SALVADOR
A TARDE Memória: fonte milagrosa tem forte presença no culto a Santa Luzia
Por Cleidiana Ramos*

Amanhã, domingo, 13, é dia da Festa de Santa Luzia. A celebração para a considerada protetora contra os problemas de visão integra o calendário das comemorações de largo do verão baiano. Devido aos cuidados por conta da pandemia, as homenagens na Igreja de Nossa Senhora do Pilar e Santa Luzia, no bairro do Comércio, terão público restrito e transmissão via plataformas digitais. Um dos mais fortes elementos da festa não irá ocorrer: o acesso à fonte que tem águas tidas como milagrosas.
Na pesquisa para a elaboração da tese intitulada Festa de Verão em Salvador – um estudo antropológico a partir do acervo documental do jornal A TARDE, que defendi em 2017 no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Ufba (PPGA), identifiquei 103 imagens relacionadas à comemoração. Na coleção predominaram os registros sobre a procissão e o acesso à fonte.
Já na coleção de reportagens, a primeira citação à festa foi em uma edição de 1912, ano de fundação de A TARDE, mas em referência à celebração no bairro da Saúde. Com o tempo a festa no Pilar ganhou uma visibilidade maior. A edição de 5 de dezembro de 1938 trouxe o registro das bênçãos do que são apresentadas como novas instalações para o manancial.
“Na igreja matriz do Pilar realizou-se hontem a cerimônia da benção das novas installações da fonte milagrosa de Santa Luzia, protectora dos olhos. A solenidade teve grande assistência dos devotos sendo oficiada pelo revmo. mons. Appio Silva, vigário geral do Arcebispado”. (A TARDE, 5/12/1938, p.2).

A força da rocha que oferece água
O culto a Santa Luzia ganhou uma forte projeção no Brasil. A devoção, segundo a tradição católica, vem de Siracusa, Itália. De acordo com o livro Um santo para cada dia, de Mario Sgarbossa e Luigi Giovannini, a devoção a Luzia é bastante antiga e difundiu-se rapidamente tanto pelo Ocidente como pelo Oriente. Em 1894 foi encontrada uma inscrição em um sepulcro atribuído a Luzia, em Siracusa, o que, para os autores, comprova sua historicidade, uma característica que falta a alguns santos, como São Jorge.
Em Salvador, o culto se estabeleceu na Igreja de Nossa Senhora do Pilar, uma construção do século XVIII. Nossa Senhora do Pilar foi uma devoção da comunidade espanhola muito presente no bairro do Comércio durante o seu período como centro econômico da capital baiana. A igreja tem um cemitério em área anexa e a narrativa de uma aparição milagrosa relacionada à fonte.

“A origem dos “milagres de Santa Luzia” nesse local possui várias versões. Numa delas, ouvida de uma de suas devotas, ‘a própria santa teria aparecido naquele lugar e, como um sinal de sua passagem, deixado para os seus devotos a fonte de água milagrosa’”, narra o doutor em antropologia Vilson Caetano de Sousa Júnior em seu livro Orixás, santos e festas.
Em 2015 durante o trabalho de campo observei uma fila com espera de, em média 1h30, para acessar a fonte. E, embora no entorno da igreja ambulantes estivessem vendendo garrafas com água que juravam ser da fonte, a oferta não costuma ter alta aceitação. Ao que parece, os devotos consideram parte de um rito ter a paciência de esperar o acesso e recolher a água por conta própria.
A relação da festa com a água que jorra de uma estrutura rochosa se conecta a uma prática muito antiga no âmbito da religiosidade ocidental, como destaca o doutor em antropologia Ordep Serra. Segundo ele, grupos humanos, desde o período neolítico, já tinham as grutas como local de celebrações ligadas ao que podemos chamar de práticas do ambiente mágico. Em várias culturas ocidentais as celebrações com as formações rochosas ocupando um lugar de destaque ganharam força.

“As celebrações às ninfas estão relacionadas a grutas por conta da interação entre rocha e água. Também nos cultos a Pã e Dionísio. O catolicismo romano aproveita todos esses lugares de culto para estabelecer suas práticas. O culto a Nossa Senhora de Lourdes, por exemplo, acontece em uma gruta. O mesmo acontece em outras invocações a Maria”, destaca Serra, que é professor da Ufba.
O culto católico ao Bom Jesus no oeste baiano, em Bom Jesus da Lapa, acontece em uma igreja formada por um conjunto de grutas. Anualmente, a cidade recebe milhares de peregrinos mobilizados para contemplar a igreja definida por eles, em um dos hinos mais conhecidos da devoção, como feita de “pedra e luz”. Mas das paredes da igreja do Bom Jesus da Lapa escorre água considerada capaz de curar problemas de saúde.
Mais encontros
A devoção a Santa Luzia em Salvador também dialoga com elementos das religiões afro-brasileiras. A santa católica é relacionada por alguns devotos a orixá Oxum, mas de uma forma diferenciada da conexão entre Santa Bárbara e Iansã, por exemplo. No caso de Santa Luzia, ela é associada a uma “qualidade”, que é uma categoria do que seria a essência maior das divindades do candomblé. Sob esta perspectiva, Santa Luzia é associada a Oxum Apará ou Opará.
Uma das narrativas sobre essa qualidade de Oxum, senhora das águas doces, conta que ela ficou incomodada com várias citações à beleza de Iansã. Assim enfeitiçou um espelho e este passou a refletir imagens distorcidas. Ao usar o espelho, Iansã ficou impressionada com o que reconheceu como seu rosto. Ao contemplá-lo várias vezes acabou por enlouquecer. Assim, Olorum, o deus supremo, após repreender Oxum, disse que a faria ter uma marca para se lembrar do que havia feito. Ao se apresentar sob essa qualidade ela usa vermelho e espada em uma referência a características de Iansã. Já em outras narrativas, Apará ou Opará é uma orixá específica.

O professor Ordep Serra aponta um oriki – a forma como essas narrativas mitológicas da cultura iorubá são apresentadas – em que Oxum Apará é descrita como a dona do olhar que fascina. Seus filhos também carregam essa forma de encantar. Para ele, foi a partir de encontros com elementos como esse que a associação com Santa Luzia foi sendo construída na devoção popular.
O também professor da Ufba Vilson Caetano destaca a relação dessa qualidade com uma característica que aproxima Oxum da apresentação como guerreira. “Oxum Opará é identificada como a mais jovem das Oxuns e por isso guerreira. Ela usa um amarelo-ouro mais forte para identificá-la e o vermelho que a aproxima de Iansã”, acrescentou.
Em sua pesquisa sobre as festas de largo baianas, Vilson Caetano também encontrou referências à orixá Ewá. “Ela é uma caçadora e por isso tem essa característica guerreira. Ewá carrega espada e ofá”, acrescenta.
Vilson Caetano também destaca as relações do catolicismo com santas que estão na categoria de mártires, como Luzia. Estas têm o vermelho como a sua cor litúrgica indicativa. No candomblé, de acordo com ele, que é o babalorixá do Ilê Axé Obá L’Oke, situado em Lauro de Freitas, o vermelho representa a característica guerreira das deusas. “Ewá, Iansã e Obá estão nessa categoria. E também Oxum Apará, que aparece nessa relação com Santa Luzia”, acrescenta.
Com tantos elementos interessantes, a Festa de Santa Luzia conquistou sua importância no calendário do verão baiano. Como é protetora da visão, que ela ilumine a ciência na busca das saídas essenciais ao combate da pandemia de coronavírus para que as celebrações possam retornar às ruas com toda a sua potência simbólica.
A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período. Fontes: Cedoc A TARDE, Um Santo para cada dia (Mario Sgarbossa e Luigi Giovannini, Paulus, 1983); Orixás, santos e festas (Vilson Caetano de Sousa Júnior, Eduneb, 2003).
*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em Antropologia
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