CINEMA
Steven Spielberg acerta em remake de Amor Sublime Amor
Cineasta reafirma status de um dos últimos grandes de Hollywood
Por João Gabriel Veiga*
O status de clássico é difícil de conquistar. Lançado em 1961, Amor, Sublime Amor (West Side Story) foi catapultado ao Olímpo dos musicais graças à fantástica trilha-sonora de Leonard Bernstein e do recém-falecido Stephen Sondheim, às coreografias e a discussão progressista (para a época) sobre as tensões em relação à imigração dos latino-americanos para os Estados Unidos. É preciso coragem para refazer um clássico, e talento para entregar algo no mesmo nível, ou até mesmo superior. Seis décadas depois, Steven Spielberg foi o cineasta que cumpriu essa missão hercúlea.
Nascido nos palcos da Broadway antes de se consagrar no cinema, Amor, Sublime Amor é uma história simples. Maria (Rachel Zegler, encantadora em sua estreia no cinema) e Tony (Ansel Elgort) são jovens amantes desafortunados à la Romeu e Julieta: se conhecem e se apaixonam perdidamente sem saber que pertencem a grupos rivais numa disputa territorial de gangues no West Side nova-iorquino. Surge então a questão: é possível uma flor crescer no cruel asfalto?
De um lado, estão os Jets (liderados por Riff, vivido pelo extremamente carismático Mike Faist, uma revelação), descendentes de italianos, poloneses e irlandeses – imigrantes brancos marginalizados no século 20 – que conhecem aquelas ruas desde o berço. Do outro, os recém-chegados Sharks, porto-riquenhos e ainda mais discriminados. Entre eles, a tensão racial explorada pela polícia do bairro.
A discussão sobre o racismo e xenofobia nunca foi um mero plano de fundo, estando em pé de igualdade com a trama romântica e se entrelaçando com esta no texto original. No entanto, se suas qualidades técnicas se tornaram o padrão de ouro para o gênero, o filme de 1961 tentou demais dourar a pílula ao abordar a problemática social, algo que não envelheceu bem.
Desde a escalação da caucasiana Natalie Wood para o papel da protagonista porto-riquenha (com direito à maquiagem para escurecer sua pele) até um discurso míope de que os latinos eram igualmente responsáveis pela violência que os mata até hoje, o tempo enfraqueceu o que em 1961 foi um pedido de paz bem-intencionado para um problema agressivo e complexo.
E é justamente a complexidade que Steven Spielberg e o roteirista Tony Kushner trabalham em seu remake – apesar dessa palavra geralmente gerar receios e cinismo. Ao invés de apenas regravar o musical com algumas alterações para torná-lo mais palatável à audiência contemporânea, a dupla captura a essência da obra e reimagina sua trama. O resultado é algo novo, que presta homenagem ao cânone mas não se rende a ele.
Sua discussão política tem mais nuances. Aqui, a briga dos Sharks e Jets é enquadrada em um contexto muito maior que uma briga de adolescentes: a especulação imobiliária, gentrificação e o interesse da polícia em incitar o ressentimento entre duas classes que se parecem mais do que imaginam, e deixar com que os grupos marginalizados ataquem uns aos outros para “limpar” o West Side.
Enquanto os Jets e Sharks pareciam autoridades máximas das ruas no filme original, Spielberg os retrata como jovens enfurecidos porém manipuláveis, usados como peões em uma guerra que não compreendem.
Os Jets ganham uma camada de complexidade, pois é discutida com mais clareza a interseção entre o privilégio branco que possuem sobre a gangue latina (uma vez que a polícia faz mais vista-grossa para seus delitos) e o preconceito que eles também sofrem por não serem de origem anglo-saxã e por serem pobres.

De igual para igual
No entanto, é Maria e os Sharks que são completamente revigorados no novo Amor, Sublime Amor. Além de escalações racialmente apropriadas, Spielberg e Kushner dá à narrativa detalhes que tornam a vivência da comunidade latina muito mais realista. Boa parte do diálogo entre os porto-riquenhos é em espanhol, e é ousado como sequer na cópia legendada exibida no Brasil eles são traduzidos.
À primeira vista, isso causa estranhamento, mas o idioma é usado na narrativa para ressaltar não só o isolamento dos latinos em relação aos seus vizinhos, mas também a união interna dessa população.
Entre outras decisões corajosas e acertadas do remake está “bagunçar” a trilha-sonora, usando as canções em uma nova ordem e em contextos diferentes para dar um ritmo próprio ao filme. Algumas cenas icônicas do original, como a sequência das canções Maria e Tonight, se assemelham muito nas duas versões, mas o longa de 2021 tem seus próprios momentos.
America, a canção mais impactante e que encapsula os temas da narrativa, ganha um escopo gigantesco e vivaz, no qual toda a população do bairro interage com o gigantesco número musical. Já I Feel Pretty ganha um novo significado ao ser entoada pela protagonista enquanto faz faxina em uma loja de grife, passando a ser sobre a contradição do estado de espírito de Maria com sua condição social, e não apenas sobre sua paixão por Tony.
Além disso, a direção de Spielberg cria um espetáculo visual deslumbrante. Apesar desse ser seu primeiro musical, o cineasta entende perfeitamente a lógica desse gênero, permitindo que o público assista cada passo das belíssimas coreografias. O longa é repleto de planos estonteantes e dinâmicos com uma direção de fotografia e a montagem ágeis e criativas, incorporando o cenário nos números musicais. O West Side aqui é ao mesmo tempo um palco da Broadway e um amontoado de destruição urbana.
Este é o raro remake que é excelente e consegue olhar seu irmão mais velho de igual para igual, que enche os olhos dos fãs do filme original e convida uma nova audiência para conhecer a obra. Confiantes em sua visão, Spielberg e Kushner fazem alterações não para diminuir ou “corrigir” o que o diretor Robert Wise fez em 1961, mas mostram o quanto compreendem a fundo e são apaixonados por essa história e seu potencial não-utilizado.
É um novo Amor, Sublime Amor, que não abre mão da magia e inocência do musical, mas o faz sem comprometer uma discussão franca sobre temas espinhosos.
Serviço
O quê: Amor, Sublime Amor (West Side Story) / Dir.: Steven Spielberg / Com Ansel Elgort, Rachel Zegler, Ariana DeBose, Rita Moreno
Salas e horários: atarde.uol.com.br/cinema
*Sob supervisão do editor Chico Castro Jr.
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