PARA SEMPRE ESTRANGEIRO
Disco Boy usa iconografia do filme de guerra para falar de família
Filme é centrado em Aleksei (Franz Rogowski), turista bielorrusso que se refugia na França
Por Rafael Carvalho | Crítico de cinema

O diretor Giacomo Abbruzzese, italiano radicado na França, conta que certa vez conheceu um dançarino ex-combatente da Legião Estrangeira, o icônico grupo dentro do Exército Francês que acolhe pessoas de fora da França para lutarem nas Forças Armadas do país – e com isso conseguir se naturalizar oficialmente como cidadão francês. Foi esse encontro que lhe deu a ideia para Disco Boy – Choque Entre Mundos, seu longa-metragem de estreia, já em cartaz nos cinemas.
Pois o filme está centrado em torno de Aleksei (Franz Rogowski), um turista bielorrusso que inicialmente se refugia na França. Chega fragilizado emocionalmente pela perda do amigo que fazia a travessia ilegal da fronteira com ele e logo é capturado pela polícia, mas cooptado pela Legião Estrangeira. Ali, ele experimenta sensações contraditórias de acolhimento e recusa que vão dar o tom moral do filme.
“Eu estava muito intrigado pela Legião Estrangeira quando conheci esse soldado em uma danceteria e imediatamente pensei em filmar algo sobre isso pelo potencial da mitologia icônica em torno da Legião”, afirmou o cineasta em entrevista ao A TARDE, quando esteve no Brasil durante a última edição do Olhar de Cinema, em Curitiba.
“Nessa época, eu li sobre um grupo de ecoterrorismo e me interessei por um tipo de luta militar na África, de um dos lugares mais poluídos do mundo”, observou o diretor, destacando outro personagem que estabelece um elo narrativo com Aleksei, o jovem líder do Movimento para a Emancipação do Delta do Níger, Jomo (Morr Ndiaye).
Os dois personagens representam os polos de atração e repulsão que se equilibram na trama (ou ao menos essa é a ideia inicial que o filme tenta vender), já que Aleksei e Jomo estão em lados opostos.
A Legião Estrangeira logo será convocada para acabar com tais conflitos na Nigéria, pois o grupo de militantes locais armados tenta controlar a região e protegê-la da exploração petrolífera. Os caminhos dos dois irão se cruzar, de modo trágico, porque é para lá que o batalhão de Aleksei será enviado em missão depois que o grupo de Jomo sequestra jornalistas europeus.
O outro lado
Disco Boy se vende também como um filme de guerra, mas sua preocupação maior está no arco de transformação e conscientização de Aleksei. Abbruzzese pontua que sempre quis mostrar o outro lado da história, explorando o ponto de vista africano deste conflito.
“O ‘outro’ não existe em um filme de guerra. Se nós estamos implicados na guerra, com certeza nós estamos corretos e o outro lado são sempre os monstros. Mas na vida real, quase nunca é assim. É um conflito de interesses porque a gente precisa se comprometer com alguma causa”, observou o diretor.
No caso de Disco Boy, isso até começa a aparecer quando se volta o olhar para a realidade daquele grupo de militantes africanos. No entanto, o filme se esforça muito pouco para torná-los figuras complexas. Jomo possui uma relação ambígua com sua irmã (Laetitia Ky). Apesar da cumplicidade entre eles, há certo desentendimento quanto aos desdobramentos do conflito armado. O mais desanimador em relação a isso é que os personagens africanos acabam aparecendo no filme apenas como núcleo a serviço do desenvolvimento do personagem principal.
Este também perde um pouco de motivo dramático porque a relação e o tensionamento com Jomo se reduzem a momentos muito breves e difusos. O maior confronto entre eles se dá sob uma textura visual de encher os olhos, mas que chama mais atenção para a estética da cena em si do que pela relação emocional que o encontro proporciona.
Nesse embate, o núcleo africano é bastante desperdiçado porque as motivações dos dois irmãos somem do filme, e eles acabam orbitando ao redor dos dilemas de Aleksei – ela passa a ser um espectro na parte final do longa, estranhamente evocada como personificação do exotismo erótico da mulher negra, ainda mais na sua incompreensível aproximação com Aleksei, enquanto Jomo torna-se vetor de culpa para o europeu.
Os elementos para o aprofundamento das camadas que cercam esses personagens centrais estão todos ali na trama. Falta ao filme a disposição em amalgamá-los e abordá-los com a atenção merecida, com interesse real, e não apenas em linhas gerais. O andamento da própria narrativa, então, torna-se cheio de lacunas e pontos de fragilidade impossíveis de ignorar.
Pertencimento
O senso de pertencimento e a busca por uma família e acolhimento são os dilemas maiores que Aleksei enfrenta em Disco Boy. Para isso, o filme aposta em uma narrativa que também flerta com o fantástico e com certo psicologismo intimista dos personagens.
“Na pesquisa sobre a representação dos universos vistos no filme, nós discutíamos muito abertamente como chegar a uma abstração porque não se trata de um filme totalmente naturalista, nem em relação à Legião Estrangeira, nem sobre o contexto nigeriano. Mas é fato que você tem que documentar o máximo que puder para então partir para a abstração”, afirmou o diretor.
De fato, Disco Boy tenta se beneficiar de uma narrativa que segue por caminhos pouco usuais e que embaralham não só as percepções de Aleksei, como as convicções do próprio espectador – as coisas começam a ficar muito difusas, especialmente na parte final.
Outra disposição do filme, essa sim mais eficiente, diz respeito às contradições da Legião Estrangeira, uma discussão pouco aprofundada até mesmo na França. “Eu acho que Aleksei está procurando por uma nova família e ele acredita que a Legião possa ser esse lugar. Faz sentido porque essas pessoas, vindas de realidades muito complicadas, se sentem muito conectadas umas ao lado das outras. Mas ele também vai descobrir que é preciso matar em nome de um país para conseguir o passaporte”, lembrou o cineasta.
Com isso, Disco Boy discute o oportunismo que pode haver na cooptação desses jovens estrangeiros para a Legião, especialmente sobre os refugiados com toda sua vulnerabilidade social.
Essa talvez seja a grande questão do filme, e seria mais produtivo se fosse aí que ele investisse suas energias.
Disco Boy / Dir.: Giacomo Abbruzzese / Com: Franz Rogowski, Morr Ndiaye, Laëtitia Ky, Leon Lucev, Matteo Olivetti, Robert Wickiewicz / Salas e horários: Cineinsite A TARDE
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