SALVADOR
'Não amaldiçoei nem estou jogando fora', afirma Mãe Stella
Por Yuri Silva

Mesmo com o tempo chuvoso em Salvador, na última segunda-feira, a reportagem de A TARDE pegou o ferryboat para ir a Nazaré, município a 216 km de Salvador. Após uma espera cansativa no embarque, a travessia de uma hora até Itaparica e mais 40 minutos de carro entre o terminal de Bom Despacho e a cidade do Recôncavo, a equipe chegou à nova moradia da mais influente ialorixá em atividade no país. É em um casarão antigo e amplo, cercado de vegetação, em frente ao Hospital Gonçalves Martins, que vive desde a semana passada Maria Stella de Azevedo Santos, 92, conhecida como mãe Stella de Oxóssi.
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Sacerdotisa desde 1976 do Ilê Axé Opô Afonjá, um dos candomblés mais tradicionais do Brasil, de nação nagô-ketu, ela é centro de uma complexa contenda envolvendo sua esposa, a psicóloga e escritora Graziela Domini, 55, e a comunidade do terreiro. Sentada em uma cadeira na sala de casa, vestida com uma camiseta branca e enrolada em uma manta verde, a ialorixá recebeu a reportagem da A TARDE, periódico do qual foi articulista, no final da tarde de segunda.
Alguma coisa roubou o pensamento dele [Ribamar]. Ele está todo atrapalhado
No mesmo dia, em meio ao silêncio dos grandes pais e mães de santo da Bahia sobre o caso, a Casa de Oxumaré, outro terreiro tradicional do estado, emitiu uma nota pública apaziguadora diante da situação. Enquanto isso, um vídeo vazado na internet mostrava filhos de santo do Opô Afonjá expulsando, à força (assista ao vídeo), Graziela da Casa de Xangô. Aparentemente lúcida durante a entrevista, Mãe Stella ria, fazia piada e, vez ou outra, confundia-se sobre alguma informação – sendo prontamente auxiliada por Graziela.
Em alguns momentos, a própria ialorixá pedia ajuda à companheira, agradecendo em seguida. "Obrigada, neném", dizia, em tom baixo, quase sussurrante. A voz pausada, resultado do cansaço da idade, se manteve durante todo o tempo do bate-papo, no qual Mãe Stella falou sobre os rumos do Opô Afonjá, da desavença entre Graziela e a comunidade do terreiro, da sucessão dela e de projetos para o futuro. Com um sorriso irônico na boca, em certo momento, questionou aos presentes, entre eles um pai e uma mãe de santo que vieram de Santo Antônio de Jesus para vê-la: "Eu não tô broca, não, né?". Riu em seguida.

Serena, a sacerdotisa recebeu equipe de A TARDE em casa (Foto: Mila Cordeiro | Ag. A TARDE)
A senhora está bem?
Eu tô bem. Só uma dor de cabeça que me deu. Quando começo a conversar, dá dor de cabeça.
A senhora deve estar ouvindo e lendo sobre o 'converseiro', como diria minha avó, que gerou sua vinda para Nazaré. Como foi que a senhora avaliou isso tudo? E esse afastamento físico, como foi que a senhora decidiu?
Olha, eu sou uma pessoa que, parece que não, mas eu penso muito antes de tomar qualquer atitude. Até a turma de casa sabe. Pedem uma coisa, falam uma coisa, e eu digo 'depois', para poder tomar uma atitude pretendendo tomar uma atitude certa. Foi o que se deu aí. Falaram tanto, falaram, falaram, até o momento que eu disse 'olha, não adianta essa confusão toda, porque eu vou resolver ir para Nazaré'. Aí [falaram] 'vai mesmo?'. E eu [disse] 'vou sim, vou logo amanhã'. Aí peguei tudo e arrumei para vir embora. Eu não gosto de nada cansativo, que me estresse. Tenho horror a estresse. Aí vim e aqui estou. Eu espero que eu tenha tomado uma atitude certa. Espero que os orixás me abençoem, me iluminem, me deem discernimento, para que tudo que eu vou fazer seja dentro da verdade.
As pessoas têm perguntado como fica o Opô Afonjá com a distância física da senhora. Do ponto de vista religioso, como é que funciona essa situação?
Olha, veja bem, o Axé Opô Afonjá vai mantendo, segurando até quando Xangô quiser, porque é um lugar patrocinado por Xangô. Xangô é o nosso patrono. E espero que ele mesmo segure e dê condição de ir levando direitinho até o último dia que ele quiser.
E a briga da comunidade do terreiro, principalmente do Ribamar [Daniel], que é presidente da sociedade civil do terreiro, com Graziela [Domini, esposa de Mãe Stella], tem sido muito falada...
Ah, interessante! Você falou aí do Ribamar e eu tenho impressão de que ele perdeu o direito de pensar direito, alguma coisa roubou o pensamento dele e ele não discerne mais nada, não. Ele está todo atrapalhado, o Ribamar, coitado! E os outros atrás de tudo, porque uma coisa que eu não sabia, nunca tinha pensado assim profundamente, é que essa turma de axé – eu digo turma de axé aos que couber – não pensa muito. Não reflete. Pensa nas coisas materiais, pensa só em competição, em saber o que um quer mais do que o outro, e nisso aí eles perdem um tempo horrível. Eu também fico preocupada com isso. No mais, está entregue a Xangô. O axé lá sempre foi entregue a Xangô. E, mesmo na minha ausência, sei que está entregue a Xangô. Espero que Xangô segure a cabeça dos filhos dele para que isso tenha um final interessante, feliz.
A casa está virando um hospício, está virando um asilo. Disse que queria e vim
E a senhora deixou ordem para alguém, na ausência da senhora, tomar conta dos rituais do terreiro, dessa questão religiosa, ou isso é intransferível?
Não. Até o momento não, porque lá só é substituído quando morre um. E até agora, graças a Deus, não morreu ninguém. Então o axé vai ficando seguro lá até quando Xangô quiser. Que ele segure a cabeça dos filhos dele para ir se levando direitinho. Porque os orixás estão lá, os assentamentos estão todos lá. Então, se alguém sair e carregar o orixá, paciência, eu não posso fazer nada. E o lado espiritual o orixá vai segurando. Eu tenho muita fé no orixá, muita fé mesmo. Eu entrei para fazer a obrigação lá com 14 anos [neste momento ela consulta Graziela se está certa e recebe resposta positiva]. Então é essa fé que tem me segurado lá até hoje. Eu entrei com 14 anos, era adolescente, e eu tô segurando e pedindo aos orixás que segurem essa barra e me ajudem. [Graziela interrompe para explicar que, na ausência de Mãe Stella, os ritos continuam, como nas quartas-feiras, por exemplo, quando acontece o amalá, ritual com comida votiva para Xangô. A ialorixá confirma e segue falando]. Não parou o axé, não. Não parou o axé, não.
A senhora esperava, quando decidiu vir para cá, que teria essa repercussão toda? Afinal, a senhora é uma personalidade, uma intelectual, e muita gente se preocupa...
Não, não esperava, não. Eu tomei essa atitude da noite para o dia. Foram tantos eventos que aconteceram, tanta coisa desinteressante, que eu disse: 'Sabe de mais? Eu vou embora daqui, porque não vou aguentar ficar passando o dia a dia nessa casa aqui'. Aí virei para ela [aponta para Graziela] e disse: 'Eu vou embora daqui'. Ela perguntou: 'Como é que você vai, mãe?'. E eu disse: 'Eu vou embora daqui, eu vou, não vou ter condições de continuar numa casa dessa'. A casa está virando um hospício, está virando um asilo. Então disse que queria vir e vim. Me arrumei de manhã até de tarde e saí. Já tinha roupa em casa e tudo, lá no Cabula, e peguei tudo. Vim embora para descansar minha cabeça, senão ia enlouquecer. Foram muitas coisas em cima da outra, entendeu? Então eu resolvi sair, porque o que o olho não vê, o coração não sente.
E na ausência da senhora, quem toca esses ritos que continuam acontecendo, é a mãe pequena da casa?
Ela continua, ela continua porque, como não é tempo de obrigação... [Não conclui o pensamento]. Porque lá tem os tempos de obrigação. Então, esse segundo ciclo de fim de ano, Deus que vai levando aí. E que cada um segure seu pedacinho. Porque, às quartas-feiras, vai continuar tendo o amalá (ritual com comida votiva para Xangô). E cada um vai fazendo o seu pedacinho.
A senhora sempre lançou novos projetos, sempre esteve muito ativa. A senhora está pensando em coisas novas nesse tempo em que fica descansando?
Na minha vida no axé, sempre há uma novidade, sempre uma mudança, uma novidade [Graziela lembra de um projeto e a ialorixá passa a falar sobre ele]. Eu tenho muito o que fazer, mas não sei o que há em mim que vou sempre criando novidades. Estou agora com a ideia de fazer tipo uma fazenda lá em cima, no Cabula mesmo... [Graziela interrompe, corrigindo: 'Não, aqui em Nazaré. Ela está plantando uma floresta de árvores africanas', e Mãe Stella concorda com ela, na sequência]. Eu troco agora, porque estou por aqui... É normal. Então estou plantando essa floresta que vou dedicar às velhas ancestrais, às velhas que já foram, e lá vou ficar cultuando. São plantas dedicadas [Graziela lembra a Mãe Stella de novos três livros da coleção sobre o jogo de búzios, que serão lançados no aplicativo para celular dela]. Eu criei a mania de escrever também, enquanto isso eu vou escrevendo também alguns livros e, em cima desses livros, vão algumas histórias, algumas coisas... Eu tenho uma biblioteca cheia de livros lá em casa, o que me dá um pouco de força para pensar e escrever mais ainda [Graziela explica que, por causa da idade avançada da religiosa, ela vai lembrando 'coisas concretas' a Mãe Stella quando ela está conversando. A ialorixá agradece com um 'por favor, filha' e continua]. Minha casa lá de São Gonçalo, onde eu morava, tenho uma casinha lá, essa casa vai ficar fechada. Essa coisa que eu estou falando sobre o lugar que tem lá com livros e tudo, vai ficar fechado. E vou continuar a vida em São Gonçalo e aqui em Nazaré. Eu vou abrir agora todo meu movimento aqui em Nazaré. Vou levando para ver se dá pra segurar aqui.
E a senhora pretende voltar para São Gonçalo do Retiro ou a saída é definitiva?
Eu não tenho vontade, não. Eu não amaldiçoei nem estou jogando fora. Eu estou dando um tempo, como vocês dizem, né? Eu estou dando um tempo também, para sair de lá e descansar, porque não tem... [Não conclui o pensamento]. Você conhece lá, não conhece?
Conheço, já visitei a senhora, já conversamos...
Então! Lá é um lugar... Lá é uma roça, lá é um outro mundo, não é? E para esse mundo acho que é impossível voltar pra ficar. Ficarei lá olhando as coisas de assentamento, porque eu vou sair, mas não vou tirar nada de especial, nada de orixá, não vou tirar nada de lá. Então vou implantar algumas coisas e vou seguindo as coisas do axé sem mexer na essência. Vou lá, se tiver alguma coisa, algum assentamento, alguma coisa que tenha que fazer, faço e venho embora.
As pessoas perguntam muito sobre a transição do terreiro. A senhora já deixou alguma coisa sobre isso registrada?
Não. Sabe por quê? Porque a substituição de lá é feita depois que a mãe de santo morre. E ainda não sei o que é que vou fazer com os vivos que lá ficaram. [Estou] Pensando ainda como é que vou fazer, o que é que vou substituir lá, o que é que eu não vou, para poder dar seguimento à casa. Eu não pretendo fechar a casa [Opô Afonjá].
Eu estou dando um tempo, como vocês dizem, para sair de lá
e descansar
E hoje, fisicamente, como é que a senhora se sente no dia a dia?
Aliviada! Aliviada porque estou sem certa responsabilidade desse dia a dia, de quem entra e quem sai. Eu peço sempre a Oxóssi, que é o meu orixá, e a Xangô que eles deem uma solução, deem um pensamento bom para que eu leve tudo à frente direitinho. Tá entendendo?
Tô entendendo. A senhora quer falar mais alguma coisa? Quer deixar alguma mensagem?
Eu agradeço a confiança. Agradeço a seriedade. E espero que o orixá escute os meus pedidos, os meus rogos, que me oriente, que me dê pensamentos bons, para que tudo seja bem orientado, seguro. Eu quero ter segurança.
Obrigado, viu, mãe?
Nada, meu filho. Boa sorte, bom trabalho, continuem brilhando!

"Eu não tô broca, não, né?", disse, rindo em seguida (Foto: Mila Cordeiro | Ag. A TARDE)
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