A TARDE BAIRROS
Campo Grande testemunhou glória e decadência do 1º clube carnavalesco de elite
A sede do Cruz Vermelha, de onde saía o cortejo, funcionou até 1999 na Praça Dois de Julho
Por Letícia Belém
Foi ali no Campo Grande que o histórico Clube Carnavalesco “Cruz Vermelha”, que desfilou pela primeira vez no carnaval de Salvador em 1884 com toda a pompa, funcionou até o ano de 1999, no casarão situado em frente à Praça Dois de Julho, que hoje abriga a Fundação João Fernandes da Cunha. O carnaval baiano, desde os seus primórdios, tinha se centrado no desfile oficial organizado pela elite da cidade.
Na Salvador do século XIX, o Carnaval idealizado pela alta sociedade recebia influência das representações dos teatros e salões de luxo e ostentação de Nice, Paris e Veneza, e deveria ser limpo, organizado, elegante, sofisticado e branco. “As famílias ricas importavam fantasias da França, Itália e da Alemanha para fazer um desfile monumental, com carruagens alegóricas gigantescas, ricamente decoradas com flores, estátuas e enfeites, de acordo com o enredo escolhido, puxadas a cavalo ou bois”, explica o jornalista e pesquisador do carnaval, Nelson Cadena.
O Cruz Vermelha foi a agremiação pioneira, criado por um grupo de jovens que gozavam de um bom capital social e econômico na cidade em 1883. Com o apoio de mais de uma centena de grandes comerciantes de boa posição, eles decidiram se apresentar pelas principais ruas da Cidade Alta com elegantes trajes à semelhança das cortes francesas e italianas. O modelo de desfile tinham os arautos (mensageiros), os clarins anunciadores, a carruagem triunfal que carregava o personagem de destaque e o estandarte do clube carnavalesco, a cavalaria, a guarda de honra, e os carros alegóricos, que contavam a história do enredo através das fantasias e das músicas orquestrais, operetas e marchinhas.
Havia muitas outras alas com pessoas fantasiadas representando personagens importantes a cavalo, no chão e em outros veículos ricamente enfeitados, como a prancha de bonde alegórica (um tablado de madeira em que as alegorias deslizavam sobre os trilhos do bonde). O desfile foi um acontecimento. A suntuosidade e riqueza com que eles se apresentaram nas ruas atraiu a atenção da população e da imprensa e fez história, motivando a criação de um novo clube de elite na cidade, o “Fantoches da Euterpe”, por outros jovens de famílias abastadas, que se apresentou em 1885. No ano seguinte, outro clube foi criado, o “Inocentes em Progresso”.
Logo, eles passaram a competir pela atenção da multidão que assistia aos desfiles na rua, e ao longo do percurso, aplaudiam os seus favoritos e jogavam pétalas de rosas, confetes e serpentinas, dando início a uma rivalidade que perdurou até os anos 1940. Os políticos, a imprensa e a população gravitavam ao redor dos espetáculos dos clubes de elite. Acompanhavam os préstitos desfilando com emoção, se identificavam com o seu clube de preferência, torciam e assistiam à coroação da rainha do carnaval. O Clube Cruz Vermelha era, de longe, o que tinha mais apelo popular e chegou a vencer mais de 72 títulos em 80 anos de existência.
Segundo o pesquisador, este carnaval organizado e sofisticado foi a forma de se tentar substituir as brincadeiras de momo populares que existiam à época, o entrudo, que se consistia em batalhas de rua com arremesso de “laranjinhas de cera”, seringas ou bisnagas com algum líquido dentro, que podiam ser perfume e água. Considerado “promíscuo” e proibido por decreto municipal, ficou decidido que a festa de carnaval seria permitida estritamente dentro dos limites da Rua Chile a partir da perspectiva dos clubes, que também organizavam bailes pré-carnavalescos.
Depois de 1930, no entanto, os clubes de elite caíram em um prolongado período de dificuldades financeiras, que espelhava o relativo declínio da própria situação econômica de Salvador. A guerra impediu que os grandes clubes importassem os luxos necessários para as suas alegorias e fantasias, por falta de disponibilidade ou em razão dos preços elevados, um período que durou até a década de 1950, quando os clubes tentaram recuperar o seu esplendor, mas não recuperaram o seu domínio quase total sobre o carnaval.
Entre altos e baixos, oscilando entre desfiles apoteóticos cada vez mais raros e longas ausências cada vez mais frequentes, o Cruz Vermelha conseguiu resistir até a década de 1950, mantendo a tradição de enaltecer os grandes feitos da história até o seu último desfile, em 1958, quando se apresentou com o tema “Helena de Tróia e a guarda troiana”.
A partir daí, outros clubes menores foram surgindo, a maioria das festas elitizadas para passou a acontecer nos bailes das sedes dos vários clubes, perdeu-se o controle da festa, ocupada pelos soteropolitanos comuns que deixaram de ser espectadores para participar ativamente com as suas batucadas, o samba, os afoxés e a animação nas ruas por toda a cidade, além da delimitação oficial, até o surgimento do trio elétrico.
Os antigos clubes ainda tentaram recuperar o seu antigo esplendor, mas foram perderam o luxo e o protagonismo, o que para Nelson Cadena foi uma coisa positiva. “A festa se tornou mais democrática, a cultura afro-baiana foi incluída e as pessoas de diferentes classes sociais também puderam passar a brincar e se divertir no carnaval, sem serem criminalizadas pelas autoridades”, analisou.
Os salões do casarão do Campo Grande abrigaram muitos bailes e valsas para as altas rodas sociais, mas nos últimos anos em que funcionou, viu o público ir sumindo e foi sobrevivendo de festas de samba e pagode a preços populares até encerrar as atividades.
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