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SALVADOR

Pandemia estimula e reinventa cultura da generosidade neste fim de ano

Por Maria Paula Marques*

27/12/2020 - 8:00 h
De Papai Noel, Gabriel entrega presentes em hospital | Foto: Divulgação
De Papai Noel, Gabriel entrega presentes em hospital | Foto: Divulgação -

Com a chegada do período natalino, ações solidárias em atenção àqueles que mais precisam são vistas e praticadas em maior número. Neste período especialmente conturbado, em razão da pandemia de Coronavírus, pessoas e grupos não deixaram de se organizar, repletos de intenção em levar esperança a outros corações.

Há quem tenha despertado em si, de vez, a inclinação em ser generoso com a visita de Santa Dulce dos Pobres, a nossa Irmã Dulce, nos sonhos. O ator Gabriel Tavares, de 33 anos, relata ter sido visitado pela santa, à qual tem devoção, na noite em que, antes, foi ao santuário, situado no Memorial Irmã Dulce, na sede da Obras Sociais Irmã Dulce (OSID), no bairro do Bonfim.

“Ela colocava a mão no meu ombro e dizia: ‘Meu filho, através do seu dom, você vai ajudar muita gente. Continue ajudando as pessoas, que Deus abençoe e muita força e saúde para você”, recorda o ator. Para ele, um instante de assombro e emoção.

Meses depois, ligou para serviço de voluntariado da OSID. À época, comemorou lá o seu aniversário, que acontece em data perto do São João, com uma quadrilha junina. De tanto ter gostado, repetiu o feito por mais três anos consecutivos e passou a percorrer diversas instituições, em apresentações teatrais.

A iniciativa já dura dez anos. Tavares tem em seu currículo de voluntário uma vasta lista atividades desempenhadas no Grupo de Apoio à Criança com Câncer (GACC), no Núcleo de Apoio ao Combate do Câncer Infantil (Nacci), nos hospitais Ana Nery, Aristides Maltez, Martagão Gesteira, creches, orfanatos e abrigos de Salvador.

Nestes lugares, desempenha o papel de contador de histórias e improvisa encenações com crianças e idosos. Este ano, pela terceira vez, deu vida à versão mascarada de Papai Noel, no GACC.

Com a cautela de seguir à risca as orientações recomendadas para inibir o contágio pelo vírus, fez a alegria de pequenos e adultos em uma tarde de confraternização.

Marta Régia é mãe de Adilson, de 12 anos, paciente da instituição desde os nove. Para eles, moradores de Paulo Afonso, o GACC é uma extensão do lar. Ela revela passar mais tempo no hospital do que na própria residência.

“A visita do Papai Noel foi maravilhosa. Tanto Adilson como as outras crianças gostaram muito. Foi uma tarde muito agradável. Tudo muito bom, tudo muito lindo para as nossas crianças”, descreveu. “Adilson ficou encantado e amou principalmente a distribuição de brinquedos”, salientou.

Ela agradeceu pelo pequeno evento. “Obrigada ao GACC por trazer esses momentos de alegria para nossas crianças e aos acompanhantes também”

Em relação aos voluntários, que mesmo com a pandemia continuam colaborando com o GACC, ajudando o GACC a fazer esse trabalho maravilhoso. É muito gratificante para a gente.

“Uma mãe falou para mim: ‘Nossa, meu filho esperou por você, Papai Noel, o ano todo para ganhar o presente. Isso mexeu muito comigo”, conta. “Entendo o poder que está em cada um fazer a sua parte. Esse poder se transforma em força, esperança de dias melhores e alegria”, exprime Tavares.

Na mesma ocasião, o estudante Gabriel Boulhousa, de 24 anos, participou pela segunda vez de uma ação social. A estreia como voluntário foi, em outro ano, quando se apresentou para idosos do Lar Santo Expedito, em Nazaré. Assim como no GACC, ele tocou violão e cantou para o respeitável público.

“Foi interessante ver como eu cantando emocionou não só algumas crianças, como os adultos que estavam presentes”, aponta. “Talvez eu pude fazer a tarde deles um pouco melhor. Pude perceber que eu consegui arrancar alguns sorrisos. Foi bacana”, avalia ele.

Boulhousa afirma que pretende se dedicando a ações semelhantes. “O mundo precisa de boas energias e devemos nos esforçar para estimular isso em todos. Se cada um faz sua parte, a gente pode sair dessa com boas lembranças em vez de medo”, sugere em menção ao momento pandêmico.

Gabriel Tavares aprova a chegada de novatos. “Neste período de pandemia, apareceram novos voluntários. As pessoas estão mais solidárias, graças a Deus. Para mim, o maior sentido dessa crise que estamos passando é que Deus está pedindo para todo mundo se unir cada vez mais e ajudar uns aos outros. Olhar o próximo como o seu semelhante”, define.

Em anos anteriores, sem as restrições impostas pela crise sanitária, Tavares levava com ele a irmã e os amigos, também fantasiados, para as ações que normalmente ocorrem em datas comemorativas: Páscoa, São João, Dia das Crianças e Natal.

A vocação em cativar outros voluntários foi adquirida depois de ter cursado Teatro, no Rio de Janeiro, onde se espelhou em colegas e professores que se mobilizavam em prol do altruísmo. Tanto em terras cariocas quanto em Salvador pôde promover eventos como bazares, quermesses e festas para arrendação de recursos para compra de materiais de higiene pessoal, por exemplo.

Bem-humorado, o ator revela que, há quatro anos, as arrecadações de presentes infantis são pedidas a clientes em compras de lojas de brinquedos da capital. “A gente vai pedindo na cara de pau. Falo com um, falo com outro e as pessoas se mobilizam. Existe muita gente boa”, garante.

A ousadia de Tavares e seus amigos rendeu uma rica distribuição de mais de 300 brinquedos para as crianças do Hospital Martagão Gesteira, sob supervisão de infectologistas, em atenção ao combate da disseminação do Coronavírus. No ano passado, a festa foi ainda maior, com a presença de saxofonista e Noelete, que fizeram a alegria dos pequenos.

“Quando a pandemia passar, vou voltar a contar histórias para elas. Tenho várias ideias, para poder distrair a cabeça dessas crianças que já estão passando por um momento tão difícil. Se levamos essa injeção de ânimo e esperança, com certeza ajuda elas passem mais rápido pelo processo e fiquem logo curadas”, assegura Tavares, que relembra ter sido um paciente pediátrico do hospital.

Com três anos, ele fez uma cirurgia de remoção de uma adenoide, tecido esponjoso localizado na região situada atrás das cavidades nasais e acima do céu da boca, cujo inchaço compromete a respiração. “Isso despertou uma ligação maior com o Martagão”, considera.

Sem nem saber, o procedimento deu a Gabriel fôlego não só físico, mas também para dedicar-se ao voluntariado. A propensão à compaixão foi estimulada desde criança. “A minha maior referência são meus pais. Eles sempre cultivaram no coração dos filhos que devemos repartir com o próximo. Cada um tem que ter um pouquinho, temos que estender as mãos às pessoas que precisam”, reconhece Tavares.

De acordo com Roberto Sá Menezes, presidente do GACC, as inscrições para o programa de voluntariado estão suspensas para o público externo. As poucas liberações, como a confraternização natalina, têm sido feitas moderadamente, em trabalhos pontuais que possibilitem erradicar ao máximo o risco de contágio. “Na brinquedoteca, por exemplo, não nos sentiríamos seguros por ser um ambiente fechado”, adverte.

Menezes revela que o volume de doações se manteve estável em relação ao ano passado. “Mesmo em um período de crise, de pandemia, até nos surpreendeu, porque recebemos doações inclusive de empresas”, destaca.

O GACC é provido por donativos de dinheiro, campanha de arrecadação fiscal, com o programa Nota Premiada, e pela remuneração de serviços disponibilizados pelo centros de diagnósticos, a exemplos dos laboratório de transplante e de análise clínica. Este último, segundo Menezes, entrega resultados de testes de Covid-19 com o menor prazo em Salvador.

Um trenó às avessas

No imaginário infantil, a ideia do trenó do Papai Noel está ilustrada como o transporte do bom velhinho, que carrega os presentes até a casa daqueles que se comportaram bem ao longo do ano. Em Salvador, uma escola particular, situado no bairro de Stella Maris, inovou e inverteu a lógica da história.

O Colégio Ômega enxergou em sua frota de ônibus uma oportunidade de fortalecer o espírito altruísta, por meio da ludicidade. Enfeitaram de luzes e equiparam o veículo com um sistema de som para percorrer bairros da capital e Lauro de Freitas, cujos itinerários passeiam pelas casas dos alunos.

A empreitada teve como objetivo recolher doações de brinquedos novos e usados (em bom estado), roupas e alimentos não perecíveis, para reforçar aos estudantes e famílias o compromisso em ajudar a quem precisa e proporcionar a alegria do Natal.

Desde 2017, o colégio movimenta quatro campanhas por ano para assistir pessoas carentes. Este ano, o que for coletado será destinado à comunidade quilombola Quingoma, no bairro de Vida Nova, em Lauro de Freitas.

A empresária Iracema Pinheiro atendeu ao convite do colégio. Para ela, é importante cultivar a solidariedade, e passa esse ensinamento à filha Beatriz, de cinco anos. Tanto é que, para colaborar com o trenó, teve de comprar brinquedos para doar, porque, usualmente, no mês de novembro já faz uma seleção nos brinquedos e roupas da filha e destina para doação.

Débora Primo, enfermeira, também aguçou o filho a dar seu apoio à iniciativa da escola. “A participação das crianças incentiva a elas a terem essa consciência de compartilharmos, de amor ao próximo, principalmente nessa época de pandemia em que estamos vivendo. Tenho certeza de que na mente dele a consciência de ajudar e ter amor ao próximo veio a acrescentar”, afirmou.

A chegada do trenó à Quingoma foi mágica, garante Raiara da Cruz, moradora da comunidade quilombola. “As crianças pulavam de alegria ao ouvir a voz da mamãe Noel. Eu pude presenciar e me emocionar. Quem estava, pôde perceber a energia. As crianças vibravam, pulavam, estavam muito felizes”, relata.

Raiara classificou como de extrema importância as doações. Segundo ela, trata-se de uma comunidade carente de recursos financeiros e estrutura. “Morar na Quingoma é resistência. Nós passamos por problemas com transporte público, não temos saneamento básico, não temos asfalto, rede de esgoto, mas, mesmo assim, morar na Quingoma é o paraíso”, salienta.

Por outro lado, Raiara reforça que morar lá “tem seus encantos”. “A Quingoma tem uma força, uma energia, um brilho e uma beleza que só ela tem. As belezas, os rios, as bicas, a nossa floresta, é tudo muito bonito. Eu digo que morar na Quingoma é um privilégio porque realmente nos conecta com os ancestrais, algo que nos traz força diariamente”, acentuou.

Estudante de pedagogia, Raiara tem tomado a frente dos projetos que a mãe, professora, liderava, até precisar ser hospitalizada por um quadro agravado de asma. Foi a mãe dela quem viabilizou a parceria com o Colégio Ômega.

“Eu auxilio minha mãe nas doações, que são recolhidas para a comunidade. Ela é professora há 26 anos. Dava aula na sala de casa”. Quando o espaço residencial ficou pequeno demais para tantas crianças, ela foi convidada a dar aula em uma capela próxima à comunidade.

“Nessa capela, ela começou a dar aula para um grupo maior de estudantes e conheceu o Rotary Club, que entrava com um auxílio de merenda. Traziam leite e biscoito para ela dar às crianças na hora do intervalo”, acrescenta.

“No entrecaminho, eles [o Rotary Club] decidiram construir uma escola maior porque a capela também não estava dando conta da quantidade de estudantes, a escola Rotary de Quingoma. Então ela continuou com o projeto social que já tinha”, finaliza Raiara, que demonstra ter tirado de letra a lição de que educação e generosidade transformam.

Somos ou estamos generosos?

Os ensinamentos de pais para filhos são ferramenta de constituição do ser humano. Portanto, o exemplo da família é decisivo para a formação da personalidade da criança. A psicóloga Jacineide Magalhães acredita que é preciso impulsionar, em casa, o ato de compartilhar, e se sensibilizar à dor do outro.

Antônio Neto, psicanalista, coaduna ao pensamento da colega. “A família não só transmite as características genéticas, mas também emoções e afetos. É um lugar de moldar valores, princípios e, sobretudo, sentimentos”, explana.

“A criança, desde pequenina, já imita as emoções de seus cuidadores, das figuras de referência. É natural que esse traço da generosidade, do cuidado com o outro, se aprenda no convívio familiar e tende a ser transmitido”, discute Neto.

Em tempos críticos, como os atuais, a comoção acaba por tomar dimensão coletiva. Ainda que Magalhães veja como atributo inerente do humano o desejo de amparar o próximo, a psicóloga observou uma tendência maior à solidariedade. “Os que estão com a saúde em dia, saudáveis e com a renda um pouco melhor se sentem movidos por esse desejo de ver a necessidade do outro suprida”, comenta.

Para Neto esse traço da vida em comunidade é algo marcante para os humanos. A cultura da generosidade é o que permite a construção da civilização e produz condições sociais de se ter saúde mental.

“Ninguém vive sozinho. O homem é um ser pré-maturo. Diferente de outras espécies, é o que depende um maior tempo longitudinalmente dos cuidados dos pais, posteriormente da sociedade e das instituições. Somos seres dependentes, constituídos através do outro, que é o nosso espelho”, conclui o psicanalista.

As práticas de caridade são intensificadas particularmente nesta temporada de Natal e virada de ano. Isso se fundamenta, para Jacineide Magalhães, aos costumes judaico-cristãos e de um forte apelo midiático e comercial.

“Essas festas são muito chamativas. É muita propaganda, muita visibilidade, comida, roupa nova, festa. Até nesse momento pandêmico, temos tido esse apelo midiático. Por conta disso, acredito que, nas pessoas que têm um pouco mais do que outras, esse sentimento aflora”, discorre.

“Isso está muito imbricado na nossa psique. Está dentro da gente: o nosso interior diz que podemos ser úteis doando algo, fazendo com que o pouco da minha comemoração seja estendida ao outro”, complementa a psicóloga.

*Sob a supervisão da jornalista Hilcélia Falcão

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