CRÔNICA
Um rio de asfalto e gente
Confira a crônica da Muito deste fim de semana
![Imagem ilustrativa da imagem Um rio de asfalto e gente](https://cdn.atarde.com.br/img/Artigo-Destaque/1220000/1200x720/Artigo-Destaque_01222043_00-ScaleDownProportional.webp?fallback=https%3A%2F%2Fcdn.atarde.com.br%2Fimg%2FArtigo-Destaque%2F1220000%2FArtigo-Destaque_01222043_00.jpg%3Fxid%3D5740675%26resize%3D1000%252C500%26t%3D1720968213&xid=5740675)
— Película de vidro! Aplica na hora! Olá, você que desce! Olá, você que sobe!
O som da barraca do ambulante tenta tomar toda a feira da Avenida Joana Angélica, no Centro de Salvador. O espaço físico é disputado por centenas de vendedores de frutas, roupas, itens para celular, utilidades domésticas, incensos e folhagens para banhos, mas o espaço sonoro também é concorrido. Principalmente no final do dia, na hora de passar adiante as mercadorias perecíveis sob pena de perdê-las, os vendedores se esgoelam.
Vez em quando aparece um ambulante que traz pendurado a um ombro um enorme tabuleiro com diversas bugigangas. O homem é baixinho, mas ainda cabe nele, no outro ombro, uma caixa de som que estronda canções religiosas. Veste paletó, no rigor das igrejas que entendem ser bíblica este tipo de roupa. Move-se com grande rapidez, envolto na parafernália e nas responsabilidades que carrega, inclusive a salvação do mundo.
Mal aquele sujeito se afasta, o ar é novamente tomado. Desta vez, pelo alto-falante do carrinho de madeira do vendedor de pendrives com músicas. Cada pendrive contém mil canções, e há coletâneas de vários gêneros, do forró ao axé, passando pela música popular brasileira e estrangeiros que foram sucesso de rádio. O próprio vendedor faz as compilações, sem se importar com direitos autorais, resgatando a memória de décadas.
No crepúsculo, o ouvido dos feirantes já está preparado para aproveitar aquela sonoridade em meio aos ruídos do trânsito e aos gritos que eles mesmos soltam. Dois dos mais velhos abrem latas de cerveja e apreciam as lembranças que as melodias trazem. Outro, amargo, escarra no chão e maldiz os fiscais e os governantes. Sente-se abandonado pelas autoridades, pelo mundo, pela vida. Sonha com a vinda de um grande soberano, forte, blindado e tirânico, que proteja os pobres, mas não diz isso tão claramente, apenas repete que só o rei Salomão foi justo. Lembra-se do que aprendeu no tempo que tinha religião, mas não quer voltar para a religião. Abre também uma lata de cerveja barata.
A um canto, os mais moços se reúnem e queimam um cigarro de cheiro intenso. O Centro da cidade é uma festa para eles. Aqui encontram namoradas e se envolvem com pessoas solitárias, moradoras dos edifícios, em lances fugazes. Também no Centro encontram oportunidades para fazer bicos, dependendo de sua rede de contatos. Bom mesmo seria ter a própria barraca, mas na impossibilidade há de se trabalhar para quem tem mais de uma, os graúdos da rua.
No mais, os ambulantes têm suas próprias regras e sabem que, sem eles, a via pública estaria ainda mais infestada de ladrões. Que a presença dos camelôs intimida os larápios e dá alguma proteção aos clientes do comércio no Centro. Até mesmo às lojas.
Circulando na feira, há uma amostra completa de coisas que vêm de longe, das fábricas da China e do sul do Brasil, de frutas de todos os lugares, mercadorias que chegam aos lotes e são as tendências das estações, das épocas festivas, das colheitas no campo. Também, uma população que não encontra emprego formal e que, sem esta oportunidade, ficaria ainda mais alijada: gente em situação de rua, vendedores de rifa, migrantes africanos e asiáticos e outros que precisam acreditar que, enquanto há vida, há esperança.
Quando a noite cai e o asfalto esvazia, alguns vão gastar o resultado do dia nos bares do 2 de Julho, ali perto. No maior dos estabelecimentos, com mesas na calçada, um sistema de karaokê os transforma em celebridades instantâneas, aplaudidas por uma plateia embriagada. Se a glória resiste noite adentro, a farra acaba num dos motéis de alta rotatividade do Centro, com alguma parceira de ocasião.
E assim adormecem esses homens que nunca alcançam dormir para sonhar. Até que o sol da manhã venha e os desafie, novamente… As barracas sendo montadas, a mercadoria chegando, uma multidão sem rostos que começa a aparecer do nada…
— Película de vidro! Aplica na hora! Olá, você que desce! Olá, você que sobe!
*Franklin Carvalho é autor de Onde eu estava com a minha cabeça (Ed. Patuá), entre outros
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