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A TARDE Memória: as formas de celebrar o Natal em Salvador ganharam caminhos variados ao longo de 50 anos

Publicado sábado, 19 de dezembro de 2020 às 06:03 h | Atualizado em 21/01/2021, 00:00 | Autor: Cleidiana Ramos*
Em sua primeira edição de Natal, A TARDE produziu capa especial | Fotos: Arquivo A TARDE | 24.12.1912
Em sua primeira edição de Natal, A TARDE produziu capa especial | Fotos: Arquivo A TARDE | 24.12.1912 -

Apandemia de coronavírus continua a impor desafios para as nossas formas de lidar com o cotidiano. O aumento de casos e as indefinições sobre a vacinação no Brasil coincidiram exatamente com o início do calendário das festas de verão. O Natal está incluído neste período, mas possui um ciclo com características muito específicas. Há 50 anos as festas natalinas espalhavam-se por diferentes partes de Salvador e se estendiam até o Dia de Reis, comemorado em 6 de janeiro. Além dos ternos, era possível encontrar, no período anterior, na véspera e no chamado dia santo do Natal, os bailes pastoris e os ranchos aumentando a programação festiva de verão, já composta pelos bandos anunciadores das homenagens a santos e os banhos de mar à fantasia. É possível verificar um pouco deste contexto na análise da cobertura do ciclo natalino em um período de cinco décadas das publicações de A TARDE. O ponto de partida é 1912, quando o jornal começou a circular.

Em seu primeiro ano, A TARDE preparou uma capa especial para a edição de 24 de dezembro. Os textos foram publicados ao lado de imagens que reproduzem obras de arte com cenas bíblicas. Há informações sobre o presépio e as comemorações na Itália. O conjunto da cobertura seguiu um tom de nostalgia destacando a diminuição de eventos tradicionais, como a ocorrência dos bailes pastoris. Há inclusive uma referência ao trabalho de Mello Moraes Filho sobre a importância dessas manifestações.

Alexandre Mello Moraes Filho (1844-1919), folclorista, etnógrafo e poeta, foi um entusiasta dos eventos do ciclo natalino, como os bailes pastoris. Esta manifestação é uma espécie de auto de Natal. Durante a sua realização, em frente a um presépio, encenam-se, com música e dança, episódios relacionados ao nascimento de Jesus, como a visita dos pastores à manjedoura. Mello Moraes Filho chegou a participar da organização dos bailes pastoris em Salvador, na esperança de manter a tradição em movimento. No livro de sua autoria e intitulado Festas e tradições populares do Brasil, ele destaca esses eventos como elementos essenciais das celebrações natalinas com potencialidade para ocorrer tanto nos ambientes de elite econômica como nos de pobreza.

“Os bailes pastoris, que desenham com mais firmeza os traços fisionômicos da Noite de Natal na Bahia, executam-se nas habitações remediadas e pobres, e nos palácios dourados da opulência”. (p. 49).

Assim, dez anos depois, a edição de 24 de dezembro de 1922 de A TARDE relatava com tristeza, em texto assinado por Bueno Monteiro, o recuo dessas celebrações regionais. O artigo afirma que o Natal em Salvador já está parecido ao de tantos outros lugares do mundo, sem presépio ou outras manifestações próprias:

“Substituíram os presépios as árvores do Natal que são levantadas ahi nos salões e fechadas à chave para os Íntimos, quando vierem à visita convencional do convite... Umas árvores tendo nos ramos pastas de algodão a fingir neve a penduricalhos de pollchinellos, da cestinha de confeitos, de bonequinhas da louça, de Cupidos de biscuit com arco e flexa!...

Festejamos um Natal escandinavo, russo, alemão, inglez: um Natal que escapa às tradições religiosas e principalmente as tradições da nacionalidade que aspiramos.

A nossa festa já ninguém promove”. (A TARDE, 23/12/1922, p.9).

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Em 23/12/1922, relatos apresentam nostalgias sobre as celebrações de Natal mais antigas

Eventos variados

Mesmo com a proeminência do Natal de características europeias, o toque baiano conseguiu se firmar. A edição do dia de Natal em 1932 mostra uma festa distribuída por vários locais da cidade e com eventos bem diversificados.

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A TARDE promoveu festa especial para crianças pobres a partir de campanha que arrecadou donativos

No Campo Grande, as crianças de baixa renda ganharam uma festa promovida por A TARDE a partir de uma campanha para recolher donativos. Houve distribuição de brinquedos, leite e um apelo às padarias para que se somassem também às comemorações. A ideia, de acordo com o texto da reportagem, era fazer com que Papai Noel visitasse as crianças mais pobres:

“As creanças ricas teem os paes que podem facilmente proporcionar-lhes as alegrias desta festividade. As creanças pobres, porém, não dispõem das mesmas facilidades. Dahi o gesto do Papae Noel de A Tarde tomando medidas para que a essas creanças fossem lícitas as alegrias do Natal. Os donativos vieram de todos os pontos e milhares de creanças receberam cartões que as habilitam a receber os mimos que lhes foram destinados”. (A TARDE, 24/12/1932, p. 2).

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Em 24/12/1932, festa para crianças no Estádio da Graça

A mesma edição traz detalhes de outras comemorações que ocorreram na cidade, como uma série de jogos no estádio da Graça, organizados pelos funcionários da Companhia Linha Circular e Energia Elétrica e os bailes particulares realizados nos clubes. Na lista destes eventos estão os do Bahiano de Tênis e até a participação de uma jazz-band em Amaralina onde se anunciam os banhos de mar, possivelmente à fantasia.

Com o hábito de veraneio para as famílias que podiam se afastar do centro da cidade, áreas como a Cidade Baixa, Rio Vermelho e Amaralina eram ocupadas por estas de meados de dezembro até o fim do Carnaval. Assim, as festas nestes locais costumavam começar com o calendário natalino e as muitas comemorações para os santos padroeiros das localidades. A programação tinha atividades variadas, como o bando anunciador com desfile de corso que ocorria no Rio Vermelho.

Em 1942, A TARDE manteve a capa especial com textos de Olavo Bilac, Eça de Queiroz, a mensagem de Natal do papa Pio XII e o recurso de utilizar ilustração de obras de arte sobre cenas relacionadas ao nascimento de Jesus. Dez anos depois o mesmo formato foi utilizado, mas a cobertura apresentou os detalhes da festa combinando missas e as celebrações feitas para ganhar as ruas, como os bailes pastoris e ternos.

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Em 24/12/1942, textos e imagens em capa especial para celebrar o Natal

Na edição de 26 de dezembro de 1952, as reportagens mostraram as comemorações de Natal ainda mais conectadas ao início das celebrações pelo verão. A programação natalina, por exemplo, é apontada como o início do ciclo de festas no Rio Vermelho. Também houve celebração no Convento de Nossa Senhora da Salete, nos Barris, e as crianças pobres foram amparadas em um evento realizado em Amaralina.

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A TARDE manteve tradição de publicar capa especial em 24/12/1952

Protesto por falta de acarajé

Na mesma edição há uma denúncia que dá a dimensão da importância das baianas de acarajé. A reportagem intitulada “Guerra ao Acarajé – Toque de recolher para as baianas”, após destacar a importância do trabalho dessas mulheres para a cultura da Bahia denuncia uma perseguição contra elas. Segundo o texto, devido a novas regras do poder público, não foi possível encontrar durante os festejos natalinos acarajé e abará nas ruas da cidade. Parece que, mesmo em meio a festas com fartas ceias, não foi possível suportar a ausência do bolinho que já aparece, portanto, com uma importância crucial para a leitura simbólica sobre Salvador.

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Em 24/12/1952, jornal celebra a volta dos presépios

“Nos pontos habituais, faltavam muitas das ‘bahianas’ como se todas se houvessem recolhido ao culto de seus orixás. Soube-se, porém, o que ocorrera: prepostos da municipalidade, da polícia, da saúde pública – não foi possível apurar, dada a disparidade de depoimentos – andaram avisando que, “de agora por diante”, não mais seria permitido preparar o acarajé nas fornalhas de rua, devendo a iguaria ser preparada em casa. E que todas aquelas surpreendidas em delito – que crime o fritar acarajés saborosos! – seriam recolhidas e castigadas”. (A TARDE, 26/12/1952, p. 2).

Atualmente, não dá sequer para imaginar – embora já tenha ocorrido períodos assim – o acarajé frito longe do seu público sem emanar o sedutor aroma do azeite de dendê. O que dizer então da impossibilidade de visualizar, o que já aguça o paladar: a baiana cuidadosamente adicionando os acompanhamentos – pimenta, vatapá, salada e camarão – ao acarajé?

As baianas ganharam na reportagem, além de uma defesa veemente, a reiteração de sua importância para a cidade, inclusive com uma comparação elogiosa aos cuidados higiênicos dos seus tabuleiros, considerados até mais seguros do que os de alguns restaurantes:

“As vendedoras de acarajé, além de serem uma tradição de nossa vida, não ofendem aos pruridos sanitaristas ou estéticos de quem quer que seja, pois ainda não se viu ninguém intoxicado por seus quitutes, o que comumente ocorre em casas de pasto pretensamente higiênicas. E não é só : as bahianas do acarajé têm séculos de tradição e de direitos e não será por qualquer dá cá aquela palha que se poderá decretar o seu desaparecimento”. (A TARDE, 26/12/1952, p. 2).

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Cobertura conta como foi a celebração de Natal de 26/12/1952 em vários pontos da cidade e o ataque ao ofício das baianas de acarajé

E não foram só as baianas que ganharam a defesa durante o Natal. Mesmo com as inovações, tradições como os presépios e os ternos de reis conseguiram resistir às dinâmicas da transformação de Salvador de cidade média em uma metrópole. Alguns eventos ficaram pelo caminho, como os bailes pastoris, mas memórias como as registradas nas edições de A TARDE são cruciais para compreender a importância estratégica de periódicos como importantes mediadores dos variados agentes culturais de uma comunidade, especialmente quando ela possui uma impressionante diversidade cultural como é a Bahia.

A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantêm a grafia ortográfica do período. Fontes: edições de A TARDE; Cedoc A TARDE. Festas e Tradições Populares do Brasil (Mello Moraes Filho), Ed. Itatiaia, São Paulo, 1979).

*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em Antropologia

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