluna Olhares não expressa, necessariamente, a opinião de A TARDE

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