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Filme baiano Café com Canela reacende a chama dos afetos sinceros no Festival de Brasília
Por Rafael Carvalho* | Especial para A TARDE

“Olhem para mim, eu sou de Cachoeira”. Assim começa o texto de apresentação de Glenda Nicácio, uma das diretoras do longa “Café com Canela”, dirigido em parceria com Ary Rosa. O filme celebra afetos e encontros e teve uma recepção mais do que calorosa do público que lotou o Cine Brasília.
O filme está embebido do Recôncavo baiano. Glenda e Ary são egressos do Curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo (UFRB) e fundaram ali uma produtora. “Café com Canela” é o primeiro longa da dupla e, caminho dos mais naturais, reflete a cultura e o cotidiano do interior baiano, tão marcados por traços de ancestralidade que rodeiam cidades como Cachoeira, São Félix e Muritiba.
Acompanhamos a história de duas mulheres marcadas pelo luto. Margarida (vivida pela atriz do Bando de Teatro Olodum, Valdinéia Soriano) vive reclusa em casa mesmo depois de passado tanto tempo da morte de seu filho pequeno; já Violeta (Aline Brunne, em seu primeiro trabalho como atriz) mora com o marido e dois filhos, cuida da avó adoentada e batalha para vender de porta em portas as coxinhas que ela mesma faz.
Até demora um tempo para que essas personagens se encontrem na trama linear do filme, tempo aproveitado para se construir na tela um espírito de convivência interiorana, além de apresentar outros personagens, como o médico Ivan (Babu Santana) que vive com um companheiro mais velho que ele (Antônio Fábio); e também a extrovertida Cidão (Arlete Dias), um dos alívios cômicos do filme.
Caminhos cruzados
Mas é quando Violeta e Margarida se encontram, por acaso, e descobrem que a mais nova foi aluna de Margarida no colégio, o filme ganha outra cadência. Violeta enxerga na dor do luto de Margarida uma barreira a ser quebrada, um modo de libertação necessário, tarefa que ela toma para si com afinco. Nasce uma amizade e com ela uma celebração da vida, com todos os seus percalços.
É muito curioso olhar para um filme de pequeno porte como esse, em termos de produção, que chega à mostra competitiva do Festival de Brasília apostando no risco da entrega a uma história que vende afetuosidade, mais do que tudo. Há pontos de fragilidade visíveis na narrativa: os diálogos por vezes marcados demais, tangenciando certo suingue caricato da prosódia baiana, e que se escoram em falas comuns ou marcadas de ingenuidade – o diálogo sobre o cinema ou o “brinde à vida”.
Em outros casos, as opções de encenação apontam para vícios de diretores iniciantes, como a divisão da tela em espacialidades diferentes, as cenas iniciais que são, na verdade, tomadas do fim da história, ou um plano subjetivo de um cachorro que surge inesperadamente.
Mas existe também, nessas escolhas, um ímpeto de dar a cara a tapa e de não se acanhar perante tais procedimentos quando eles parecem mesmo sinceros – e nenhum deles comprometem o desenrolar do filme –, o que poderia ser visto também como exigências por um cinema formalmente moldado nos ditames clássicos padronizados. O filme prefere abraçar um romantismo naïf porque o sentido do gesto narrativo está a serviço daquilo que a história representa (mais uma vez, o lugar da afeição e da cumplicidade entre os personagens).
O filme ganhou outro respiro no Festival de Brasília por conta das discussões sobre a representação de personagens negros e escravos, especialmente pelo filme “Vazante”, de Daniela Thomas, apresentado dias antes e que desceu muito mal com um tipo de abordagem ainda datada sobre corpos negros expostos em cena. “Café com Canela”, por outro lado, oferece uma resposta muito imediata e direta e aponta para um tipo de tratamento outro, através de uma subjetividade rica de personagens costumeiramente relegados a uma posição secundária nos filmes.
A diretora Glenda Nicácio já havia antecipado essas questões na apresentação quando disso que o filme falava de “personagens urgentes, carregando consigo vozes ancestrais que ainda aguardam seu momento de falar. Ou melhor, aguardava, porque agora é hora”. E o que se vê em tela é a potencialidade de sujeitos e histórias há muito marginalizados no processo de constituição do cinema brasileiro. É o cinema do Recôncavo baiano pulsando e apontando para caminhos diversos, de contestação via afetos, ainda que o filme bambeie sobre suas próprias limitações, mas equilibrando suas forças de mobilização.

Confira abaixo a entrevista que A TARDE fez com a dupla de diretores:
Vocês falaram na apresentação sobre esses personagens serem urgentes. E tem-se discutido muito aqui em Brasília sobre a representatividade e a ausência de subjetividade de personagens negros. E o filme de vocês responde muito bem a isso. Acho que existe uma vontade em expor isso muito frontalmente.
Glenda: Sim. Eu acho que tudo parte do lugar onde a gente está. O cinema que a gente faz é no Recôncavo, o lugar que a gente escolheu pra ficar, e não tem por que falar desse cotidiano com outros corpos. Os corpos estão ali, fazem parte do próprio fluxo natural da vida e não representá-los seria muito grave porque a história que a gente conta passa por eles. Quando Ary já traz essa localização no roteiro, “vamos falar da história de duas mulheres no Recôncavo da Bahia”, é óbvio que essas mulheres são negras. A partir disso, tudo vai se impulsionando dentro do filme. Aí a gente passa pela seleção dos atores, que foi feita naquela comunidade negra, e vem alimentando a própria narrativa e a estética do filme.
Existe todo um imaginário e uma força em torno das figuras femininas e de referências que vocês citaram ao apresentar o filme que vão desde Dona Dalva Damiana até a figura de Oxum.
Violeta e Margarida são mulheres negras, sendo Valdinéia do Bando de Teatro Olodum, que já tem uma dedicação, trabalha com teatro negro na Bahia há muito tempo, quase uma precursora desse movimento na Bahia enquanto cena. Isso agrega muito. E aí vai para subjetividades minhas enquanto mulher negra e também das atrizes como mulheres negras. Primeiramente é uma necessidade de retratar o cotidiano, que é de corpos negros. Mas em seguida, a gente se encontra com outras subjetividades que é quando uma espectadora assiste e diz “nossa, lembrei de minha mãe, lembrei das minhas”. Eu lembro muito da minha avó toda vez que eu vejo o filme.
E tem um lugar do afeto que é muito presente na trama como um todo também.
Glenda: Sim, O “Café com Canela” só foi possível por conta do afeto, primeiro mesmo pelo nosso afeto, de se encontrar ali e decidir fazer um filme. É uma guerrilha fazer um filme no Recôncavo, foi muito difícil, eu nunca vou me esquecer disso. É muito bom quando ele funciona porque aí eu me sinto feliz, sinto que valeu a pena muita coisa. Não seria possível esse filme sem esse encontro, enquanto processo de produção mesmo, enquanto pensar coisas práticas de produção que não são fáceis. Mas a nossa maior questão com “Café com Canela” era se tocava ou não tocava as pessoas. Não era só uma questão de gosto, gostou ou não gosto do filme. Você é tocado pelo filme, você pode até não gostar, mas toda vez que o filme toca alguém eu fico muito contente e faz valer o esforço.
Vocês não são naturais da Bahia, vieram de Minas Gerais para fazer o Curso de Cinema e se estabeleceram no Recôncavo. Eu acho que o filme começa quando vocês chegam em Cachoeira. Como vocês transformaram essa vivência em filme?
Ary: Acho que tem uma coisa que é esse lugar de convergência, um entrelugares, que o recôncavo se coloca, porque apesar de ser o interior do interior, é uma cidade extremamente cosmopolita que abraça gente de todo mundo. Cachoeira tem essa marca, pela sua cultura, pela sua história, que também não apaga esse lugar muito próprio da cultura local e daquelas pessoas. E acho que eu e Glenda conseguimos entender o lugar e se apaixonar por ele. Não tem como fazer sem paixão porque existem todas as limitações que é estar no interior, estar num lugar que não é necessariamente o seu lugar nesse entendimento de que “não sou daqui”. Mas se faz presente, com muita tranquilidade, falar que eu sou de Cachoeira. Não tenho dúvida nenhuma sobre isso, mas acho que isso se dá por conta de um respeito muito grande pela cidade. Tudo que a gente fez e pensou foi sempre cuidando muito da cidade.
Conta como foi esse processo de mobilização da cidade.
Ary: Nós criamos estratégias para integrar a comunidade que foram muito importantes para o filme e para o nosso crescimento. A cenografia, por exemplo; ao invés de contratar cenógrafos de Salvador, nossa opção foi ir atrás de três grandes cenógrafos, Tina Melo, Gão Luz (que, aliás, são de Cachoeira, mas moram em Salvador) e Yoshi Aguiar, e eles foram dar oficinas para parte dos alunos do curso de cinema e para alunos de escola pública de São Félix. Toda a casa de Margarida é cenográfica e foi construída por essas pessoas. Eu gosto muito de citar o exemplo de May Barros, formada em museologia na UFRB, que fez as oficinas e participou da montagem dos cenários, e depois disso ela abriu o Entre Minas, um empreendimento em Salvador em que ela vai em casas de mulheres fazer pequenos serviços domésticos e de marcenaria, coisa que ela aprendeu a manejar na oficina. O figurino foi todo feito pela cooperativa de costureiras de Maragopipe. Então tem esse lugar de fazer uma troca com a comunidade, o que cria uma energia que, com certeza, volta para o filme.
Glenda: Quando a gente acabou de fazer o projeto do Café, nós percebemos que a gente não queria fazer um filme, a gente queria fazer uma revolução. O que a gente propunha era um casting em cinco cidades procurando uma protagonista e atores secundários, uma oficina de cenografia, o trabalho com a cooperativa. Eram muitas estratégias de inclusão. A gente tinha uma clara certeza de que não íamos conseguir fazer o filme sozinhos, de que o filme era muito grande e Cachoeira não está preparada para isso, não tem um suporte logístico para produção. E percebemos que quando a gente integra, a gente ganha mais e as pessoas ficaram felizes de serem integradas. Logo no começo todo mundo vibrava com o filme e logo que acabamos de gravar, muita gente perguntava quando o filme ia sair. Muita gente da comunidade trabalhou na equipe.
Vocês lidam com personagens atravessados pelo luto. Como foi a gênese dessa história?
Ary: É um filme que fala de cotidiano e a morte faz parte do cotidiano. É interessante representar a morte de várias formas, inclusive através de experiências pessoais, claro, e que atravessam também a experiência dos outros. É um ponto universal que é muito particular nessa história. Uma mãe perder um filho não é uma coisa nova, no cinema, na TV. Mas isso no Recôncavo, a partir do ponto de vista que a gente resolve tratar, isso é novo. Esse era um roteiro que eu comecei a escrever em 2011 e era um curta-metragem de oito páginas. Daí pra frete eu fui passando para muitas pessoas, acrescentando e mudando coisas até chegar no longa-metragem. Glenda entrou no barco desde o início desse processo. Mas a coisa da morte sempre esteve presente no filme, embora não seja um filme sobre a morte. O longa termina, inclusive, num lugar muito positivo de que a vida segue. As pessoas saem leves da sessão.
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