SALVADOR
Casos de TEA crescem em adultos
A criança diagnosticada com TEA permanece sendo neurodivergente ao longo da vida
Por Jane Fernandes

A atriz Letícia Sabatella revelou ter Transtorno do Espectro Autista (TEA), em entrevista realizada na primeira semana deste mês. O diagnóstico da artista, aos 52 anos, chama a atenção para o aparente crescimento de casos identificados na idade adulta, embora o olhar da sociedade e das políticas públicas esteja bastante concentrado no público infanto-juvenil.
Entre crianças e adolescentes, o avanço da incidência de TEA, um transtorno do neurodesenvolvimento, tem sido constatado em pesquisas desenvolvidas em diversos países e no Brasil foi observado pelo último Censo Escolar, ao indicar um aumento de 280% entre os alunos matriculados nas redes pública e particular do país, entre 2017 e 2021.
De acordo com Letícia, ela se enquadra no nível 1, definido no DSM-5 (versão mais recente do Manual de Diagnósticos de Transtornos Mentais) como autismo leve, e caracterizado por especialistas como casos que requerem pouco suporte. Esse também é o nível no qual se encontra Mariana*, 24 anos, segundo sua mãe, Rosane*. “Mas precisa de acompanhamento com equipe multidisciplinar. Se não tiver essas assistências, piora suas habilidades e pode voltar ao nível 2”, comenta.
Ainda na infância da filha, Rosane* notava a resistência à socialização, a dificuldade com números e a seletividade com texturas, especialmente em alimentos e roupas, mas a repercussão dessas características na vida da menina era limitada. O cenário mudou quando ela chegou à adolescência e começou a sofrer bullying em decorrência das suas barreiras sociais, fazendo com que se afastasse cada vez mais dessas interações, o que desembocou em uma grave depressão.
“Naquele momento, pelo risco de suicídio e necessidade de medicação, a prioridade foi cuidar do lado psicológico com equipe multidisciplinar”, recorda, acrescentando que após a estabilização do quadro, ela foi orientada a buscar uma avaliação neuropsicológica para filha. Mariana* tinha 19 anos quando o processo foi concluído e indicou que ela estava no espectro autista.
Entendimento
A jovem considera o diagnóstico um divisor de águas em sua vida. “Pude buscar o que poderia me ajudar no dia a dia de convivência social, na faculdade e até no lazer diário. Em uma avaliação neuropsicológica, consegui descobrir (ou reforçar) quais os meus pontos fortes (como escrita, por exemplo, em comparação com comunicação falada) e fracos”, conta Mariana*, que respondeu a entrevista por escrito.
Mariana* avançou na graduação respeitando o seu ritmo e atualmente cursa o último semestre, mas preferiu não divulgar a faculdade. Sua comunicação com colegas ocorre apenas se houver muita necessidade, mas seus professores sabem do TEA e buscam adaptar as avaliações e trabalhos. “Uma simples ligação telefônica (ou até mesmo um cumprimento com um conhecido na rua de modo inesperado) gasta, em mim, uma carga imensa de energia”, revela.
A universitária não tem dúvida de que um diagnóstico precoce teria sido benéfico, pois tanto ela quanto familiares aprenderiam a lidar melhor com a questão, e lamenta a baixa efetividade da inclusão na sociedade. “Se vivemos praticamente como pessoas ‘normais’, não nos consideram PCD (pessoa com deficiência), por mais que tenhamos um diagnóstico comprovado, características e dificuldades explícitas, e direitos garantidos na lei”, desabafa.
O enquadramento de quem tem TEA como PCD para todos os efeitos legais está determinado na Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (Lei 12.764), instituída em dezembro de 2012. A lei lista o diagnóstico precoce entre os direitos que devem ser assegurados aos pertencentes ao espectro autista.
Saúde
Embora a criança diagnosticada com TEA permaneça sendo neurodivergente ao longo da vida, o público infanto-juvenil é predominante nos serviços disponibilizados na rede pública, e não há nenhum com foco específico no acolhimento do adulto com diagnóstico tardio. No Centro Especializado em Reabilitação II, unidade sob gestão da Apae que integra a rede complementar parceira da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), apenas dois dos 123 pacientes no espectro autista são adultos.
Em nota, a Apae explicou que as ações de reabilitação/habilitação são executadas por equipes multiprofissionais e interdisciplinares desenvolvidas a partir das necessidades de cada indivíduo e de acordo com o impacto da deficiência sobre sua funcionalidade. O acesso ocorre por meio do Sistema Municipal de Regulação e/ou encaminhamento de unidades da rede municipal ou outras unidades da Apae.
De acordo com a assessoria de comunicação da SMS, a rede complementar do Município que contempla o público com TEA conta com dois outros Centros, além do operado pela Apae em Coutos, um deles em Ondina e outro no Rio Vermelho, gerido por outras instituições parceiras.
Ligado à Secretaria da Saúde do Estado, o Centro de Referência Estadual para Pessoas com Transtorno do Espectro Autista é uma unidade focada na capacitação de profissionais do sistema público de saúde dos municípios baianos. Algumas pessoas com TEA são acompanhadas continuamente no Centro desde a sua criação, em 2016, o que auxilia no desenvolvimento de estratégias voltadas para esse público, mas não há oferta de atendimento.
*nomes fictícios a pedido das entrevistadas
Professora da Escola Baiana de Saúde Pública, a psiquiatra Milena Pondé é uma das autoras do livro “Manual Labirinto para o diagnóstico de autismo e sintomas associados”, publicado em 2021. Em sua avaliação, o aumento acelerado de diagnósticos de TEA (Transtorno do Espectro Autista) em adultos é resultado, sobretudo, da confusão entre apresentar traços característicos do espectro e ter TEA.
“Diagnosticar autismo no adulto é um desafio muito grande, porque é um diagnóstico da infância. Então é preciso que se remonte a infância para identificar se realmente trata-se de um transtorno do neurodesenvolvimento ou é alguma condição psiquiátrica que faz interface com autismo”, ressalta Milena. Ela acrescenta que todo transtorno psiquiátrico vai trazer algum prejuízo na adaptação social da pessoa.
A médica exemplifica o transtorno de ansiedade social e o transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) entre as condições psiquiátricas que compartilham sintomas com TEA na idade adulta. Embora tenha atuado no desenvolvimento do instrumento brasileiro para avaliação do espectro, junto com colegas da área, ela enfatiza o caráter auxiliar desses testes e o papel preponderante da avaliação clínica no diagnóstico.
Psicologia
Especializado em psiconeurologia, o psicólogo Samuel Possidônio atua há dois anos no processo diagnóstico de TEA e atribui o avanço entre adultos ao maior acesso à informação sobre o tema. Embora o paciente possa demandar diretamente a avaliação neuropsicológica, o mais comum, segundo conta, é que as pessoas sejam encaminhadas por psiquiatras e neurologistas, as especialidades médicas que podem emitir laudos para fins legais.
“A gente não investiga apenas o transtorno que se acredita que a pessoa tenha, a gente precisa fazer um panorama de como estão as funções cognitivas dessa pessoa. A gente faz observação clínica, escuta os relatos do paciente, aplica alguns questionários que a gente acaba construindo na nossa própria prática clínica ou outros questionários que são chamados de inventários”, explica Possidônio.
Em sua percepção, levantar suspeitas com base em vídeos e outras publicações em mídias sociais não é negativo, desde que posteriormente ocorra a busca de profissionais qualificados para confirmar ou descartar esse diagnóstico. Um risco destacado por ele, nessas situações, é a pessoa assumir o sintoma como identidade e transferir para esse aspecto a responsabilidade sobre os seus atos.
Atuando no acompanhamento de pessoas com TEA há cinco anos, especialmente adultos, a psicóloga Andréa Barreto concentra seu trabalho no auxílio ao auto entendimento. “Independente de um diagnóstico, o importante é que a pessoa possa realizar uma intervenção terapêutica, porque o que leva ela a buscar um profissional é justamente o desconforto, uma sensação de deslocamento do mundo”, comenta.
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