CINEMA
Cineasta japonês se mantém fiel a seu cinema intimista
Hirokazu Kore-eda vai filmar na Coreia do Sul em 'Broker – Uma nova chance'
Por Rafael Carvalho | Crítico de cinema
Nem mesmo o incensado cineasta japonês Hirokazu Kore-eda resistiu à onda coreana. O diretor lança agora nos cinemas seu novo filme, Broker – Uma Nova Chance, todo produzido na Coreia do Sul e protagonizado pelo astro do país, Song Kang-ho. Há algum tempo os sul-coreanos têm nos revelado uma produção pulsante de filmes e séries de alta qualidade.
Em 2020, Parasita, de Bong Joon-ho, conseguiu a façanha de vencer o Oscar na categoria de filme principal. Também a série Round 6, disponível na Netflix, tornou-se um fenômeno e venceu em várias categorias do maior prêmio da televisão, o Emmy. Os olhos do mundo estão voltados para o país que se tornou uma potência, tanto em termos econômicos, mas também no campo das artes – a Netflix, aliás, já divulgou uma série de produtos feitos no país que serão lançados na plataforma no decorrer do ano. Eles não querem perder o hype. E esse poderia ser o caso de Kore-eda, caso ele não fosse o cineasta renomado que já é.
A mudança de ares do cineasta japonês, no entanto, não começou aí. Em 2019, filmou na França A Verdade, estrelado por Catherine Deneuve e Juliette Binoche – não é qualquer um que consegue esse elenco. Isso depois dele ter ganho a Palma de Ouro no Festival de Cannes por Assunto de Família, produzido no seu país natal.
Depois de construir uma carreira muito sólida, tanto estética como tematicamente, certamente o prêmio máximo de um dos maiores festivais de cinema do mundo fez com que o cineasta se desprendesse um pouco. A Verdade, apesar do tour de force das atuações principais, carece de um pouco mais de firmeza na direção. E esse filme novo reprisa os velhos temas do diretor, com um tratamento singelo, mas sem grandes momentos.
De qualquer forma, Broker – Uma Nova Chance está longe de ser um filme ruim. O cineasta e também roteirista cria um conjunto muito coeso de personagens e dilemas que colocam em questão a formação familiar, tema clássico do diretor. A trama gira em torno de uma dupla de traficantes de bebês que agem através de um esquema de venda de crianças abandonadas pelos pais – o mais correto é dizer pelas mães – na cesta de uma igreja que acolhe os órfãos para que eles tenham uma criação e uma oportunidade de serem adotados.
Sang-hyeon (Song Kang-ho) conta com a ajuda de Dong-soo (Gang Dong-won), que trabalha como voluntário nessa igreja, para pegar algumas dessas crianças sem serem descobertos. Mas em um desses casos, a mãe de um bebê abandonado retorna no dia seguinte e, ao descobrir o esquema dos dois, acaba partindo com eles em busca de uma família que queira adotar a criança em troca de uma boa soma em dinheiro a ser dividida entre os três.
Amáveis e imorais
Ao se filiar a um cinema tão amoroso e compreensivo, não é difícil pensar que o diretor trate aqui seus personagens com boas doses de humanismo, apesar dos desvios de caráter. Eles são tão imorais – pela frieza com que tratam o “negócio” da adoção – quanto amáveis – pelo cuidado que têm com o bebê e pela busca de uma família responsável para cuidar dele. Não são movidos apenas pelo dinheiro.
Os personagens não são gananciosos, e é nessa brecha que o filme faz ver os anseios, traumas e conflitos internos que cada um carrega: Sang-hyeon já foi casado e tem filhos, mas vive distante da família que mora em outra cidade, tentando não se afastar deles; Dong-soo foi, ele próprio, um bebê abandado pela mãe na mesma igreja e sente que precisa fazer algo pelas crianças, ainda que faturando um tanto para isso; já a mãe (Lee Ji-eun) é uma jovem desamparada que lida com o sentimento de culpa em abandonar a cria, mesmo que tenha engravidado de um homem casado que já morreu.
Kore-eda não cai na armadilha do maniqueísmo, evitando tratá-los como vilões – ao contrário, o filme é muito condescendente com todos eles, indo do drama à comédia ingênua em poucos minutos.
O retrato cadenciado e terno que o filme faz deles garante a identificação com o público, mesmo que eles estejam infringindo a lei. Por outro lado, o filme corre risco de soar sentimental demais, algo que se tenta dosar pelos conflitos internos e pela realidade implacável da justiça coreana.
Mal sabem eles que estão sendo perseguidos de perto por duas agentes policiais, investigadoras do caso de tráfico de menores, seguindo no encalço dos dois corruptores, mas dando especial atenção à situação da mãe que abandonou o filho. É um jogo complexo esse que o filme arma envolvendo tantas pessoas – e emoções distintas –, mas consegue sustentá-lo de modo muito coeso até o desfecho.
Novas famílias
Ao acompanhar esse comboio que parte em busca de uma família para a criança recém-nascida, Broker torna-se também um road movie. Mas o mais evidente é que esse estranho conjunto formado por dois marmanjos, uma jovem mãe, um bebê de colo e ainda um garotinho do orfanato que se infiltrou sorrateiramente na van, todos eles perfazem um microcosmo familiar de proteção e cuidado uns com os outros.
A questão da família sempre foi tema caro ao cineasta. São muitos filmes em que o diretor investiga os laços afetivos que unem as pessoas sob um mesmo abrigo, sejam eles sanguíneos ou não. No seu filme mais célebre, Assunto de Família, por exemplo, também uma criança (dessa vez já maiorzinha) é incorporada a um grupo de pessoas que vivem abaixo do mesmo teto – um bem humilde – e se entendem como um núcleo familiar.
Não seria diferente aqui em Broker a aposta em novas constituições de família. Porém, e apesar do tratamento cuidadoso e bem amarrado no roteiro, não deixam de ser um tanto repetitivas as conclusões a que o cineasta chega quando se trata de rever o conceito de família tradicional. O desfecho do filme tem um tom agridoce, mas não ignora as possibilidades de união e criação que se abrem a partir da aceitação do outro como um igual.
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