SALVADOR
Regulamentação de inalantes não inibe uso da droga
Por Carina Rabelo
Desde a quinta-feira, dia 15, entrou em vigor a resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que regulamenta a venda de produtos inalantes tóxicos, como colas de sapateiro, thinner (solvente diluente) e adesivos com substâncias que afetam o sistema nervoso central. A medida pretende combater o uso irregular dos inalantes entre os menores de 18 anos, mas pode tornar-se inócua pela facilidade dos adolescentes na obtenção do produto. A reportagem do A Tarde On Line entrevistou cinco menores que cheiram cola de sapateiro regularmente no relógio de São Pedro, Praça da Piedade e Ladeira dos Galés e todos acreditam que a medida não terá um efeito prático sobre o uso.
É difícil a gente comprar cola nestas lojas de construção porque eles pedem identidade. Geralmente, a gente rouba o galão de lugares em obras, quando ninguém está vendo, ou então pegamos em oficinas mecânicas. Se faltar, aí a gente dá um conto a mais pra um adulto comprar na loja, explica o menor C.F, de 17 anos, que afirma que os funcionários das lojas de material de construção só pedem a identidade ao comprador que aparenta ser muito jovem.
O adolescente F.S, 16 anos, acrescenta que os viciados sempre conseguem drogas substitutas para aquelas de difícil obtenção. O pessoal agora está cheirando esmalte, benzina e colocando um colírio no nariz que bate a maior onda. Todos estes a gente compra nas farmácias. E aí? Vão proibir a venda deles também?, questiona.
Legislação - A resolução da Anvisa ratifica o artigo 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), que considera crime "vender, fornecer, ainda que gratuitamente, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a criança ou adolescente produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica, ainda que por utilização indevida". No entanto, a lei não garante, na prática, a diminuição do uso destes produtos como drogas alucinógenas.
A resolução da Anvisa publicada no Diário Oficial da União em 19 de dezembro de 2005 concedeu aos estabelecimentos que comercializam os produtos solventes, 180 dias (seis meses) para se adequar à norma, que além de proibir a venda aos menores de 18 anos, exige o controle da quantidade vendida por notas fiscais e a identificação do comprador.
A reportagem tentou comprar latas de cola de sapateiro e de thinner em três lojas de material de construção da cidade e verificou que os estabelecimentos descumprem a resolução da Anvisa, pois os vendedores não solicitam a identificação do comprador para realizar a venda.
Fabricantes - Segundo a norma, os fabricantes das colas e substâncias inalantes também terão que se adequar à resolução até dezembro deste ano. As empresas deverão imprimir no rótulo e demais impressos das latas e garrafas advertências e ilustrações sobre os riscos à saúde e adicionar substâncias de odor repugnante aos produtos para impedir a inalação abusiva. Neste último caso, a alteração poderá ser feita até dezembro de 2007.
No entanto, mesmo cientes de todos os riscos à saúde, os usuários não se impressionam com as recomendações e precauções no rótulo do produto e comprovam que as informações nas embalagens não farão nenhuma diferença na escolha dos usuários pela cola de sapateiro.
Já vi neguinho morrer de tanto fumar craque, mas nunca vi ninguém empacotar por causa de cola. É a primeira droga que a gente usa quando foge de casa. Comecei a cheirar aos 13 anos e já estou com 30. Não vou parar nunca!, relata um dos mais antigos usuários na praça do relógio de São Pedro.
Ceticismo - De acordo com a equipe de pesquisadores do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas, a iniciativa da Anvisa dificilmente terá um efeito prático no uso de drogas pelos meninos de rua das grandes metrópoles, as principais vítimas dos inalantes.
"Entre crianças e adolescentes em situação de rua, em especial aqueles em maior grau de exclusão social, as medidas de controle parecem não fazer diferença ou até mesmo ter o efeito contrário. Os meninos de rua tem uma grande facilidade na obtenção de qualquer droga. Qualquer dificuldade que exista no comércio formal é neutralizada pelo mercado clandestino. A restrição do acesso à determinada droga pode diminuir o seu consumo, porém desencadeia um processo imediato de substituição por outras drogas mais disponíveis, como ocorreu com a substituição da cola pelo esmalte e de medicamentos psicotrópicos por solventes".
Segundo os pesquisadores da área, as medidas sócio-educativas ainda são as medidas mais eficazes para o combate ao uso de drogas entre jovens e adolescentes do que restrições na venda de produtos.
Vício de rua - Os menores alegam que a droga os ajuda a se sentirem poderosos e justificam a preferência pela cola de sapateiro devido à disponibilidade do produto nas ruas. Segundo relato dos viciados, em Salvador, as maiores concentrações de menores que cheiram cola estão na Barra, Comércio, Campo Grande, Relógio de São Pedro, Aquidabã, Cidade Baixa, Ladeira de Santana e Ladeira dos Galés.
"A cola é legal porque você fica mais solto, mais bravo, corajoso e ninguém mexe com você. O mal é andar que nem doido na pista e correr o risco de ser atropelado", relata o menor J.D, 16 anos, que experimentou a droga pela primeira vez aos 14, quando trabalhava em uma oficina mecânica. Eu esperava o patrão sair e metia a cara no pote de cola, conta.
Já o adolescente C.M, 15, disse não ter tido uma boa experiência com a cola de sapateiro. "Não gostei. Fiquei meio lerdo e os caras que me deram a droga acabaram me roubando. A Buzina (Benzina) é melhor, pois a gente fica mais agitado, fica pulando. O efeito parece do lança", conta.
A benzina é um diluente/removedor, usado em ungüentos e pomadas, que possui uma composição próxima ao éter. Custa R$ 2,95 e pode ser facilmente obtido em qualquer farmácia. Vários adolescentes aparecem por aqui pedindo benzina e éter, mas a gente só vende pra gente mais velha. Eles insistem falando que vão usar para limpar teclado de computador, mas a gente sabe que é para cheirar, ainda mais nesta área da cidade, conta um funcionário da Farmácia Santana do Relógio de São Pedro.
Quadro NacionalDe acordo com o Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas entre Crianças e Adolescentes em situação de Rua nas Capitais Brasileiras, realizado por pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o uso mais intenso de solventes foi observado em São Paulo e Recife, onde cerca de 60% dos menores moradores de rua que foram entrevistados alegaram se drogar todos os dias.
Em Salvador, dos 141 menores entrevistados, 28 usam cola todos os meses (20%) e 9, diariamente (6,4%). No ranking das drogas mais utilizadas, destacam-se na capital baiana a cola de sapateiro, o esmalte, o loló, o thinner e a benzina.
Medicamentos - Os inalantes não são as únicas possibilidades de viagens alucinantes para os meninos de rua. Apesar do uso de medicamentos psicotrópicos não ser comum em Salvador, alguns menores da cidade descobriram nos remédios um substituto para os efeitos do solvente.
Entre os mais populares estão o Rohypnol, Artane e Benflogin, remédios que só poderiam ser vendidos mediante receita, mas que na prática, são facilmente obtidos em farmácias e no mercado negro. Os efeitos destes medicamentos são potencializados quando utilizados em grandes doses e acompanhados por bebidas alcoólicas.
Já experimentei uns comprimidos misturados com álcool e bateu a maior onda. Tem farmácia que vende fácil e nem precisa de receita. Uns remédios deixam a gente levinho, outros agitam, mas a maioria dá sono, relata um usuário de 25 anos, que preferiu não se identificar.
Solventes e Inalantes - Solventes são substâncias voláteis e que podem ser facilmente inaladas. Estão presentes em diversos produtos comerciais como colas, tintas, thinners, gasolina, removedores e vernizes, mas também tem aqueles que são fabricados de forma clandestina, como loló e lança-perfume. Os efeitos após a inalação são rápidos (desaparecem de 15 a 40 minutos), o que leva o usuário a repetir a dose para que o efeito dure mais tempo. Os efeitos começam com um entusiasmo, mas são seguidos de depressão do sistema nervoso, que pode levar à inconsciência e alucinações. O estado de inconsciência é freqüente nos usuários de saco plásticos, que após certo tempo, não conseguem afastar o material do nariz, o que aumenta a intensidade da intoxicação.
Os solventes também podem trazer sérias complicações cardíacas, pois o coração fica mais sensível à adrenalina, principalmente após esforços físicos. A inalação repetida favorece a apatia, leva a dificuldade de concentração e perda de memória. Pode haver também o desenvolvimento de síndromes de abstinência (ansiedade, agitação, tremores, câimbras nas pernas e insônia). O uso contínuo pode levar à morte.
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