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Filmes sobre pessoas marginalizadas são destaque no Olhar de Cinema
Por Rafael Carvalho* | Especial para A TARDE | Foto: Divulgação

“Diz a Ela que me Viu Chorar”, de Maíra Bühler, e “Sete Anos em Maio”, de Affonso Uchoa, são filmes muito diferentes entre si, mas possuem uma mesma predisposição: olhar e ouvir aqueles que não costuma serem vistos e escutados. Ambos os documentários foram apresentados no Olhar de Cinema dentro da Mostra Competitiva e possuem uma aproximação temática muito forte, na medida em que escolhem observar e contar parte da história de indivíduos facilmente marginalizados pela sociedade.
Mais do que um filme de impacto, “Sete Anos em Maio” é um caso raro de obra que consegue expressar de modo muito contundente e sério algo que não chega a ser grande novidade, mas o filme possui um formato nunca óbvio e rigoroso na maneira de colocar em cena os (des)caminhos de um indivíduo. Trata-se de um média-metragem com três blocos narrativos distintos, mas complementares na proposta de dar conta de uma vida marcada pela truculência policial e por um jogo de sobrevivência urbana de quem vive muito perto do abismo.
A questão do genocídio da população negra periférica permeia o filme a partir da história de Rafael que, segundo seu próprio relato, foi preso e espancado pela polícia depois de ser confundido com um traficante. O filme começa com Rafael e alguns amigos encenando, muito naturalmente, quase numa brincadeira (palavra importante que vai ser ressignificada na parte final do filme), o momento em que ele foi pego pela polícia. Na sequência, o próprio Rafael descreve, num relato muito cru, sóbrio e pessoal sua vida de altos e baixos desde aquele episódio.
“Sete Anos em Maio” aglutina qualidades dos trabalhos anteriores do cineasta mineiro. De “A Vizinhança do Tigre”, resgata a temática e o interesse do realizador por personagens à beira da criminalidade, fronteira arriscada e cruel que coloca a vida desses indivíduos numa gangorra desigual que muitas vezes os levam para a criminalidade e a vida nas drogas.
De “Arábia”, filme dirigido em parceria com João Dumans, Uchoa retira o rigor formal, e até mesmo certa expressão fotográfica. Há nessas escolhas algo que remete ao cinema do português Pedro Costa, na dureza e latência do registro – planos longos e estáticos –, e também no interesse pelo relato, colocando o expectador como um ouvinte atento.
A força da imagem e da palavra, portanto, constituem a essência de “Sete Anos em Maio”. O filme guarda ainda para o final um momento incrível, aparentemente inocente, em que um jogo proposto diz muito e com muita contundência sobre uma realidade de opressão policial sobre os jovens das periferias – de qualquer uma no Brasil. Reforça ainda um lugar de resistência mesmo quando o mundo – ou as forças do Estado – parecem dizer não.
O outro que ignoramos
Diz a Ela que me Viu Chorar, de Maíra Bühler, por sua vez, é um retrato cru de pessoas em situação de vulnerabilidade, o que coloca em xeque, de antemão, o gesto mesmo de filmá-las e de exibir suas fragilidades.
O filme se encerra todo dentro de um centro de “redução de danos” para viciados em crack em São Paulo. Trata-se de um antigo edifício usado como espaço de acolhimento para essas pessoas, minimamente tratadas e cuidadas, o que não impedem surtos ou fluxos de saída e entrada das pessoas. Na verdade, não estão muito claros os parâmetros e regras que regem aquele espaço – o filme é muito pouco informativo sobre o que quer que seja.
Ali, a diretora encontra uma variedade de indivíduos que vivem suas pequenas agruras cotidianas de convivência, seus grandes dilemas de vida, a tentativa de reconstruir uma história pessoal ou de sobreviver ao dia a dia da luta contra o vício. Não há personagens centrais, não há romantização do humanismo e da caridade, muito menos um peso moralizante sobre aqueles indivíduos. A opção do filme é pelo cinema direto, câmera em observação, nada de entrevistas ou contextualização, nenhum voz “oficial” (daqueles que administram e cuidam do espaço ou dos que tratam e lidam diretamente com os “internos”) que legitime um discurso profissional-professoral.
O interesse do filme é por gente, pelos seus dramas particulares, ainda que registrado em modo de fragmentação. Não existem grandes histórias, com começo meio e fim; antes de mais nada, são figuras humanas registradas em pedaços de convívio que a câmera encontra quase que por acaso, não sem antes construir toda uma atmosfera de proximidade e intimismo. Ninguém precisa explicar que a equipe do filme integrou-se àquele local e ganhou a confianças daquelas pessoas pelo simples fato da câmera ser capaz de captar situações muito potentes, tanto íntimos quanto brutais.
Todas essas opções narrativas fazem o filme se descortinar por uma série de momentos marcantes, dos singelos até os mais explosivos, que tensionam muito do que significa viver sob as garras do vício. Apesar de não especificar questões de ordem social, o filme não deixa de antevê-las: aqueles são, na sua maioria, corpos negros, vindos de famílias de baixa renda, sem suporte familiar e amparo do Estado, perfil que se repete em muitos lugares.
Essas pessoas são expostas no filme em suas vicissitudes, por vezes revelam seu lado mais violento e descontrolado – há brigas ao telefone e cenas de confrontos físicos também –, e nunca saberemos sob qual nível de consciência elas estão agindo em cada momento. Mas certamente é uma maneira de observar e tentar compreender aqueles a quem preferimos ignorar. O filme promove um exercício de alteridade inusitado, buscando na empatia uma maneira de enxergar corpos à margem social sob uma outra perspectiva.
*O jornalista viajou a convite da organização do festival
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