GERSON BRANDÃO
“É difícil falar de pandemia com bombas caindo sobre a cabeça”
Diplomata brasileiro está na Ucrânia para levar assistência à população atingida pela guerra
Por Osvaldo Lyra

O diplomata brasileiro Gerson Brandão está em uma cidade chamada Vinnytsia, no centro-oeste da Ucrânia, ao sul de Kiev, atuando para levar assistência à população atingida diretamente pela guerra. Em conversa exclusiva com o A TARDE, o diplomata da ONU disse que “é importante que haja um engajamento global para a solução do conflito” com a Rússia. Para ele, a maioria das guerras são originárias da tentativa de misturar religião e política. A “fé se tornou um instrumento de poder“, por isso, ê tão “importante separar a política da religião”. “Através da fé, através do nacionalismo, você mobiliza populações, e através dessa mesma fé você cria conflitos que podem servir a um projeto de poder”. O diplomata afirmou que entre as 31 situações de conflito que a ONU atua ao redor do mundo, 28 são situações de conflito armado. E desses 28 conflitos armados, 21 têm fundo religioso”, como disse ele, ao enfatizar que se “existe instabilidade no mundo hoje, ela existe porque a fé é manipulada com um propósito político”. Confira:
Você atua como diplomata da ONU - Organização das Nações Unidas e tem um trabalho de mais de 20 anos na resolução de conflitos e na gestão de catástrofes. Agora na Ucrânia, que avaliação você faz da guerra, estando aí na zona de confronto?
A guerra, como sempre, é desnecessária e triste. E esse conflito, acho que mais do que outros conflitos que a gente vê e acompanha as notícias nas últimas semanas, é uma guerra que ao final foi criada por um membro do Conselho de Segurança da ONU, que teoricamente tinha obrigação de zelar pela paz. Como sempre, a guerra é triste, desnecessária, e nesse caso acaba sendo ainda mais incoerente do que outras guerras que a gente conhece.
Na verdade, o mundo todo paga por problemas decorrentes de uma guerra como essa da Ucrânia, mas quem sofre realmente são os ucranianos, que estão morrendo ou estão sendo obrigados a fugir do país. Como você avalia a situação local?
Justamente as primeiras vítimas da guerra são as pessoas inocentes, são os ucranianos, as crianças, as pessoas idosas, mulheres que tiveram que abandonar suas famílias, famílias que foram destroçadas, que tiveram que se separar por essa guerra. Então é um trabalho complicado de tentar assistir pessoas que nós sabemos que vivem um trauma inimaginável. O nosso trabalho prioritário é trazer assistência humanitária a essas pessoas vítimas da guerra, mas a gente sabe que o que elas precisam é paz e estabilidade. E nesse momento, infelizmente, apesar de todos os recursos que a Organização das Nações Unidas e parceiros que trabalham conosco têm, nós não conseguimos trazer aquilo que é mais importante que é a paz e estabilidade. Enfim, com os recursos que nós temos, nós tentamos trazer alimentação, abrigo, assistência médica, e sobretudo assistência psicológica, porque as pessoas precisam bastante nesse momento.
Que olhar os países do mundo, inclusive o Brasil, devem ter nesse momento de guerra entre a Ucrânia e a Rússia?
O mais importante é buscar a paz, como eu dizia antes. Por mais que nós tenhamos assistência a trazer a essas pessoas, no final, o que essas pessoas precisam é de paz e estabilidade. Então, eu acho que o mundo deveria se concentrar, como felizmente vários países vêm fazendo, em tentar uma situação, uma negociação para terminar com esse conflito que é injusto e desnecessário. Então, a nossa esperança é que mais e mais países, sobretudo países que nós sabemos que têm uma influência global importante, se empenhem na resolução desse conflito.
Falta vontade a esses chefes de nação, para tentar intervir de forma mais enérgica na construção de um consenso de paz?
A situação é bastante complexa. Por um lado, existe o engajamento de vários países influentes para buscar a paz. Mas, ao mesmo tempo, acho que sim, mais países deveriam se envolver, porque hoje em dia nós não falamos de uma guerra na Ucrânia, nós não falamos de uma guerra na Europa. Nós falamos de uma guerra que tem um alcance global, que seja em função da crise econômica, que é uma das consequências dessa guerra, a gente fala mais e mais de segurança alimentar. Entre a Rússia e a Ucrânia nós temos vários países produtores de trigo e de milho, então vai ter um impacto na segurança alimentar mundial em função desse conflito aqui na Ucrânia. Então, é importante que haja um engajamento global para a solução desse conflito na Ucrânia.
Esse engajamento não deve ser restrito apenas aos homens públicos, ao poder público. Qual o papel das empresas privadas também na proteção das pessoas no meio dessas guerras que tem acontecido, como é o caso da Ucrânia?
É bom você falar das empresas privadas, porque a gente vive em um mundo mais e mais controlado pelo capital, onde existe uma influência enorme das empresas privadas sobre governos ao redor do mundo. Então, sim, um aspecto importante dentro dessa resolução de conflitos que a gente aguarda é justamente o engajamento de empresas privadas, de pessoas ao redor do mundo, que seja fazendo pressão sobre seus governos ou fazendo pressão sobre os governos que estão envolvidos diretamente no conflito. Então, é importante que esse engajamento global não seja só de chefes de estado, de chefes de governo, mas também sim de sociedade civil e, sobretudo, empresas privadas, como a gente conhece a importância do capital hoje no mundo.
Até porque há uma influência muito grande desse capital privado sobre o processo de gestão e até mesmo sobre as decisões de cada um de muitos dos países, não é isso, Gerson?
A guerra sempre tem um componente econômico importante. Quando a gente fala desses conflitos, especificamente aqui na Ucrânia, a gente fala também de interesses econômicos. A região do Donbas, no leste da Ucrânia, é uma região muito rica em minério. Então, como infelizmente em quase todos os conflitos que eu acompanhei, que eu trabalhei nos últimos anos, existe um componente econômico bem importante. Existem interesses econômicos contrariados que acabam contribuindo para o conflito. Então, sim, é importante você aliar o capital na resolução de conflitos, porque os conflitos, em geral, têm um componente econômico importante.
Você está nesse momento na Ucrânia. Onde, especificamente, você se encontra e de que forma você consegue auxiliar a população local no meio dessa zona de conflito? Como tem sido a sua rotina na Ucrânia?
Nesse momento, eu estou no sul da Ucrânia, no sul da capital, Kiev, e eu estou em uma cidade chamada Vinnytsia. E eu cubro essa região sul, oeste e central da Ucrânia. O meu trabalho prioritariamente é identificar as pessoas que tiveram que fugir da parte leste em função do conflito e que buscam uma certa estabilidade, ao menos uma segurança na parte central e na parte oeste do país. Então, vários acampamentos de pessoas que tiveram que sair de suas casas, que foram criados pelo governo, e a ONU com várias outras ONGs parceiras, nós tentamos levar assistência a esses acampamentos provisórios que foram criados pelo governo. Então, são escolas, prédios públicos ou prédios abandonados que foram ocupados pelas pessoas que fugiram das zonas de conflito. Hotéis, inclusive, existe uma solidariedade enorme a vários hotéis que disponibilizaram quartos para que as pessoas pudessem ter um lugar para dormir, para viver esse momento de deslocamento forçado. O nosso trabalho é chegar até essas pessoas com assistência que eles necessitam, quer seja assistência alimentar, médica, psicológica, como eu disse antes. Ao mesmo tempo, nós sabemos que ainda existem pessoas que continuam nessas zonas, onde há enfrentamentos, ou zonas onde, infelizmente, a situação tende a deteriorar. Então, por exemplo, na próxima semana eu devo viajar para o sul da Ucrânia, para uma cidade chamada Odessa, que fica um pouco mais perto da chamada linha de combate, e tentar negociar com os dois lados para que a assistência chegue até essas zonas, onde infelizmente as pessoas que não puderam, ou simplesmente não quiseram sair de suas casas, apesar do conflito. Então, é um trabalho de assistir as pessoas que conseguiram se deslocar até a região oeste, que é um pouco mais segura, e negociar o acesso para levar assistência às zonas onde ainda há enfrentamentos.
Você atua como um diplomata das Nações Unidas e fala muito sobre as consequências humanitárias da intolerância religiosa. Que diagnóstico você faz dessa situação hoje no mundo e por que demoramos tanto a evoluir ao tratar da questão da intolerância hoje?
Infelizmente, e não é de hoje, já data de muito tempo, nós descobrimos que uma das maneiras de mobilizar uma população é através da fé. E nós sabemos hoje em dia que a fé, infelizmente, há vários estudos que confirmam que a fé se tornou um instrumento de poder. Através da fé, através do nacionalismo, você mobiliza populações, e através dessa mesma fé você cria conflitos que podem servir a um projeto de poder. É uma forma de manipulação, e infelizmente todos nós estamos sujeitos a isso. Em um momento de dificuldade, nós buscamos a fé, e hoje em dia nós sabemos que essa fé pode ser manipulada. E nós vemos que a fé é manipulada. Se eu puder te dar um número, entre as 31 situações de conflito que a ONU acompanha e atua ao redor do mundo, dessas 31 situações, 28 são situações de conflito armado. E desses 28 conflitos armados, 21 têm fundo religioso. Então, hoje em dia, a gente pode dizer que se existe instabilidade no mundo, ela existe porque a fé é manipulada com um propósito político.
Por que tanto ódio e desamor em nome de Deus? Por que tanta intolerância religiosa e tanta discriminação? Como reverter essa situação atual que a gente vive?
Primeiro, acho que é importante separar a política da religião. Porque, como eu disse antes, onde a religião se torna uma plataforma para um projeto de poder, você cria um conflito. E, de novo, a estatística mostra com bastante clareza quantos conflitos ao redor do mundo têm um fundo religioso. Então, acho que é importante separar política da religião. Os religiosos ficam na igreja e eles falam dos diferentes livros sagrados que existem, quer seja torá, bíblia, alcorão. Religião deve se limitar a um espaço de culto, um espaço de fé. A religião não deve se misturar com a política. Porque a consequência da mistura da política com a religião é bem clara, e as situações de conflito que a gente vê ao redor do mundo são consequências dessa mistura entre política e religião, e a religião sendo utilizada como projeto de poder. Então, sim, a religião é aquilo que nós faz crescer como pessoas, e a palavra de Deus, seja lá como a gente quer chamar esse Deus, não deve se rever a nenhum propósito político. Então, acho que começa com essa separação entre a política e a religião.
A situação do Brasil de intolerância às minorias ficou muito mais evidente com a ascensão do presidente Bolsonaro ao poder. Que avaliação você faz do nosso país hoje tendo essa visão de mundo que você tem?
Eu não queria falar de situação política brasileira, ainda menos de análise política. Apesar de ser brasileiro, é uma situação que eu não venho acompanhando com muita proximidade nas últimas semanas. Mas nós voltamos à questão anterior, da importância de garantir o estado laico. O Brasil é um estado constitucionalmente laico. E acho que é importante garantir essa laicidade. Porque, uma vez mais, no momento em que você mistura a política com a religião e quando a fé das pessoas se transforma em um projeto de poder, você acaba dividindo o país. Durante muitos anos, a gente sempre falou da democracia racial no Brasil. Inclusive eu me lembro que há pouco tempo eu participava de uma conferência no Brasil e alguém, um dos participantes, criticava a ONU por falar de democracia racial. E, sim, em um determinado momento um colega relator da organização falou de democracia racial, mas, nesse momento, é mega importante a gente fazer a separação entre democracia e harmonia. Nós não temos uma harmonia racial, não temos uma harmonia religiosa. E é obrigação do estado trabalhar por essa harmonia. E no momento em que a fé é utilizada como projeto de poder, você imediatamente deixa de trabalhar pela harmonia que deveria existir entre as religiões. Você passa a favorecer uma religião para que ela seja superior a outra. Então, sim, existe uma responsabilidade do estado, dos governos em trabalhar por essa harmonia racial, religiosa e obviamente harmonia social. E a gente sabe que a religião tem um papel importante dentro dessa harmonia que nós buscamos.
Sabemos que as desigualdades sociais no Brasil são ainda muito fortes e separam, excluem muito a população. Independente da questão político partidária, a gente está vivendo um ano eleitoral. O que você acredita que o próximo presidente da república do Brasil deva colocar como prioridade para reverter essa situação de tantas desigualdades sociais que a gente vive hoje?
Bom, aqui eu não falo como funcionário da Organização das Nações Unidas, mas talvez como cidadão brasileiro. A gente conhece as necessidades do nosso país, quer seja em relação à violência urbana, acesso a oportunidades de trabalho, proteção do meio ambiente, enfim. Os desafios são muitos, e são desafios que nós conhecemos. Eu acho que é importante o governo trabalhar, como eu disse antes... Antes de mais nada, a harmonia social, a reintegração do país. A gente vive em um país hoje em dia bastante polarizado, onde, infelizmente, o debate político acabou contaminando as relações sociais. Acho que o próximo governo deve prestar bastante atenção a isso. Tentar criar esse ambiente de harmonia e de respeito. Nós podemos ter opiniões distintas, podemos ter religiões diferentes, mas, ainda assim, nós podemos viver juntos como um corpo. Acho que é importante trabalhar esse aspecto de reunificação social que a gente perdeu nos últimos anos. E a reunificação social passa pela garantia da laicidade do estado, e que o estado passa contribuir para que todas as religiões tenham as mesmas oportunidades. E depois, claro, essa questão de oportunidades de trabalho. Nós sabemos as distinções que existem entre empregos para homens e empregos para mulheres, as facilidades que os brancos têm em relação aos negros, enfim. São muitos desafios que a gente tem no nosso país, e eles passam sim pela igualdade de oportunidades, proteção ao meio ambiente, mas acho que, sobretudo, essa distensão social que existe no Brasil tem que ser curada. É importante a gente poder voltar a viver como um povo independente das nossas opiniões políticas ou da nossa crença religiosa, e acho que o governo deve trabalhar por isso.
Você está lançando um livro agora sobre Likasi, uma das cidades mais ricas do mundo por causa da produção do cobalto, mas que é marcada pelas desigualdades e pela pobreza da maioria da população. Por que tantos com tão pouco e tão poucos com tanto?
Nós vivemos em um mundo egoísta. É o primeiro comentário que eu posso fazer. Mas eu acho que o que define a tragédia de Likasi, como você falou, desse livro que eu finalizei e que espero poder lançar ainda esse ano, a depender da situação aqui do meu trabalho na Ucrânia, é que Likasi é considerada por muitos o futuro da humanidade. O cobalto é a matéria prima para a bateria dos telefones, que são indispensáveis na nossa vida. O cobalto é matéria prima para a bateria dos carros elétricos. Então, nós todos queríamos viver em um mundo com menos poluição, e a redução da poluição passa pela redução do CO2, passa pela utilização de carros elétricos. Mas o custo humano da produção dessas baterias quem paga são os habitantes de Likasi, são os congoleses de maneira geral. Então, o livro tenta atirar nossa atenção frente à essa incoerência que existe de proteção da humanidade, revolução verde. Nós todos queremos viver em um mundo menos poluído, mas nós não sabemos quem é que paga o preço dessa revolução verde. Nós não sabemos qual é o custo de ter um telefone celular, de ter um computador portátil que usa uma bateria que tem como matéria prima o cobalto.
Só mais uma dúvida… A gente ainda está vivendo uma fase de transição na pandemia. A COVID-19 ainda não foi eliminada do mundo. Como tem sido conduzida essa questão da pandemia nas zonas de conflito?
Em situações de conflito, nós temos, infelizmente, outras prioridades. A prioridade maior que a gente tem é com a vida, e uma das sensibilizações que a gente faz com frequência e continua fazendo aqui na Ucrânia é justamente em relação a isso. É dizer que a pandemia não acabou. É difícil falar de pandemia com bombas caindo sobre a cabeça, com sirenes informando que pode haver um bombardeio a qualquer momento, mas é importante nós continuarmos falando da pandemia, quer seja na Ucrânia, apesar de toda a instabilidade no país, ou quer seja em outros lugares. A pandemia ainda não acabou. Já morreram muitas pessoas, e infelizmente algumas pessoas continuam morrendo, então é muito importante nos vacinarmos, é importante, dentro da medida do possível, manter o distanciamento social, e sobretudo continuar usando máscaras em lugares fechados. O vírus continua circulando e continua matando.
Você é carioca, mas tem uma relação próxima com a Bahia, próxima com os baianos. Como é que você se relaciona hoje com nosso estado, com a população?
Olha, eu sou baiano. Eu nasci no Rio de Janeiro, mas eu sou baiano sim. Eu sou da Casa Branca, eu tenho uma relação forte com a cidade de Salvador, a minha comunidade é a comunidade do Candomblé, a comunidade da Casa Branca. Então, sim, eu nasci no Rio de Janeiro mas a minha história no Brasil é na Bahia. Minha mãe mora em Salvador, meus irmãos, meus sobrinhos, enfim. A minha vida é na Bahia. E quando eu vou ao Brasil, eu tenho que ir pra Salvador, tenho que comer minha moqueca, beber água de coco, tenho que fazer um passeio, mergulhar na praia, passar uns dias descansando na ilha de Itaparica. A Bahia é minha casa, a Bahia é minha vida.
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