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'A Pior Pessoa do Mundo' aborda conflitos da geração millenial

O norueguês é forte concorrente ao Oscar de filme estrangeiro

Publicado sexta-feira, 25 de março de 2022 às 06:02 h | Autor: João Gabriel Veiga*
A protagonista Renate Reinsve, uma revelação. Sempre um ponto luminoso na tela
A protagonista Renate Reinsve, uma revelação. Sempre um ponto luminoso na tela -

Essa é Julie. Ela está um pouco preocupada com seu futuro. De futura médica à futura fotógrafa, passando por futura psicóloga, ela está em constante indecisão quanto ao rumo que sua vida tomará, agora que ela se aproxima dos 30 anos. Entre erros e acertos (em sua maioria, erros), Julie machuca muitas pessoas (em sua maioria, ela mesma). Julie é A Pior Pessoa do Mundo — ou pelo menos é isso que nos perguntamos ao longo do novo filme do norueguês Joachim Trier.

Uma anti-comédia romântica, A Pior Pessoa do Mundo encontra-se num meio-termo entre o cinismo e o romantismo. Sua narrativa se concentra em quatro formativos anos da vida da protagonista Julie, uma jovem mulher vivendo em Oslo que inicialmente lembra as figuras desastradas porém charmosas do cinema norte-americano.

 

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Dividido em doze capítulos, o longa explora as incontáveis facetas da personagem em sua odisseia por uma identidade para chamar de sua: o excruciante dilema Millennial. 

Como é típico dos jovens adultos, os impasses de Julie se manifestam em duas áreas distintas de sua vida: na carreira e no amor. Da mesma forma que ela imagina que diferentes profissões irão dar vazão para alguma epifania pessoal, Julie também tenta se descobrir através de seus relacionamentos. Uma das vértices do triângulo amoroso que se forma ao longo do filme é o ilustrador underground Aksel, que aos 45 anos é posicionado como a voz amargurada da experiência.

A outra é Eivind, um jovem que está passando pela mesma fase que Julie.

Com  seu caráter episódico, o roteiro de Joachim Trier se permite estudar com cuidado cada momento da trajetória de Julie, sempre revigorando o longa com novos elementos, descobertas e experiências que enriquecem a narrativa e dão fôlego ao ritmo.

Em seus doze capítulos, A Pior Pessoa do Mundo examina através de sua anti-heroína inúmeros aspectos da experiência de uma geração que cresceu entre saltos tecnológicos, midiáticos e sociais – e como esses Millennials estão lidando com a inevitável vida adulta. Esse balanço entre um olhar amplo sobre a juventude contemporânea e o foco individual na auto-descoberta de Julie é onde se revela o misto de cinismo e romantismo da narrativa de Trier.

Por um lado, o cineasta se mostra interessado em como as expectativas sociais cerceiam a busca pela individualidade de uma geração que viu o iPod virar o iPhone e foi educada pela televisão (e o uso da comédia-romântica nesta discussão ganha ares de metalinguagem). Por outro, há momentos em que essa preocupação fica em segundo-plano porque os tropeços de Julie são irresistivelmente divertidos e provocam identificação com o público.

Sem julgamentos

Essa dualidade poderia fazer com que o roteiro de Trier e Eskil Vogt ficasse sem foco, mas na verdade dá complexidade e faz com que o filme ecoe de maneira vivaz.

A crise de identidade geracional não é apenas uma tese a se defender, a película tem interesse e fascínio pelos indivíduos em conflito. A cada esquina de A Pior Pessoa do Mundo, esbarramos com diálogos espirituosos e profundos nos quais os personagens debatem seus sentimentos, confusões e relações, despertando reflexão e identificação em parte do público. Entre medos e alegrias, todos já fomos um pouco Julie e compreendemos suas dúvidas.

Essa busca pela identificação e compreensão entre público e personagem faz com que A Pior Pessoa do Mundo aborde Julie e as outras personagens de maneira franca, com poucos julgamentos. Há uma crítica a um padrão comportamental de egoísmo e egocentrismo entre Julie e seus pares, mas também há entendimento de possíveis razões por trás dessas falhas. O título chega a ser irônico, pois enquanto seus personagens cobram tanto de si e dão mais valor a seus erros, o filme vê seus defeitos e lapsos como fonte de sabedoria e reconhecimento.

O longa também é sagaz ao utilizar a tal da magia do cinema para amplificar suas sensações, diversas vezes utilizando elementos literários (como uma narração que traduz poeticamente o espaço mental das personagens) e artifícios lúdicos e fantasiosos. Há uma sequência especialmente de tirar o fôlego, na qual o tempo para e todo o mundo fica estático enquanto Julie corre em direção ao amor. Banhada em tons de rosa do crepúsculo e da alvorada, essa sequência consegue encapsular a maneira em que a paixão dá aos envolvidos uma linha do tempo secreta, um universo paralelo no qual apenas eles habitam.

Essa pior pessoa do mundo ganha corpo, rosto e voz através da atriz Renate Reinsve, uma revelação. Sempre um ponto luminoso na tela, Renate entende a ironia por trás do título e abraça as complexidades de Julie. Um dos capítulos do filme é entitulado O Circo Narcisista de Julie, e é exatamente essa dualidade que a atriz consegue criar: uma personagem adorável e divertida, porém repleta de falhas. O mais impressionante é que ela alcança esse feito com graça e leveza, como uma versão moderna de Diane Keaton no clássico Noivo Neurótico, Noiva Nervosa.

Águas de Março

Um contraponto para a leveza de Reinsve é Anders Danielsen Lie, no papel de Aksel. Se Julie e Eivind trocam as mãos pelos pés nos tropeços de alguém se ajustando à vida adulta, Aksel já é um homem chegando à meia-idade. Enquanto a protagonista lida com a pressão para ser algo, ele se sente sufocado pelo fardo de ter perdido seu tempo, de ter perdido chances. A escolha estava em suas mãos, mas talvez ele tenha escolhido errado. Ele agora é uma relíquia, contemplando sua mortalidade enquanto os outros desfrutam da juventude que ele não tem mais.

Danielsen Lie, em uma das grande atuações da temporada, incorpora o pesar de seu cansado personagem. Sua postura traz a confiança da experiência casada com a ansiedade do arrependimento. Sua fala sempre é pontuada por uma precisão, por um tom sério, porém melancólico e frustrado. Porém pena nunca é um sentimento que a composição do ator evoca: ele explora e verbaliza os sentimentos de Aksel com tamanha beleza que o personagem se torna gigante em seus maiores momentos de medo.

Ao final (ao som de uma versão de Águas de Março por Simon & Garfunkel), A Pior Pessoa do Mundo se conclui como uma ode à vida, à sucessão de erros que culmina em um eventual acerto por acidente. Navegar é preciso, viver não é preciso, e é justamente essa imprecisão que o filme celebra de maneira tão vibrante. Uma história de amor, crises existenciais e auto-descoberta, esse olhar sobre a melhor pior pessoa do mundo é um clássico instantâneo sobre a beleza e a sede de viver.     


Serviço

O quê: A Pior Pessoa do Mundo (Verdens verste menneske) / Dir.: Joachim Trier / Com Renate Reinsve, Anders Danielsen Lie, Herbert Nordrum, Hans Olav Brenner

Salas e horários: cinema.atarde.com.br

*Sob supervisão do editor Chico Castro Jr.

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