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SALVADOR

Axé ganha face própria

Por JORNAL A TARDE

29/03/2006 - 0:00 h

As tradições africanas foram adaptadas à realidade local da escravidão, além de ter interagido com outras crenças



Cleidiana Ramos




O sistema escravista trouxe para Salvador uma diversidade de povos africanos. A herança cultural desses homens e mulheres trazidos à força e dos seus descendentes também marcaram de forma profunda a religiosidade da cidade. O candomblé aqui praticado ganhou uma feição completamente diversa da matriz original, a África, além de ter absorvido as tradições das crenças indígenas e da própria religião dominante, o catolicismo.



“Houve um encontro de tradições diferentes, mesmo porque os escravos vindos de várias etnias estavam reunidos aqui, num mesmo local”, aponta o doutor em antropologia e professor da Ufba Renato da Silveira, que há 22 anos estuda o caminho até a sistematização do candomblé, principalmente o ketu, como ele é conhecido hoje.



O antropólogo destaca, por exemplo, que a reunião de várias divindades num mesmo espaço é uma característica própria da Bahia. “Na África, não há esse culto conjunto. As divindades estão muito ligadas a uma determinada etnia, diferente do que foi feito aqui”, completa Silveira.



A realidade histórica foi essencial para essa diferenciação baiana. Confinados a um sistema de trabalho forçado, sem nenhum tipo de direito, os africanos tiveram que criar um modelo próprio para manter sua identidade cultural. Foi uma tarefa gigantesca, afinal estavam numa terra onde não havia nenhum tipo de referência nem territorial, nem tampouco lingüística.



“Os modelos dos ritos foram sendo recriados diante dos obstáculos que se apresentam pela realidade encontrada aqui. Eles não tinham liberdade, por exemplo, para expressar livremente sua religiosidade. Era tudo feito às escondidas, o que vai aproximá-los das semelhanças que encontravam entre suas divindades e os santos católicos”, destaca Jaime Sodré, doutorando em história social, xicarangoma, título do sacerdote músico, e oloê, espécie de conselheiro do Terreiro Bogum.



O desafio foi vencido com maestria. Além do próprio culto foram preservadas as línguas, os costumes, a culinária que agrada às divindades, os cantos e danças próprias.

  

UNIÃO – De acordo com Sodré, as referências mais antigas ao que hoje conhecemos como candomblé são os chamados calundus, praticados pelos negros de etnia banto, provenientes, principalmente, da região onde hoje encontra-se Angola. Essa religiosidade tinha uma característica muito interessante: era voltada principalmente para o conhecimento das ervas e seu poder de cura.



“Era uma atividade de serviço, bem mais do que religiosa. Isso chegou a ser tão difundido que os compradores de escravos chegavam a procurar os que tivessem esse conhecimento. Existiam casos de escravistas que usavam esse conhecimento dos seus escravos para obter renda”, completa Sodré.



Nesses casos, o conhecimento e a crença no poder dos seus inquices, nome das divindades da religião banto, era algo muito particular e mantido de forma discreta. A partir do século XIX, os escravos de origem nagô, dentre os quais os ketu, com predominância da língua iorubá, tornam-se mais numerosos.



Em 1764, a Irmandade de Bom Jesus dos Martírios fixa-se na Igreja da Barroquinha, de acordo com as pesquisas de Renato da Silveira. Era uma sociedade de escravos libertos, os chamados homens pardos.



Por volta de 1840, nos fundos do templo começam a acontecer os rituais de africanos, possivelmente a semente da sistematização dos rituais do candomblé. “O fundo da Igreja da Barroquinha torna-se o palco da idéia do que hoje conhecemos como terreiro, ou seja, um lugar específico para o culto das divindades, todas reunidas num só lugar, bem diferente da configuração africana. Cada casa passa a ter seu patrono e é então configurada a hierarquização com uma forte dominação feminina e os homens mais como auxiliares”, acrescenta Sodré.



Uma africana originária do reino de ketu de quem ainda se sabe pouco e que ficou conhecida pelo seu título religioso Iyá Nassô, é uma personagem fundamental nesse processo, a ponto de ter dado o nome sagrado – Ilê Axé Iyá Nassô Oká – da Casa Branca. Ela era uma alta sacerdotisa do reino de Oyó, participante do grupo responsável por cuidar da proteção espiritual do rei local.



A Casa Branca tornou-se a matriz do candomblé ketu ou nagô a partir da expulsão do culto da Barroquinha pelo governador Francisco Gonçalves Martins em 1850. A federação torna-se o novo endereço dessa resistência. Desse terreiro teria origem outros tradicionais na cidade como o Gantois e o Ilê Axé Opô Afonjá.



Herança étnica diversa



Embora o modelo ketu tenha ficado mais conhecido, o antropólogo Jaime Sodré aponta que a sistematização do candomblé reuniu as mais variadas experiências étnicas. Uma foi interagindo com a outra. A palavra candomblé, por exemplo, é de origem banto.



“Uma foi completando as outras. Por esse motivo há todo um ambiente propício para que um santo de uma etnia se manifeste numa outra. Há toda uma identidade étnica conjunta”, completa Sodré.



E esta união daria ao candomblé da Bahia uma diversidade única, que inclusive espalhou-se por outros Estados brasileiros, como São Paulo e Rio de Janeiro e que já começa a ganhar outros países, como Argentina e EUA. O candomblé baiano está dividido por nações, nome para as tradições, principalmente lingüísticas.



A angola tem como língua o banto e reúne a herança dos escravos tirados à força da atual região de Angola e primeiros a chegar a Salvador. Sua relação com o divino se dá por meio dos chamados inquices.



Desta forma, a nagô ou ketu é herança dos povos que falavam o iorubá e que são originários de onde hoje está a Nigéria. Nessa vertente as divindades são chamadas de orixás.



A jeje tem como referência lingüística o ewé, trazido pelos negros da região da atual República do Benim. Suas divindades são os voduns. Tem ainda o candomblé dos caboclos, que reverenciam os ancestrais indígenas, a umbanda, que reúne elementos do candomblé, catolicismo, espiritismo e outras crenças, dentre outras.



“Se formos analisar mais a fundo essa rede de derivações ainda temos as subdivisões dentro das tradições, como a ijexá na ketu, sem falar de divindades com nomes até de outras referências continentais como Rei da Hungria e Sultão das Matas, do candomblé de caboclo”, diz Sodré.



Alianças para a sobrevivência religiosa



Por mais que a associação religiosa entre santos católicos e divindades das religiões de matrizes africanas tenha sido criticada nos últimos tempos mesmo por religiosos do candomblé, numa batalha pela afirmação da sua religiosidade, ela é um traço marcante da Bahia. Uma característica da própria fixação da religião que de tão própria ficaria conhecida como afro-brasileira.



“Não podemos esquecer que o candomblé era uma religião de escravos, sem nenhum tipo de direito. A religião dominante era a católica e eles foram fazendo a releitura dentro do que lhe era possível”, salienta Sodré.



A interreligiosidade das crenças, que alguns religiosos chamam hoje de afro-catolicismo, produziu até a presença mais marcante de uma etnia numa determinada igreja. “A Igreja dos 15 Mistérios era a preferida pelos jejes; a de Nossa Senhora dos Martírios, pelos ketu e a de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, pelos angolas”, aponta Sodré.



Por outro lado, a proximidade com os índios foi fundamental para o reconhecimento da flora local, um quesito indispensável para um aspecto da religião de matriz africana: a cura do corpo. “O conhecimento que eles foram absorvendo das ervas locais é uma herança indígena, se bem que também foram importadas da África diversas plantas indispensáveis ao culto”, diz Sodré.



A relação com as crenças não se esgotou na troca de conhecimentos sobre plantas. Há o chamado candomblé de caboclo, ou seja, a presença de divindades consideradas donas da terra, uma homenagem aos ancestrais indígenas. Eles tanto estão presentes nos terreiros de nação ketu, angola e jeje, como têm espaços próprios para o seu culto.



Uma outra aliança surpreendente é a firmada entre os rebeldes malês e os terreiros de origem jeje, afinal os primeiros professavam a fé islâmica. “É a solidariedade própria dos oprimidos. O candomblé jeje em Salvador tem muito de característica rebelde, até por conta dessa sua proximidade com os malês”, salienta Sodré.



Universo Multifacetado



O candomblé em Salvador é conhecido pela diversidade. Cada uma das três vertentes mais conhecidas tem grandes terreiros como marcos



CASA BRANCA – Com o nome sagrado de Ilê Axé Iyá Nassô Oká tem a sua história ligada à primeira metade do século XIX como marco da sistematização do candomblé. Por volta de 1850 seus fundadores migram para a Federação, como resultado da repressão imposta pelo governador Francisco Gonçalves Martins.



É considerado o centro de culto religioso de matriz africana mais antigo do Brasil, guardando uma rica tradição dos reinos de Oyó e Ketu. Foi o primeiro terreiro reconhecido como patrimônio pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 1984. Avenida Vasco da Gama, 463.



Bate Folha - De nação angola, o Bate Folha foi fundado em 1916 pelo tata de inquice Manoel Bernardino da Paixão. Tem a maior área verde dos terreiros de Salvador: 155 mil metros quadrados, interligando os bairros de Mata Escura e Bom Juá. Foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 2003.Travessa de São Jorge, 65, Mata Escura.



Bogum – Não há registros históricos precisos sobre o ano de fundação do terreiro Zoogodô Bogum Malê Rundó, mas sobram referências sobre sua importância nas pesquisas históricas sobre o candomblé. É o mais conhecido candomblé de origem jeje-mahi em Salvador. Maria Valdelina dos Anjos Costa, a Doné Runhó, título que ostentou como sua mais alta sacerdotisa é a única religiosa do candomblé a ter ganhado uma homenagem pública na cidade, com uma praça que leva o seu nome e o seu busto, nas proximidades do terreiro. Ladeira Manoel Bonfim, Engenho Velho da Federação

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