CINEMA
Hernani Heffner: “Preservação significa também dar acesso”
Gerente da Cinemateca do MAM-RJ fala sobre a preservação da memória do audiovisual em tempos digitais
Por João Paulo Barreto | Especial A TARDE
Um dos principais nomes no campo da preservação e conservação do audiovisual brasileiro, Hernani Heffner, à frente do acervo da Cinemateca do MAM-RJ (local que possui 75 anos de existência e mais de três milhões de itens documentais ocupando três prédios no Centro do Rio), pode ser chamado de um dos guardiões da memória do cinema nacional.
Participante do Fórum de Tiradentes - Encontros pelo Audiovisual Brasileiro, organizado pela edição 2023 da Mostra na cidade mineira, Hernani foi um dos autores da Carta de Tiradentes, documento oriundo do estudo feito por mais de cinquenta profissionais do audiovisual em diversas áreas.
O diagnóstico do quadro atual, entre 2016 e 2022, juntamente com propostas para o futuro do setor, será apresentado em documento destinado ao reconstruído Ministério da Cultura. Nessa entrevista ao A TARDE, Hernani Heffner faz uma análise do período citado e fala sobre a preservação da memória do audiovisual em tempos digitais.
Como preservacionista do imenso acervo da Cinemateca do MAM-RJ, como o senhor avalia o modo como a retomada em relação à Cultura no Brasil se dará após os últimos sete anos, desde a ruptura democrática do golpe parlamentar de 2016?
Sete anos é muito tempo para qualquer coisa. Para qualquer atividade. Imagina você retomar o ritmo cotidiano da atividade. Mas, mais do que isso, imagina você ter que repensar uma estratégia de futuro, sendo que o futuro já chegou, já se instalou, já tomou conta de tudo, já mudou o paradigma. E você, agora, tem que correr atrás do prejuízo. A ruptura democrática que o Brasil sofreu não é só uma perda política. Ela é uma perda política, ela é uma perda social, ela é uma perda cultural. Ela é uma perda da memória individual das pessoas. As pessoas não têm consciência disso, até porque estão vivendo o processo, e é muito difícil, às vezes, você tomar pé do que você está vivendo no sentido mais amplo, em uma compreensão mais sistêmica, mais complexa. Mas, de fato, esse obscurantismo se deu em paralelo a muitos outros fenômenos, muitos outros processos que ocorreram, a rigor, no mundo inteiro e para os quais a resposta não é simples, não é fácil, não é barata. Isso significa que, do ponto de vista das instituições, e aí eu vou entrar na Cinemateca do MAM, você podia ter consciência de que isso estava acontecendo, mas sua resposta a isso era sempre muito tímida porque, de um lado, embora a Cinemateca do MAM seja uma instituição privada, ela não é um órgão de governo, embora ela seja uma instituição privada, ela depende, como quase tudo no Brasil, do patrocínio cultural, da renúncia fiscal, das leis de incentivo, ou seja, de uma estrutura legal, de uma política pública que permite, inclusive, às instituições privadas assumir parte da tarefa, por exemplo, de fazer preservação que, em princípio, deveria partir do Estado.
Fazendo um paralelo entre este período desde 2016, passando pela ascensão da extrema-direita em 2018 e chegando à política de retrocessos em relação à extinção do MinC, qual, para o senhor, é o novo horizonte em relação ao preservação do audiovisual?
Os últimos sete anos, se a gente tomar como baliza o impeachment da presidente Dilma Rousseff, foram anos muito complexos, muito difíceis, muito refratários, sobretudo ao setor cultural. Muito obscurantistas, no sentido de que não só o golpe parlamentar de 2016 já era um ato completamente antidemocrático, mas o que se sucedeu à eleição de Jair Bolsonaro ao assumir uma política de governo não só refratária, mas persecutória ao universo da Cultura, criou, digamos assim, uma espécie de vazio. Criou uma paralisação, criou uma inércia. E criou uma dificuldade de você pensar, se planejar, desenvolver estratégias, e acompanhar aquilo que é, talvez, a questão maior: nem o mundo nem a História param por um ou por outro acontecimento particular. De que, em paralelo a todos esses anos muito difíceis, você tem duas questões maiores. A primeira delas é a consolidação do mundo digital e o seu já encaminhamento para uma nova etapa. A consolidação do mundo digital para quem é do audiovisual se reflete, principalmente agora, na presença maciça dos streamings, das plataformas de compartilhamento pagas de vídeos. Por outro lado, além dessa consolidação desse ecossistema audiovisual digital que hoje é típico do mundo contemporâneo, você tinha já os elementos em processo, em desenvolvimento. Eles vêm a configurar muito rapidamente a superação desse mundo digital que eu chamaria, simplesmente, de 2.0, para um novo mundo digital, para uma nova ecologia digital, que será, tendo como referência, a WEB 3.0. Isso, na verdade será a produção virtual, será o metaverso, será a inteligência artificial, será a internet das coisas. Será, na verdade, uma automação de um conjunto enorme de processos. E a gente ainda não tem a dimensão de como isso impacta as ações cotidianas.
Como encaramos, então, esse novo paradigma digital em relação à preservação audiovisual?
Vou dar um exemplo muito simples: como você pode arquivar tudo que circula pela internet em termos de audiovisual? Por mais que você tivesse um milhão de trabalhadores, eles não dariam conta disso porque, hoje, 80% dos seis zeta bytes de informação que trafegam diariamente, em 80%, são vídeos. Então, é humanamente impossível você preservar isso. E a única possibilidade de se fazer isso é com a automação desse processo. Ou seja, através da inteligência artificial, você programar um computador, ou um servidor, uma nuvem, até uma série de estruturas da própria internet para ir buscar, copiar, armazenar, catalogar completamente através de uma inteligência artificial, e conservar em definitivo para um longo prazo. Seja em uma estrutura física, seja uma estrutura em nuvem, que também é uma estrutura física. Ou seja, pela própria estrutura da informática, da cibernética, você consegue, talvez dar conta dos seis zeta bytes de tráfego diário. Imagina isso 365 dias por ano, em dez anos, etc. Mas já há essa possibilidade. Lógico que isso exige a compreensão do que é essa nova tecnologia, o domínio dessa nova tecnologia. Exige você desenvolver protocolos para esse novo mundo. Como catalogar, como fazer meta dados, etc. Mas há um caminho. Há um futuro. Há uma esperança de você enfrentar a natureza do mudo contemporâneo.
A Cinemateca do MAM possui a Samambaia Filantropia como parceira e isso me faz pensar em outras possibilidades de filantropia dentro da arte, como, por exemplo, a Film Foundation, de Martin Scorsese. Para o senhor, qual a função da filantropia e qual a função do Estado nesse processo?
O caso brasileiro, frente a o que ocorre nos Estados Unidos, é muito diferente. Lá, eles têm uma tradição de filantropia que já tem 200 anos. Ou seja, qualquer milionário americano que se preze, ele tem que fazer filantropia. Caso contrário, ele é mal visto socialmente, inclusive no meio de elite que ele frequenta. Então, por isso que você ouve, a todo momento, que todos os artistas, todos os diretores, todos os escritores, todos os milionários, o dono da Apple, o dono da Microsoft, por exemplo, doam ali milhões de dólares para área de saúde, ou para a área de artes, ou a área de engenharia, ou a área de formação. Mas é uma tradição antiga deles. O cinema lá nem se tornou, de fato, objeto de um investimento maior por parte da filantropia americana, com exceção dos próprios membros da indústria cinematográfica. Então, você ouve muito falar no Scorsese, você ouve muito falar no Tarantino, que tem uma sala de exibição em 70mm, por exemplo. E, na verdade, você não ouve falar em nada além de cineastas que são, também, cinéfilos. Cineastas que vêm do tempo da película, de cineastas que, por trabalhar na indústria norte-americana, conseguem ter milhões de dólares para investir publicamente nisso. Mas sempre dentro de um modelo que eu não acho um modelo mais adequado. Sobretudo o do Scorsese. Ele criou uma fundação, que é a World Film Foundation, que recebe os recursos, digamos assim, da fortuna pessoal do Scorsese, mas que faz os seus serviços procurando monetizar os produtos finais. Então, por exemplo, vai lá na África, pega um filme africano, restaura esse filme, e se os africanos quiserem assistir, tem que pagar. Eu não considero isso uma forma adequada de você, de um lado, resguardar o patrimônio cultural, o patrimônio cinematográfico, e de outro lado, dar acesso. Porque preservação significa não só conservar, mas dar acesso. Não existe preservação sem acesso. Agora, quando você transforma isso em uma cadeia econômica típica e onde o produto final é caríssimo, e isso ocorre em relação ao Brasil. Se o Brasil quiser assistir lá a versão restaurada de Limite (1931, Mário Peixoto) tem que pagar. Mil dólares por exibição. Cinco mil reais por uma exibição de um arquivo digital, convenhamos, é fora de qualquer propósito para um país de uma economia como a brasileira. E para mim não é nem o problema monetário. É o problema filosófico. Você vai pegar um patrimônio. Limite, um patrimônio da humanidade, tombado pela UNESCO. Você vai pegar um patrimônio da humanidade e novamente transformar em um produto caro e de elite? Eu acho que tem alguma coisa errada nesse processo.
O fomento do Estado se torna imprescindível, então?
Sim. O Brasil começou uma política cultural nos anos 30 do século passado. A Constituição Brasileira de 1936, se não me engano, já tem um capítulo dedicado à Cultura. E já naquele momento, o entendimento é que isso é uma tarefa de Estado. Por que? Porque o cidadão comum não tem recurso para isso. Porque a empresa privada tem um outro objetivo. Porque, na verdade, eventualmente uma classe de milionários brasileiros, ela não tem a cultura do patrocínio, uma cultura de investimento direto, uma cultura de doação necessários pra você ter um outro tipo de arranjo aqui. Na ausência, na omissão do vazio, o Estado brasileiro ocupou esse espaço e assumiu essa tarefa já em 1937, por exemplo, quando se cria o antigo Iphan. E que deu certo! Essa institucionalização pública via estado, deu certo! Salvou, por exemplo, as cidades históricas de Minas Gerais, além de muitas outras coisas. Então, a nossa tradição, e você não pode ignorar que um século já é uma tradição, a nossa tradição é via Estado. E eu acho que para a trajetória socio-histórica-cultural de uma nação como o Brasil, eu não vejo alternativa. Não só porque tudo está estruturado nesse sentido, e mudar, digamos, essa estrutura, esse processo, significa desarrumar completamente o que existia e tentar arrumar uma outra dimensão para botar no lugar. Talvez dê certo, talvez não dê certo. Então, é um risco grande. E se tratando de patrimônio cultural, é um risco maior ainda. E eu acho que fazer via Estado tem uma grande virtude que é o comprometimento de toda sociedade com isso. Que, na verdade, é o imposto de cada cidadão que está sustentando o patrimônio cultural brasileiro e, por isso mesmo, ele tem o direito de usufruir. Ele tem que aprender a valorizar, tem que aprender a perceber que aquilo tem um sentido, tem um uso, tem um valor. E que ele tem o direito de usufruir daquilo. E, por outro lado, como o Brasil é um país continental, é muito difícil que isso se faça sem a presença do Estado. Eu acho que a grande distorção dentro desse processo é que, durante muito tempo, só o Governo Federal fazia isso. E, na verdade, hoje, dentro do mundo digital, você tem que descentralizar tudo. Tem que trabalhar em rede e fazer com que estados e municípios, esses, sim, sejam os grandes protagonistas, sejam os grandes atores. Porque eles têm maior agilidade, eles têm maior comprometimento, são mais próximos desses patrimônios. E, eventualmente, têm uma capacidade melhor de gerir os recursos, mesmo que eles venham do governo federal.
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