Menu
Pesquisa
Pesquisa
Busca interna do iBahia
HOME > bahia > SALVADOR
Ouvir Compartilhar no Whatsapp Compartilhar no Facebook Compartilhar no X Compartilhar no Email

SALVADOR

Desafiando a SSP, mulheres fizeram topless no Carnaval de 1981

Por Cleidiana Ramos*

16/02/2021 - 6:00 h
Mulher tira a blusa em meio à multidão | Foto: Gildo Lima | Arquivo A TARDE | 4.3.1981
Mulher tira a blusa em meio à multidão | Foto: Gildo Lima | Arquivo A TARDE | 4.3.1981 -

Em 1981, a Secretaria da Segurança Pública da Bahia (SSP) baixou uma inusitada portaria: estava proibido o topless durante os dias de Carnaval. O Brasil estava sob ditadura militar e isso é aviso de como a suspensão das liberdades constitucionais avançam a ponto de o Estado tentar controlar de forma mais dura até os corpos das suas cidadãs. Mas a proibição do órgão, então comandado pelo coronel Durval de Mattos Santos, no segundo governo biônico de Antônio Carlos Magalhães, não adiantou muito. Em cima dos trios ou no chão das ruas onde estava a festa as mulheres mandaram uma versão de “meu corpo, minhas regras” no ritmo da folia, afinal o Carnaval não é um espaço neutro sobre as tensões do cotidiano. O registro dessa história foi feito por A TARDE na edição de 4 de março de 1981 com uso de título em linguagem leve, mas provocadora, típica do clima que cerca o reinado de Momo: “Só a polícia não gostou”.

“Apesar da proibição da Polícia – que fez valer o Código Penal, segundo o qual a deslumbrante exibição constitui atentado ao pudor –, muitas foliãs preferiram retirar a parte de cima de suas fantasias, dando um show à parte, especialmente para a massa popular, espantada, mas embevecida. Algumas se postaram com o busto despido em cima dos trios elétricos, e outras, mais ousadas, chegaram a andar pelo meio da multidão. Mas, a Polícia estava atenta e, na medida do possível, coibiu tais cenas, chegando a querer punir um dos trios elétricos, por haver permitido a licenciosidade”. (A TARDE, 4/3/1981, p. 18).

O texto mais reduzido – que é o usado para página gráfica, o modelo escolhido para a publicação das imagens das foliãs fazendo topless e que consiste em uma galeria de fotos sobre um mesmo tema acompanhadas por descrições (legendas) curtas – avalia que, como a polícia não podia estar em todos os lugares, não foi possível controlar as rebeldes. Uma delas, de acordo com a narrativa, chegou a ser conduzida por policiais após ter desfilado pela Praça Castro Alves. É pena que não há mais informações sobre as reações oficiais à desobediência ou o que aconteceu com as mulheres que desafiaram o controle da polícia.

O controle do corpo feminino seja pelo estado ou outras estruturas de poder é algo antigo no país. No livro intitulado Ensaios sobe raça, gênero e sexualidade no Brasil (séculos XVIII-XX), o doutor em antropologia e professor titular do departamento de Antropologia da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Jocélio Teles dos Santos, apresenta histórias de desafios ao padrão normativo por mulheres e transgêneros.

O autor conta a história de expulsão de Thereza de Jesus do Recolhimento do Santo Nome de Jesus, vinculado à Santa Casa da Misericórdia, em um dos artigos da coletânea e que tem o título de “Lesbianismo, poder e punição no Recolhimento do Santo Nome de Jesus, Bahia – Século XVIII”. O motivo foi um romance com outra interna que acabou condenada a um ano de prisão.

O recolhimento foi criado por uma decisão de João Mattos de Aguiar deixada no seu testamento. Solteiro, João de Matinho, como era mais conhecido, morreu em 1700. O objetivo da instituição era abrigar mulheres viúvas, casadas, mas também solteiras e de boa reputação, ou seja, era um espaço de “vigilância da honra”, como caracteriza Santos:

“O perfil das recolhidas desejado por João de Matos, e cumprido pela Santa Casa da Misericórdia, foi o de mulheres honestas, jovens brancas de famílias de classe média, com idade casadoura, honradas porcionistas – as viúvas ou solteiras de boa reputação que pagassem seu alojamento e alimentação, e mulheres que ficariam recolhidas na ausência dos maridos em viagens de negócios”. (Ensaios sobre raça, gênero e sexualidades no Brasil – séculos XVIII-XX, p.37).

As rígidas regras para o cotidiano das internas do Recolhimento – imposição de orações, do vestuário e restrições para o contato com o mundo fora dos muros – não foram suficientes para impedir a relação homoafetiva entre duas mulheres. Isso é um indício de como, mesmo com todo o aparato repressivo, elas encontravam caminhos para reagir, mesmo quando isso lhes custava caro.

E essas reações de enfrentamento ao que lhes impunha o poder institucional ou familiar ocorria muitas vezes de forma solitária. Essa é a característica da história da rebeldia de Adelina. Recolhida no Convento da Lapa contra a sua vontade, ela implorou à mãe que a retirasse da instituição porque seria o primeiro Carnaval que iria perder. O relato está em A TARDE, na edição de 3 de março de 1919. Contrariada, Adelina parece ter até se conformado, mas acabou gravemente ferida ao executar um plano de fuga para aproveitar a festa:

“Com supremo esforço conseguiu quebrar o gradil de madeira da janella até dar passagem ao seu corpo. Galgou o telhado e na beira deste quando ia alcançando o conductor de água de chuva no 2º andar, o pedaço onde ela estava desabou com as telhas. E, pouco depois, ouviam-se os gemidos de Adelina, estendida sobre o solo, banhada em sangue”. (A TARDE, 3 de março de 1919, p.2).

E essa queda de braço prosseguiu com investidas nos mais diferentes campos da institucionalidade brasileira. “Não podemos perder de vista que a sociedade brasileira apresenta conotações moralizantes. Não à toa, esse país já chegou a proibir o uso de biquíni e costumes e moral têm sido pautas de governos. Aí, nos deparamos com as proibições do direito e com as previsões legais de crimes, tais como: ato obsceno e o atentado violento ao pudor (AVP). Esse último perdurou até o ano de 2009”, destaca o doutor em direito Efson Lima, professor de bioética e membro do Conselho Estadual da Bahia dos Direitos da População de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Lima é um dos fundadores do Grupo Gay das Residências da Ufba e do Caruru da Diversidade.

Conforme lembrado por Lima, a bandeira de controle na área de costumes foi um dos motes de Jânio Quadros na sua campanha para a presidência do Brasil, em 1960. Eleito, proibiu, por meio de um decreto, o uso de biquíni nas praias e de maiô nos concursos de beleza. Contudo, a ironia: o uso dos trajes de banho persistiu e o governo de Jânio Quadro foi breve, pois durou apenas sete meses. Ele tomou posse em janeiro de 1961 e renunciou em agosto do mesmo ano.

Lições

Não tenho elementos para afirmar que mulheres desafiando uma portaria da SSP foi uma ação coordenada de movimentos, mas na década de 1980, mesmo com a repressão aos direitos, as associações feministas e de outros segmentos de mulheres começavam a ganhar nova força. Em Salvador, por exemplo, estava instalado o Brasil Mulher, que é considerada a primeira organização feminista autônoma da Bahia.

“O Brasil Mulher tinha um jornal chamado Maria, Maria, que circulou na primeira metade dos anos 80. O Brasil Mulher era super atuante e organizou o primeiro encontro feminista de Salvador durante uma edição da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) em julho de 1981. Os primeiros encontros feministas aconteciam junto com as reuniões da SBPC. Esse encontro foi muito legal.

Lembro que a reunião aconteceu dentro de um circo”, conta Cecília Sardenberg, doutora em antropologia, professora titular e uma das fundadoras do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (Neim) da Ufba.

As contribuições da academia para os movimentos sociais e vice-versa são históricas mesmo que muitas vezes não consigamos perceber essas conexões de forma tão nítida. Mas eis que as reflexões sobre o controle dos corpos femininos e os exercícios da sexualidade ressoavam para além da universidade e da política ganhando visibilidade no Carnaval. Tanto que a folia baiana não era muito marcada pela exibição da nudez, como ocorria nos desfiles das escolas cariocas neste período. Por isso surpreende a ênfase no topless de 1981.

Sob ditadura desde o golpe militar-civil de 1964, o país já estava no estágio em que as brechas para um necessário retorno à democracia se ampliavam. O ativismo organizado ganhava maior projeção como o Movimento Negro Unificado (MNU) fundado em 1978. Quatro anos antes surgiu o Ilê Aiyê que levou para o Carnaval de Salvador um aspecto da discussão sobre o racismo a partir da estética com o lema: “Negro é lindo”.

Imagem ilustrativa da imagem Desafiando a SSP, mulheres fizeram topless no Carnaval de 1981
| Foto: Gildo Lima | Arquivo A TARDE | 4.3.1981
Mesma mulher é conduzida por policiais por descumprimento da medida | Foto: Gildo Lima | Arquivo A TARDE | 4.3.1981

Três anos depois do Carnaval da desobediência sobre o topless a campanha Diretas Já ganharia as ruas. Em 1982, pela primeira vez desde o golpe, voltou a acontecer uma eleição para escolha de senador, governador e deputados. Prefeitos e vereadores dos municípios do interior do país também foram escolhidos. Consideradas áreas de segurança nacional, as capitais dos estados como Salvador tiveram que esperar mais um pouco para decidir a composição do seu executivo e legislativo pelo voto.

Com a ditadura perdendo cada vez mais apoio, as contestações ao que significasse controle sobre liberdades individuais davam fôlego à esperança de novos tempos. Por isso, talvez, a preocupação de um órgão de segurança pública com a mostra do corpo feminino em uma festa de rua e crucial para Salvador como o Carnaval.

“A postura dessas mulheres se insere no processo de contestação. É interessante trazer esse debate à baila a fim de reflexão, pois, os homens podem ficar sem camisa e as mulheres não. Para a ação delas tem até termo próprio: topless. E para a prática estabelece-se o direito punitivo”, acrescenta Efson Lima.

A força desse episódio pode ser medida pelo espaço que ele ganhou em A TARDE: uma página inteira no espaço interno e referência na manchete com avaliação sobre a folia de 1981: “Foi um grande Carnaval”:

“Apesar da proibição policial, o topless foi apresentado do alto de alguns caminhões por foliãs que desafiavam soberanamente a portaria da Secretaria da Segurança”. (A TARDE, 4/3/1981, capa). Quem foi que disse que Carnaval não é espaço de luta? E quando ela segue o caminho do deboche a eficiência é dobrada, como mostraram essas mulheres.

* Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em Antropologia

*A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período.

*Para preservar a identidade das personagens das fotografias foi aplicado um recurso gráfico sobre elas.

Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE

Para saber mais: Ensaios sobre raça, gênero e sexualidades no Brasil- séculos XVIII-XX (Jocélio Teles dos Santos, Salvador, Edufba, 2013)

Compartilhe essa notícia com seus amigos

Compartilhar no Email Compartilhar no X Compartilhar no Facebook Compartilhar no Whatsapp

Siga nossas redes

Siga nossas redes

Publicações Relacionadas

A tarde play
Mulher tira a blusa em meio à multidão | Foto: Gildo Lima | Arquivo A TARDE | 4.3.1981
Play

Veja o momento que caminhão de lixo despenca em Salvador; motorista morreu

Mulher tira a blusa em meio à multidão | Foto: Gildo Lima | Arquivo A TARDE | 4.3.1981
Play

Traficantes do CV fazem refém e trocam tiros com a PM em Salvador

Mulher tira a blusa em meio à multidão | Foto: Gildo Lima | Arquivo A TARDE | 4.3.1981
Play

Rodoviários reivindicam pagamento de rescisão no Iguatemi

Mulher tira a blusa em meio à multidão | Foto: Gildo Lima | Arquivo A TARDE | 4.3.1981
Play

Vazamento de gás no Canela foi ato de vandalismo, diz Bahiagás

x