SALVADOR
Lavadeiras mantêm tradição que as águas do tempo não conseguem apagar
Por Euzeni Daltro | Foto: Uendel Galter | Ag. A TARDE

“Quarar” significa clarear pela exposição à luz do sol. Trata-se do ato de colocar a roupa molhada e ensaboada sob o sol para ajudar a remover manchas difíceis de sair. Em tempos de processos cada vez mais acelerados, de máquinas que já entregam a roupa seca, a cena pode nos remeter a um passado longínquo, como de fato é sua origem, mas ainda é praticada nos dias de hoje. Sobretudo nas lavanderias comunitárias de Salvador, onde as roupas ainda são lavadas à mão e, quando necessário, postas para quarar.
Ao longo dos mais de 63 anos de existência, as lavanderias comunitárias representam muito mais do que espaços de preservação de um processo artesanal e se consagraram como o “sol” que levou a luz para a vida de mulheres e mães que se encontravam, muitas vezes sozinhas, diante do desafio de cuidar de si e dos seus.
Desafios enfrentados por Déa Vilaça Oliveira, 85 anos, quando tinha 20 anos, e por Ana Paula de Jesus Santos, 33, aos 23 anos. Casada e com filhos, dona Déa conta que precisava trabalhar, mas o fato de não ter com quem e nem onde deixar as crianças inviabilizava qualquer trabalho.
Quando o Conjunto Assistencial Santa Luzia foi inaugurado, em abril de 1956, no Engenho Velho de Brotas, dona Déa viu a oportunidade de poder trabalhar e também cuidar dos filhos. Ela foi uma das primeiras lavadeiras do local e chegou a ser presidente da Associação das Lavadeiras, cuja sede funcionava no local.
“Trabalhando aqui, eu tinha a oportunidade de colocar meus filhos na escola, de cuidar deles e, às vezes, adiantar uma faxina. Isso aqui foi uma graça que Deus me deu porque eu tive a oportunidade de trabalhar e colocar meus filhos para estudar e trabalhar”, enfatiza dona Déa, que hoje lava apenas as próprias roupas. “Meus filhos tiraram meus clientes todos porque não querem que eu trabalhe mais. É um absurdo isso, pode crer. Estão pensando que eu já estou ‘gagá’. Mas não estou. Ainda estou muito lúcida para cuidar de minha vida”, reclama.
Os clientes de dona Déa ficaram com uma de suas filhas, Gracilene Vilaça da Cruz, que sempre a ajudava na lavanderia. Hoje é dona Déa quem a ajuda com as roupas, sempre que está na lavanderia.
Ana Paula passava pelo momento mais difícil de sua vida, quando começou a trabalhar lavando roupas na Lavanderia Aristides Novis, no Dique do Tororó. Ela havia acabado de perder a mãe, tinha uma filha de cinco anos e não sabia fazer nada porque sempre foi muito minada pela mãe, a também lavadeira Ana Maria de Jesus, 45 anos. Ana Maria faleceu em função de um atropelo, em janeiro de 2010. Com a morte da mãe, Ana Paula foi trabalhar como doméstica, mesmo sem saber cuidar dos afazeres de casa, e, sete meses depois, passou a trabalhar como lavadeira. “Comecei a trabalhar aqui por necessidade. No início, foi complicado. Não sabia nada. Não sabia lavar, passar. Aqui é diferente, tem que quarar a roupa, tem o jeito de passar, estender a roupa no alto”, contou.
Ana Paula conta que teve o apoio da tia, a lavadeira Maria das Graças Cerqueira de Jesus, 47, que faleceu há seis anos de leucemia. “Muita gratidão à minha tia. Ela me ensinou não só o trabalho daqui, mas a ser a mulher que eu sou. Minha mãe me mimou muito. Eu sofri muito com a morte dela, quase tive depressão. Minha tia me orientou bastante. Eu já cheguei a abandonar minha casa porque tudo me fazia lembrar minha mãe”, afirma a lavadeira.
Quando a mãe era viva, Ana trabalhava apenas com panfletagem. “Eu era toda dondoquinha, ia trabalhar toda arrumadinha. E era dinheiro para meu luxo, para comprar perfume caro, nunca destinava o dinheiro para dentro de casa, para comprar um gás. Minha mãe não fazia questão”, lembra Ana Paula.
No início, ela ficou com alguns clientes da mãe e outros da tia. Depois, conquistou sua clientela, e hoje tem 20 clientes fixos.
Gratidão ao governador
As lavanderias começaram a ser implantadas, em Salvador em 1956, durante a gestão do então governador Antônio Balbino. A primeira construída foi o Conjunto Assistencial Santa Luzia, no Engenho Velho de Brotas, hoje denominado Lavanderia Santa Luzia. Não à toa, as lavadeiras até os dias de hoje nutrem carinho e gratidão pelo então governador. “Vim para cá logo que abril a lavanderia, cheguei com meu governador Antônio Balbino”, afirma dona Déa, cheia de orgulho. Quando viva, a mãe de Marli, dona Nazareth, também se referia a Antônio Balbino com carinho. “Quando fundou aqui, ela dizia que o marido dela era Antônio Balbino, que deu isso aqui para ela ganhar dinheiro”, conta Marli.
Além da lavanderia, o Conjunto Assistencial contava ainda com a sede da Associação das Lavadeiras e uma creche para os filhos dessas trabalhadoras.
Seis lavanderias, 60 lavadeiras
Atualmente, existem seis lavanderias comunitárias em funcionamento em Salvador. Além das localizadas no Engenho Velho de Brotas (Rua Almirante Alves Câmera), Boca do Rio (Rua Orlando Moscoso) e Dique do Tororó (Avenida Vasco da Gama), outras três funcionam em Cosme de Farias (Rua Ana Lima Teixeira), Alto das Pombas (Rua Teixeira de Mendes) e Engenho Velho da Federação (Avenida Cardeal da Silva). Ao todo, uma média de 60 lavadeiras trabalham nessas unidades. Todas as unidades são administradas pela Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social da Bahia (SJDHDS).
“Essas lavanderias têm uma importância muito grande. Você imagina que são equipamentos da década de 50 e atravessaram o tempo. Não é pouco tempo. São mais de 60 anos. Elas continuam existindo com pessoas aqui dentro, com clientela fidelizada. Isso tem um significado”, afirma Aline Fontoura, coordenadora das lavanderias. “O Governo do Estado se esforça para atender esses equipamentos comunitários porque não é apenas uma questão do espaço, é da pessoa que está aqui dentro, do ser humano”, completa Aline.
Confira os depoimentos:
Memórias que amaciam a labuta diária - No pátio da Lavanderia Santa Luzia, no Engenho Velho de Brotas, Marli Barreto dos Santos, 42 anos, mostra o álbum de fotografias dos primeiros anos da lavanderia, que à época se chamava Conjunto Assistencial Santa Luzia. Orgulhosa, mostra fotos da mãe, Maria de Nazareth Barreto dos Santos, como presidente da extinta Associação das Lavadeiras, cuja sede funcionava alí. Dona Nazareth faleceu em 2015, aos 85 anos, e lavou roupa até pouco tempo antes de morrer. Marli frequenta a lavanderia desde quando tinha 13 anos, ia para ajudar a mãe. Ela até atuou em outros ramos, já foi secretária na prefeitura e até jogadora de futebol, mas nunca largou a lavanderia. Há quatro anos, Marli se dedica apenas à nobre função de cuidar das roupas dos seus 13 clientes. “Alguns de mais de 20 anos”, diz com orgulho. Marli fala orgulhosa também da admiração e ajuda que tem do filho, João Victor Barreto dos Santos, 18. “Ele acha maravilhoso e me ajuda entregando as roupas”.
Da necessidade à fonte de sustento - Os filhos de Lindinalva Pereira Barbosa, 54 anos, tinham 12, 11 e 9 anos, quando o marido dela foi para São Paulo. Diante da demora dele em mandar dinheiro para as despesas das crianças, ela encontrou na profissão de lavadeira, que aprendeu com a mãe Zélia Galiza Barbosa, aos 12 anos, na Lavanderia Julieta Calmon, na Boca do Rio, a oportunidade de sustentar a família. Lindinalva conseguiu tantos clientes que precisava dividir com as colegas. “Agradeço muito a Deus. Essa porta é abençoada, me ajudou muito a criar meus filhos”, reconhece a lavadeira, que passou quatro anos afastada após a perda da filha mais velha durante uma cirurgia no coração.
Jogando o desemprego pelo ralo - Osvaldina dos Santos Pereira, 56 anos, a Dina, estava desempregada há mais de dois, quando a irmã, a lavadeira Marinalva Oliveira Maciel, 51, a chamou para ajudá-la com as roupas na Lavanderia Julieta Calmon, na Boca do Rio. “Eu estava parada, sem nada”, lembra ela. Dina começou passando as roupas para irmã e hoje, quatro anos depois, fala com orgulho dos seus 15 clientes. “Para mim, essa oportunidade foi maravilhosa. Eu estava parada, precisando das coisas. E aqui dá para tirar um dinheiro para se manter de boa e fazer as coisas. Aqui a gente não fica sem dinheiro”, afirma Dina. Inclusive, a irmã dela, Marinalva, começou a trabalhar na lavanderia ajudando Lindinalva, quando também estava desempregada.
Liberdade como ingrediente principal da labuta - Mesmo após ter se recuperado das dificuldades enfrentadas com a morte da mãe, Ana Paula de Jesus Santos, 33 anos, preferiu continuar como lavadeira pela liberdade que a profissão lhe proporciona. “Aqui a gente é mais livre para resolver nossas coisas. Ainda mais eu que tenho uma filha. Em outro trabalho, tem que levar atestado e combinar para pagar quando precisar faltar. Aqui eu faço meu horário e só preciso combinar com meus clientes. Fui me acostumando e o dinheiro compensa. Coisas que eu não tive, hoje eu dou para minha filha”, garante a lavadeira. Parte do dinheiro que Ana Paula ganha como lavadeira é investido em qualificação para a filha, Alana Luísa dos Santos, 15 anos. Segundo ela, atualmente, Alana faz curso profissionalizante de administração e informática completa e atua como jovem aprendiz. “Eu sempre fui filha única. Minha mãe me mimou muito, me estragou. Eu sofri muito quando fui trabalhar em casa de família. Coisa que eu não faço com minha filha. Ela sabe fazer tudo”, afirma Ana Paula, com orgulho.
Colhendo frutos do trabalho limpo e suado - Maria José Belém do Rosário, 55 anos, a Belém, tinha 15 anos quando saiu da cidade de Ituberá para trabalhar em casa de família em Salvador. Na época, ela tinha uma filha, que morava com ela na casa dos patrões. Quando Belém teve sua segunda filha, a patroa disse que ela precisava de um lugar para deixar as crianças. Belém não conseguiu onde deixar as filhas e saiu do emprego. Belém passou os seis meses seguintes em busca de emprego, mas ninguém a aceitava com as crianças. Uma amiga, Maria Nilzete Ferreira da Silva, já falecida, a falou sobre a Lavanderia Aristides Novis, onde as lavadeiras poderiam levar crianças. Depois, ficou proibido levar crianças, mas isso não foi mais um problema para Belém porque, graças ao seu trabalho como lavadeira, ela já tinha condições de pagar uma escola em tempo integral para as crianças. E assim o fez. “Acho que só vou sair daqui quando Deus me chamar ou quando me aposentar. Vamos agradecer a Deus por termos essa lavanderia para trabalhar. Eu criei as minhas três filhas com o meu trabalho aqui na lavadeira, comprei moradia para mim e para uma delas com o meu trabalho”, ressalta.
Força e humildade para construir uma nova vida - Anelita da Silva, 53 anos, veio de Riachão do Jacuípe para trabalhar “na casa dos brancos”, como ela mesma diz, em Salvador. Morava no trabalho, mas precisou arrumar outro lugar para morar e trabalhar, após engravidar. Na época, ela alugou um imóvel em Boa Vista de Brotas, onde Belém também morava. As duas já se conheciam de vista, pois as casas de famílias onde trabalhavam ficavam no mesmo condomínio. Foi Belém quem falou para Anelita sobre a Lavanderia Aristides Novis, no Dique do Tororó. Disse que já trabalhava lá e a incentivou para buscar uma vaga no local. Anelita assim o fez e lá se vão 34 anos como lavadeira da Lavanderia Aristides Novis e como amiga de Belém. Nilzete, de quem era muito amiga, também a ajudou nesse processo. Assim como tantas outras lavadeiras, ela se orgulha de ter criado as três filhas com o trabalho de lavadeira. “Tudo o que eu conquistei foi com a lavanderia. Graças a Deus, essa lavanderia foi minha mãe. Enquanto eu tiver condições, eu ‘tô’ lavando roupa”, garante.
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