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Novo filme de Edgar Wright, Noite Passada em Soho é suspense psicológico de boa cepa
Por João Gabriel Veiga*

Duas jovens garotas chegam à cidade grande com sonhos ainda maiores. Estilo, glamour, arte, emoção, rock and roll… Esse sonho tem endereço: Londres nos anos 1960, os swingin’ sixties. As duas meninas, no entanto, são separadas apenas pelo tempo. Sandie de fato dança e anda pelas ruas da capital britânica em 1965 — ano marcado na narrativa pela estreia de 007 contra a Chantagem Atômica. Já Eloise embarca na Londres contemporânea, mas em busca do brilho do passado com seus vinis de The Kinks e posteres de filmes antigos.
A nostalgia é uma lente cor de rosa através da qual se olha para o passado, ignorando todos os lados obscuros de um tempo que já se foi. Com esse mote, Noite Passada em Soho, novo filme de Edgar Wright (Baby Driver, Todo Mundo Quase Morto), cria um suspense psicológico com toques de surrealismo que questiona a sombria realidade por trás de um mundo idealizado.
O passado é o presente, e um sonho se torna um pesadelo – que por sua vez, se torna realidade. Matriculada na faculdade de moda e atormentada com visões fantasmagóricas de sua falecida mãe, a ingênua Eloise se descobre um peixe fora d’água nesse universo e sua fantasia começa a ruir com o assédio e olhares invasivos dos homens que por ela passam na rua. Seu refúgio é Sandie, uma garota misteriosa que começa a aparecer em seus sonhos.
A garota do passado é tudo que Eloise não é: espontânea, ousada, magnética, um espírito livre. Eloise não sabe explicar a ligação entre elas – seriam apenas sonhos, uma viagem no tempo? –, mas os vislumbres saudosistas da vida de Sandie transbordam nela, e tanto no sonho quanto na realidade, as meninas começam a misteriosamente se fundir.
No entanto, quando o interesse se torna obsessão, as lentes rosadas da nostalgia se quebram e Eloise percebe que o brilho londrino da era Rolling Stones esconde uma cidade que já poderia ser perversa com jovens mulheres sonhadoras. Essa confusão de realidades é expressa com inventividade por Edgar Wright. A primeira cena de sonho de Eloise, na qual ela deita e desperta numa noite boêmia do bairro de Soho, revela aos poucos os elementos que guiam a fronteira entre o real e o surreal.
Os elementos visuais são incorporados na narrativa de forma criativa, adicionando inicialmente deslumbre, e depois terror e tensão. Trata-se de um simbolismo intrigante.
As duas protagonistas se conhecem separadas por um espelho, uma imitando a outra, como se fossem a mesma pessoa. Esse signo inicialmente indica uma conexão entre as duas, mas também sufoca e isola Eloise em seus sonhos.
O primeiro encontro é fora do comum, não fica claro para o público se Sandie, o objeto de observação do sonho, tem consciência de que está sendo observada pela sonhadora. Há um misto de voyeurismo e camaradagem entre elas, e nunca fica claro se Eloise quer ser Sandie ou se quer protegê-la do perigo eminente que ela sabe que lhe aguarda.
Anya Taylor-Joy domina
Além disso, essa paisagem dos sonhos é construída no audiovisual com um trabalho técnico impressionante. Há um refinamento na mixagem e edição de som, que fazem diálogos e a trilha-sonora ecoarem e se distorcerem pelo filme como se fossem um canto da sereia.
Essa característica psicodélica também está presente na direção de fotografia, que ilumina cenas com azuis e vermelhos neon – uma clara homenagem ao terror giallo italiano – e fragmenta as imagens como se fossem um caleidoscópio ou um espelho quebrado. A linha entre sonho, pesadelo e realidade fica progressivamente mais turva.
Quando duas mulheres pecam, é necessário atrizes fortes o suficiente para comunicarem os gritos e sussurros da narrativa, e a dupla de protagonistas não decepciona.
Thomasin McKenzie encara Eloise com olhos arregalados, um olhar que parece sempre estar um pouco encantado e um pouco assustado com o mundo que a cerca. Seu arco dramático vai da inocência à loucura, e Thomasin é eficiente ao marcar o declínio mental de sua personagem.
O grande trunfo do filme, entretanto, é Anya Taylor-Joy no papel da enigmática Sandie. Recém-descoberta pelo grande público com o sucesso global da minissérie O Gambito da Rainha, a intérprete parece enfeitiçar as câmeras de Noite Passada em Soho. É inegável e imensurável seu carisma e seu magnetismo, que combinam como uma luva com Sandie, sempre cercada por uma aura de sedução e perigo. Para além dessa camada mais superficial, Taylor-Joy também pontua sua personagem com uma melancolia cada vez mais gritante.
No entanto, apesar do quebra-cabeça de Eloise ser sempre instigante, Noite Passada em Soho tropeça um pouco ao tentar inserir no subtexto temas mais sérios como a misoginia e a repulsa ao sexo. Esses tópicos são abordados timidamente, como se faltasse a Wright coragem de mergulhar de cabeça na escuridão psicológica de forma completamente visceral.
Noite Passada em Soho é um filme cujo tom reflete sua mensagem. É ao mesmo tempo uma ode apaixonada ao tempo dos vinis, dos Stones, Beatles e do hedonismo – e um alerta sobre os perigos de se prender a um passado que nunca existiu. Apesar de desenvolver superficialmente sua temática mais densa, o longa não deixa por um segundo de ser envolvente, surpreendente e tenso.
*Sob supervisão do editor Chico Castro Jr.
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