ENTREVISTA – LUCIA MASINI
‘De repente, parece que todo mundo adoeceu nas escolas’
Professora explica, em entrevista ao A TARDE, como a patologização da infância se exacerbou nos últimos anos
Por Divo Araújo
A patologização da educação, da infância, já vem de muito tempo, mas hoje, por conta da pandemia de Covid, se exacerbou, na avaliação da fonoaudióloga e professora da PUC-SP, Lucia Masini. Não por acaso, ela esteve em Salvador, na semana passada, para ministrar um minicurso dentro do I Seminário Nacional Educação Desmedicalizada, realizado na Universidade Federal da Bahia (Ufba).
Nesta entrevista exclusiva ao A TARDE, Lucia Masini explica porque é um erro encarar as dificuldades normais da aprendizagem como um problema médico. “As crianças sofreram com a pandemia e estão sofrendo? Sim. Mas não significa que elas estão transtornadas”, explica ela, que recomenda mais diálogo nas escolas e nas famílias. “Põe essa criançada para conversar”. Leia mais sobre educação desmedicalizada na entrevista que segue.
Cada vez mais crianças são encaminhadas para especialistas médicos por problemas no aprendizado da escrita e linguagem. Como você vê essa questão?
É uma questão complexa, porque a aprendizagem não é um processo linear, simples, que tem a ver só com questões orgânicas. Ela é multifatorial. E muitas vezes os encaminhamentos para especialidades médicas entendem problemas que acontecem na aprendizagem como sendo exclusivamente da criança. E aí se faz uma busca de um diagnóstico de transtorno. Isso está dentro do que a gente chama de medicalização da educação. Estou aqui, na Ufba, em Salvador, para falar exatamente sobre isso. Como a gente pode ver esse processo de aprendizagem da criança de um ponto de vista a considerar diferentes modos de ler, aprender e escrever. A gente tem um determinado padrão e, se a criança não atinge esse padrão e mostra outra forma de ler, escrever e aprender, ela é encaminhada para serviços de saúde para se identificar transtornos específicos. A ideia de transtorno específico de aprendizagem é um tanto esquisito, o próprio nome é esquisito. Porque a aprendizagem é multifatorial. O que seria um transtorno específico de aprendizagem? A aprendizagem envolve fatores ambientais, sociais, políticos, econômicos, tudo dentro de relações estabelecidas. Muitas vezes a gente vê uma criança que vai mal num determinado ano escolar e aí, no ano seguinte, na hora que muda a professora, que muda o olhar para ela, ela vai bem. Então, aquele transtorno que foi observado num ano, ele já não vale no ano seguinte? Não vale porque não é só isso. A aprendizagem não está especificada num determinado aspecto.
Existe uma defasagem muito grande entre a vida dentro da escola e a vida fora da escola?
Essa também é uma discussão importante, porque a gente tem uma forma de escola que ainda é muito próxima do século passado, quiçá do século retrasado. Veja como é a sala de aula com carteiras individuais, a mesa do professor. Geralmente, o professor fica na frente falando, falando, falando. Mas a vida da criança hoje é muito diferente da vida de crianças do século passado. A gente estimula as nossas crianças a um letramento digital desde cedo. Tem vídeos na internet de crianças de 1 ano de idade pegando uma revista física de papel e fazendo o gesto de rolar a tela com o dedo na página. O que mostra que esses gestos são construídos socialmente. A nossa sociedade está muito dentro de um letramento digital. Na escola, o que querem da criança? Que ela pegue no lápis e que vá fazendo os movimentos para uma escrita manuscrita. Isso é muito diferente do que ela vê na vida lá fora. O letramento digital está muito mais desenvolvido na criança do que o letramento escolar. E aí, dentro da escola, o letramento digital muitas vezes é deixado de lado para que a criança aprenda a ler e escrever do jeito tradicional. Um jeito no qual a criança não vê ligação com a vida dela. Se eu não levo em consideração que, fora da escola, a criança está nesta multiplicidade, nessa vida multifocal, acabo concluindo que a não-concentração dela naquilo que se pede é um problema, quando não é. Quando a gente consegue fazer essa transposição do que é a vida lá fora para escola, a gente vê que essa criança responde muito mais. Posso te dar um exemplo. A gente estava fazendo um trabalho numa escola em São Paulo e a professora estava sem conseguir dar a aula que ela queria naquele momento, que era de geografia. A criançada queria ficar no celular. Geralmente , as escolas de São Paulo não tem sinal de wi-fi para criançada não poder usar os celulares. Não tem computador em todas as salas de aula. Para deixar mesmo o uso dessa tecnologia digital fora da vida escolar. A professora chamou a diretora porque a classe não obedecia. Uma hora, a diretora se encheu e perguntou: vocês querem usar o celular? Está bem. A aula era sobre acidentes geográficos, eventos da natureza. Então, vocês vão se organizar, fazer um grupo de WhatsApp. Na semana seguinte, esses alunos estavam engajados e usando apropriadamente a ferramenta. Isso fez com que a aula rendesse de um jeito muito legal.
Porque as escolas estão demorando tanto para se adaptar a esta nova realidade?
Porque mexe com muita coisa. Mexe com a questão da democratização do conhecimento, da coletivização do conhecimento e consequentemente do poder. Mexe também com a noção de disciplina na sala de aula. Na hora que a criançada está ali mexendo no celular, é outra forma de disciplina que você tem. É outra maneira de se obter a atenção dessas crianças. Não é mais aquela, tradicional, do professor ali na frente. É interessante isso. A gente está no século 21. Todos os nossos alunos, da educação infantil até a faculdade, são nascidos no século 21. E os professores não. A maioria dos nossos professores, e eu me enquadro nisso, é do século 20. A gente não nasceu mergulhada na era digital e os nossos alunos sim. Então, o modo de vida de ver a vida é muito diferente. Existem professores ainda que se sentem desrespeitados quando o aluno pega um celular para conferir uma informação que ele está dando na sala de aula. Porque a detenção do conhecimento sempre esteve na figura do professor e agora não. Agora se você fala uma besteira, o aluno imediatamente diz: professor não é exatamente isso que você está falando. Ou, acontece muito de você dizer, olha não estou lembrada do nome daquele filme, e na mesma hora tem um aluno que fala, é tal coisa. Se eu me sentir ameaçada no meu saber, acabou a aula. O poder pelo saber é uma forma que a escola se pautou durante muito tempo.
Essa questão que estamos conversando aqui está sendo debatida entre os educadores? Você tem conhecimento de formas de educar em outros países ou até no Brasil que já incorporam essas novas visões?
Ainda são poucos, mas é uma questão que urge ser feita. Por exemplo, o vilão agora para a escola é o ChaptGPT. Tem gente que não quer nem saber, proíbe, mas não tem como proibir. É uma realidade que não tem mais volta. Como é que a gente usa essa ferramenta a favor da criação, da busca. Já existem vários estudiosos, pesquisadores e escolas trabalhando com um conceito de multiletramento. Você tem o letramento escolar, que é esse mais conhecido nosso, mas você tem outras leituras da vida. Hoje em dia você não lê só um texto escrito. O texto hoje é dinâmico, tem hiperlink. A criançada pequenininha faz o gesto de rolar a tela com o dedo, porque é um gesto que ela já entendeu socialmente que tem valor .Na escola, a gente precisa incorporar isso. Então, como é trabalhar com multiletramento? É ampliar esse conhecimento e o professor também precisa estar dentro dessa cultura, o que ainda é difícil porque a maioria dos professores não se formou nela. Entender que a leitura não se dá só pelo escrito. Ela se dá junto com uma música, com uma fonte diferente, uma cor. Tudo isso implica num outro sentido para aquele texto. E hoje a gente tem a ideia de pessoas na ubiquidade. O que é isso? Eu estou aqui lendo com você, mas se o meu celular tiver aqui ligado e pulasse uma mensagem, eu também iria ler. Ou seja, estou aqui com você, mas também estou em São Paulo com alguém que me mandou uma mensagem. Estourou mais uma desgraça no mundo, a gente sabe também. É um leitor que está em vários lugares ao mesmo tempo. Na vida, a criança está sendo estimulada a fazer isso.
É necessário a criação de políticas públicas para modernizar essa forma de ensino? Ou mesmo mudar formação de professor?
Sim, mas não vamos colocar toda a responsabilidade em cima do professor. Que ele possa ter condições na escola para que isso aconteça. Nas escolas de São Paulo, por exemplo, a internet não é livre. Não sendo livre, não é possível uma coisa dessas acontecer. Vamos ver o período da pandemia, a dificuldade que foi dar as aulas online. O professor tinha que, ele próprio, da casa dele, resolver as coisas, usar o pacote de dados.
A pandemia não foi suficiente para mostrar essa necessidade de mudança?
Na verdade, a pandemia escancarou as desigualdades sociais. E agora querem tamponar isso exigindo coisas da criançada. Esse seminário que a gente está promovendo aqui na Ufba fala muito disso. Na volta da pandemia parece que a escola viveu essa coisa de tudo para ontem, Todo mundo tem que correr atrás. E de repente parece que todo mundo adoeceu na escola, porque o que tem tido de encaminhamento para clínicas médicas, fonoaudiológicas, psicológicas como se tudo que a criança está vivendo agora fosse transtorno. A gente está vivendo um momento que precisa parar e rever o que aconteceu. Foram dois anos de atividades online, dois anos de atividades isoladas. Cada criança em casa e o professor também. A gente sabe que esse encontro na sala de aula, essa convivência, o fazer tridimensional aqui, é super importante. Ficaram muitos buracos, mas os buracos não são das crianças. A criança que foi para isolamento por conta da Covid no primeiro ano, volta para escola no terceiro. Como se ela tivesse vivido integralmente o primeiro e o segundo ano. E não viveu. E este não viver integralmente fica na conta da criança. Aí é que está o erro.
O que explica essa tendência de pais e professores, sobretudo após a pandemia, de identificar como patologia esses comportamentos?
A ideia de patologização da educação, da infância já vem de muito tempo. Mas acho que hoje, por conta deste evento, se exacerbou. Tem duas coisas que fazem essa exacerbação. A gente tem nos diversos momentos da vida questões relacionadas a isso, mas sobretudo as crianças foram impedidas, por conta da pandemia, de viverem experiências discursivas, sociais. Isso faz muita falta. Aí voltamos à vida normal, sabe lá Deus que normal é esse, e se olha para criança e diz: nossa, ela não está falando; nossa, ela não está escrevendo. Vamos investigar qual é o problema? Mas não tem problema, tem falta de experiência discursiva. O que estou querendo dizer com isso? Coisas que pergunto aos pais quando eles vão me procurar. Eu falo assim: quantas vezes, durante o período da pandemia, você saiu com o seu filho para ir na casa da avó, para ele dormir na casa do amigo, ou até descer pelo elevador? Porque quando você tem filho pequeno , desce com ele no elevador, encontra uma vizinha que fala: você vai sair com o papai? E ele vai ter que se virar. Ele se enrosca na sua perna, você dá um cutucão e fala: ela está perguntando para você, conta para ela. Isso é experiência discursiva. Quantas vezes as crianças pequenas, durante a pandemia, fizeram isso? Tem pais que dizem: nenhuma. Não foi na casa da avó. Nenhuma vez foi no parquinho para ter que disputar o brinquedo com amiguinho no tanque de areia. Essas crianças e também os adolescentes, os adultos, todos nós, vivemos um período de escassez de experiências de vida discursiva e escolares.
Há algo que pais e educadores possam fazer para facilitar e acelerar essa readaptação?
Dialogar. É que a gente vai falar aqui no mini-curso. Como você pode ter práticas desmedicalizantes para isso. O que seriam práticas desmedicalizantes? Não tem nada a ver com dar ou não remédio, dar ou não um diagnóstico. É não focar só naquele indivíduo como se ele tivesse problema. E como a gente faz isso? A melhor ferramenta é o diálogo. Põe essa criançada para conversar. Quantas vezes se conversou sobre mortes com as crianças. Não se conversou, mas elas viveram a morte. Quando falo de pais e professores não estou de modo algum acusando. Mas é que a gente entra num modo de pensar que deixa de ver a questão um pouco maior. Sabe aquela técnica do teatro? Você está vendo uma peça e, de repente, apaga a luz e põe o foco de luz num lugar só. Você fica olhando e daí muda todo cenário e você diz: nossa, eu não vi... É isso que a gente faz na vida. A gente foca num ponto só e esquece que a vida continua ao redor. O olhar medicalizante é esse; é focar na criança como se o problema estivesse nela. Às vezes vêm pais de crianças pequenas no período pós-pandêmico e dizem: meu filho estava falando antes, parou de falar e não sei o que pode ter acontecido. Eu e meu marido fomos trabalhar em casa, então ele teve a gente. Sim, mas o que mais que aconteceu? Ah, ele parou de ver a avó que via todo fim de semana. A babá também não foi mais. Um dos avós morreu. Ou seja, aconteceu um monte de coisa na vida dela, mas a gente acha que criança não pensa sobre isso. Pensa, lá do jeito dela.
Especialistas dizem que, após a Covid-19, o Brasil vive uma epidemia de transtornos mentais. As crianças também foram afetadas neste sentido pela pandemia?
Só quero mudar um pouco o termo porque na hora que você fala transtornos mentais, é de novo numa visão medicalizante, está colocando o problema na pessoa. Mas é um problema coletivo. Como a gente pode fazer isso na escola? Coletivizando essa discussão. Vou dizer de outra forma. As crianças sofreram e estão sofrendo? Sim. As crianças estão sem saber muito bem o que fazer? Sim. Mas não significa que elas estão transtornadas, que elas estão com um problema que tem que ser resolvido com elas só. É um problema que precisa ser resolvido na coletividade. Vamos conversar sobre isso. Tem criança que vem de uma família que ficou muito assustada. E ela também vai se assustar. Aí, a escola reclama que ela não está querendo sair no recreio. Não está querendo sair no recreio porque está com a ideia de que vai ser contaminada. Não é ela que está se isolando, mas é todo um entendimento que foi se formando de uma determinada coisa que ela vai externar.
O diagnóstico de dislexia e TDAH em crianças continua sendo feito de forma precipitada e até banalizada?
A gente tem avanços nos estudos do cérebro e se coloca TDAH e a dislexia como transtornos neurológicos. Por um lado, a gente tem avanços nos estudos do cérebro, que falam da plasticidade neuronal. Que mostram o cérebro como um órgão que tem a capacidade de se modificar no funcionamento e muitas vezes na forma também, a partir dos estímulos que recebe. Quando você entende e acredita nisso não existe uma patologia neurológica que não se modifique, a não ser que ela seja degenerativa. Dislexia e TDAH são questões neurológicas. Mas se o próprio cérebro se modifica a partir do estímulo que recebe, a dislexia se desfaz. O TDAH se desfaz. Para quem acredita nesses conceitos. Eu não acredito nesses conceitos. Eu acho que a gente tem a questão da atenção e onde você coloca o foco da sua atenção. Não é que a atenção se desfaz. A atenção está voltada para um ou outro foco. O que a gente precisa entender daquela criança que se diz desatenta, que diz que não foca em nada, é: porque ela está desatenta? O que a leva a pensar em outra coisa. E aí entram todos multifatores que envolvem o processo de aprendizagem. Eu tenho ali mecanismo neurológicos que funcionam. Se o cérebro tem algum pedaço que não está funcionando, ele próprio vai arrumar outro jeito de funcionar. Mas isso só tem razão a partir do contexto que estou vivendo. O exemplo de um garotinho que na escola estava dizendo que ele estava muito desatento. Onde ele está desatento? Nas rodas de conversa, quando escuta história, ele não para quieto. E comigo na clínica era diferente. Aí falavam: na classe é diferente, é muita criança. Aí um dia eu perguntei para ele: o que está acontecendo que você não presta atenção na aula? E ele falou para mim: primeiro eu não gosto de contos de fada, e estava numa época que a escola trabalhava contos de fadas. E o que mais? Ele estava preocupado com o pai, que estava morando numa outra cidade para trabalhar e a família toda estava triste. E ele trazia muita ideia de que estou aqui pensando no que posso fazer para trazer meu pai de volta. Outra vez, a gente acha que a criança não pensa. Que a criança está alheia às questões do mundo, mas elas não estão. A gente acha isso porque a gente não tem conversado muito com as crianças. Não tem de fato conversado para saber o que elas têm a dizer. A gente está num automatismo. A gente vive agora, também por conta da internet, um momento de espetacularização da vida. Tem muitos pais que conversam com seus filhos filmando. Então, a criança não está conversando, ela está sendo filmada. E, às vezes, ela só fala se a câmera está gravando. Isso tudo vai mexendo com a subjetividade das crianças.
Essa exposição à internet, às redes sociais tão cedo, pode trazer prejuízos?
Na minha concepção, tudo tem que ser mediado. Você não vai colocar um celular na frente de uma criança pequena e deixá-la sozinha. Mas o celular faz parte da vida de todos nós. Quando o uso desse equipamento é mediado pela interação, tudo bem. Porque eu vou conversar. Aí não vejo mal nenhum. A vida hoje está toda permeada com isso. Hoje, você vai ver um apartamento para alugar, você pega o celular, coloca o QR Code e abre. Não tem volta. O que a gente precisa é ensinar a criançada a trabalhar com essas ferramentas. O mais importante hoje na escola é a gente ensinar a pesquisar. Se você envolve a criança desde pequena, ah vê como é que a gente pesquisa isso? Como é que a gente faz perguntas para o computador? O ChatGPT é isso. Certa vez, o menino chegou em minha clínica e me falou sobre um filme que achou super-legal. Aí, perguntei: que filme foi? Ele falou, não lembro o nome. E na hora até falei: nossa, mas você não lembra o nome? Não é possível isso. Aí ele olhou para mim com uma cara de, meu, isso não é questão. Aí ele pegou o computador, porque em minha sala deixo o computador ligado para eles, fez a pergunta certa e veio o nome do filme. Então, o que a gente precisa ver: o que é questão para o desenvolvimento da criança e o que não é. Você falou do diagnóstico de dislexia. A dislexia também é colocada como uma doença neurológica. Mas dislexia de desenvolvimento, desculpe quem acredita, eu não acredito. Não existe ninguém com dislexia de desenvolvimento. Eu gosto de partir da concepção mais tradicional de dislexia que é a gravíssima ou total incapacidade de lidar com símbolos gráficos. Se você tem uma gravíssima ou total incapacidade de lidar com símbolos gráficos está bom, você está diante de um disléxico. Mas tenho 40 anos de profissão e nunca vi um disléxico puro numa criança em desenvolvimento. Porque a gente sempre encontra uma lógica na construção do erro da criança. E quando a gente encontra essa lógica, não tem dislexia. Esse é um bordão que sempre uso e levo para as escolas. Onde tem lógica de construção do erro, não tem dislexia. Tem uma capacidade de lidar com símbolos gráficos, mas que às vezes está um pouquinho longe da convenção, às vezes muito longe da convenção. O que esse diagnóstico de dislexia faz na vida da criança? Vira quase uma sentença de morte social. Porque a criança já fala, ah eu sou disléxico, não vou ler. Ah, eu sou disléxico, e vou fugir de coisas que tenham leitura e escrita. E aí, o que faço até do ponto de vista neurológico? Paro de estimular esse cérebro a procurar outros movimentos para aprender a ler e escrever. Tiro a intimidade da pessoa com a leitura e a escrita.
Com tantos estímulos, como a gente conversou, o que os pais podem fazer para incentivar o hábito da leitura e da escrita?
Sentar junto, ler junto. Tem um livro do Italo Calvino que se chama 'Barão das Árvores'. É a história de um garoto, filho de um barão que, num determinado dia, briga com o pai e fala: nunca mais piso no mesmo solo que você e trepa numa árvore. Como ele morava numa cidade da Itália com muitas árvores frondosas, ele podia circular pela cidade inteira só pelas copas. E lá ele passou a vida inteira. E o que ele fazia? Lia, lia, lia. Às vezes conversava com uma moça que ele gostava muito, ela dava mais livros para ele. Mas ele começou a ficar entediado lá em cima até que encontrou outra pessoa nas árvores. Era um assaltante que estava fugindo da polícia e se escondendo. E esse assaltante falou assim, o que a gente faz aqui para passar o tempo? Nossa, a gente lê. Vou passar todos os meus livros e você vai ser um interlocutor meu. Aí passou um e falou, olha, eu amo esse livro. O ladrão não passou da primeira página. O ladrão disse, que saco, que livro insuportável. Não gostou desse livro, te dou outro, mas ele também não gostou. Aí esse filho do barão, que se chama Cosimo, começa a perceber que, para que o outro leia, ele precisa olhar para os interesses desse outro. E aí conversando com o ladrão, perguntou: quais são os seus interesses? Do que você gosta? E começou a ler coisas que interessassem o ladrão para oferecer livro. O ladrão ficou encantado com a leitura, esqueceu que estava fugindo e foi pego. Lá na cadeia pedia para o Cosimo: me dá mais um livro daquele. O que estou querendo dizer com isso? Eu tenho que olhar qual é o interesse daquela criança. Não é fazer da leitura uma obrigação. A base de tudo está no diálogo. E em prestar atenção quem é esse meu interlocutor.
Raio-X
Maria Lucia Hage Masini é fonoaudióloga clínica, graduada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Possui mestrado em Fonoaudiologia e doutorado em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem também pela PUC-SP. Desenvolve pesquisas na área da medicalização da educação e da sociedade. No campo cultural possui um podcast de histórias infantis, intitulado Histórias pra Conversar.
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