CINEINSITE
Marighella: entre o preto e o branco
Por Raul Moreira | Especial para A TARDE

Após sofrer, durante dois anos, todo tipo de ataque por parte das hordas fascistoides que assolam este Brasil doente, Marighella, de Wagner Moura, finalmente ganhou as telonas. Pena que, apesar das boas intenções do diretor debutante, louváveis, principalmente nestes tempos difíceis e de rupturas institucionais, a escolha de certas licenças artísticas e a própria linguagem utilizadas reduziram a obra a um thriller de aporte mistificador, um sacrilégio diante dos fatos, da historicidade.
Sacrilégio porque, ao recontar a saga de Carlos Marighella (1911-1969), o maior nome da esquerda raiz brasileira, que vai além do próprio Luís Carlos Prestes, Moura falseou não apenas a postura do ideólogo baiano e do tempo histórico no qual viveu, mas, também, a sua identidade racial: o retratado não era preto retinto como o é o seu intérprete, Seu Jorge, mas mulato claro, gestado da união entre um italiano e uma baiana de ascendência sudanesa.
Sobre a questão, vale ressaltar que inicialmente o papel de Carlos Marighella estava destinado ao cantor Mano Brown, nos seus traços somáticos mais próximo ao filho de Augusto e Maria Rita. Ao escolher Seu Jorge como substituto, Moura bancou uma aposta e, estrategicamente, começou a construir um discurso de defesa pautado em cima da afirmação da negritude do líder e fundador da Aliança Libertadora Nacional, a famosa ALN, no mais puro adereço.
Claro que, nestes tempos de afirmações indenitárias, como nunca houve na história deste país, a conduta de Moura encaixou-se como uma luva, cá e lá fora. Aliás, no primeiro teste, no caso o Festival de Berlim, em 2019, Marighella foi aplaudido por dez minutos. Aplaudiu-se o libelo, a sua representação, até porque, por conta do estado de coisas, no seu conjunto o filme apresenta-se não apenas como uma peça contra a ditadura militar, mas, embutido, evoca o retrocesso dos tempos atuais e propõe uma discussão sobre as questões raciais no Brasil.
Aspirações à parte, o problema é que em Marighella não há compromisso para com a época retratada, enfim, os roteiristas jogaram às favas o peso e o espírito do tempo histórico e, principalmente, a forma de enxergar o mundo de Marighella e da própria ALN. Em outras palavras, trata-se de uma ficção repleta de “pipocos” e na qual fica a sensação de que o “guerrilheiro” travestido de “malandro carioca” se segurou para não falar “burguesinha, burguesinha, burguesinha”.
Aliás, Marighella traz à tona, novamente, a velha discussão em torno dos limites das adaptações cinematográficas de personagens importantes do nosso passado recente. E a grande questão é saber até aonde podem ir as “licenças artísticas”, artifícios que muitas vezes ajudam a elucidar sem necessariamente comprometer o essencial e a aparente verdade histórica, com aconteceu em Memórias do Cárcere (1984), de Nelson Pereira dos Santos, ou mesmo Lamarca (1994) e Zuzu Angel (2006), ambos de Sérgio Rezende.
Nem Deus, nem orixás
O diabo, para Marighella, é que há um farto material sobre o filho de Augusto e Maria Rita, desde uma biografia robusta a muitas teses acadêmicas, sem falar de artigos assinados por tantos que lhe foram próximos. Tudo isso, queira ou não, constrói um corpus por demais significativo e que nos aproxima do objeto, nos fazendo até íntimos dele e, por tabela, ásperos diante de aparentes dessacralizações.
Sobre dessacralizações, salta aos olhos os artifícios do thriller em esconder a “branquitude” de Carlos Marighela, a qual ele jamais negou, como não negou a sua porção africana. Talvez por incompreensão, Moura fez de Marighela órfão de pai, como se aquele que o concebeu não houvesse existido. E logo Augusto Marighella, anarquista italiano que lhe instruiu sobre as chamadas lutas de classe e o fez ler em francês e italiano os livros fundamentais para alimentar la buona ribellione!
Rebelião do mulato que muitas vezes era preto, mas quase sempre branco, como “brancos” eram Ruy Barbosa, Entesto Simões Filho e Roberto Marinho, em um país de autodeclarados e que viu o seu contingente de negros se esvair durante boa parte do século 20, como apontaram os censos nacionais. Então, por silogismo, não houve em Marighella o revolucionário à americana, o nosso Malcolm X, mas, apenas um homem que não professava nem o Deus judaico-cristão e muito menos os orixás. Aliás, o único “deus” que Marighella cultuou foi Stalin – e depois do Relatório Khrushchov, deus passou a ser ele mesmo.
O “caso Marighella” é um claro exemplo dos perigos decorrentes trazidos pelas “verdades” do dito “lugar de fala”. Naturalmente que se faz importante reparar, afirmar, empoderar, levando-se em conta os nossos descalabros seculares. No entanto, ainda que aparentemente bem-intencionadas, é desonesto e até perigoso se construir narrativas que não comunguem com os fatos, com a verdade histórica, sob pena de construirmos uma realidade paralela que no final pode acabar comprometendo o sentido da luta.
Apesar de tudo, mais do que nunca, Marighella vive!
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