CINEMA
A sombra do pai em Aftersun
Filme de estreia da diretora Charlotte Wells observa a relação melancólica entre jovem pai e sua filha
Por Rafael Carvalho | Crítico de cinema
É sempre muito gratificante quando jovens cineastas conseguem estrear com filmes sólidos e bem resolvidos, não pela sensação de estarmos diante da descoberta de uma nova promessa do cinema (há muitas dessas por aí surgidas todos os anos), mas pelo frescor que esses filmes podem trazer e, principalmente, pela experiência de coesão que oferecem.
Aftersun é um desses casos, curiosamente construído a partir de uma narrativa que tateia a todo instante a formatação de uma relação interpessoal. Até o seu desfecho, o filme demonstra muita consciência de sua feitura enquanto uma história de busca, no caso de uma filha pelo seu pai. Não é o caso dele ter desaparecido – ou talvez ele tenha mesmo –, mas a trama é muito mais centrada em uma relação entre sujeitos que pouco se encontram, mas que possuem laços eternos.
Para isso, a diretora escolheu focar em um evento muito específico envolvendo os dois: a viagem de férias de um pai e sua filha de 11 anos. Ele, um homem jovem, já divorciado da mãe da garota, pai dedicado e amoroso. Ela, atenta a tudo, em fase de crescimento, está desabrochando como adolescente e parece gostar da companhia do pai. Mas há algo de desconexo nessa relação, algo fora de lugar.
E é a relação dos dois que ao filme interessa investigar, menos como algo dado e decodificado, mais como tentativa de entrever o que se passa ali entre eles. É certo que há uma cumplicidade entre os dois, um certo prazer de um estar na companhia do outro; mas há também uma melancolia no ar, além de algumas incompatibilidades que vão surgindo aos poucos entre os dois, como se uma comunhão completa não fosse possível para eles.
Eles viajam para a Turquia e passam os dias em um hotel não muito bom, mas onde podem se divertir e conhecer lugares exóticos – como a estação de lama negra, próximo ao Mar Morto, onde Cleópatra supostamente se banhava, usado como terapia corporal para se livrar das toxinas. Dito assim, parece que Aftersun explora as paisagens locais de um lugar estrangeiro, mas interessa muito mais à cineasta as paisagens interiores.
Filme de busca
É nesse sentido que se trata de um filme de busca – ou uma espécie de investigação psicológica sobre o passado, já que o filme se constrói como uma rememoração da Sophie adulta (vivida por Celia Rowlson-Hall) sobre sua juventude e certo distanciamento com o pai (o ótimo Paul Mescal).
Nunca saberemos, exatamente, o que os incomoda, apenas temos dicas da introspecção de cada um. Também o filme não nos revela que tipo de evolução aquela relação teve no futuro, apenas nos deixa vislumbrar que esse processo de retorno ao passado é uma maneira de investigar, ou tatear, uma afinidade que poderia ter sido maior entre pai e filha, mas não foi.
E não faltam esforços de ambas as partes para que a relação seja a melhor possível, ou apenas para que a viagem a seja – eles fazem alguns passeios pelos arredores e se divertem nas festas do lugar em meio a outros turistas com quem travam algum contato. No entanto, apesar dos momentos mais luminosos, o filme não deixa de nos lembrar de que algo está incompatível ali naquela relação. Há uma melancolia que o filme sustenta até o fim, sem fazer concessão quanto a isso.
Exemplo: existe um momento em que vemos com um pouco mais de tempo de tela a Sophie adulta – essa que rememora aquela viagem –, que antes só aparecia de relance. O filme poderia seguir dali em diante a partir de uma grande elipse a revelar o que se deu com aqueles dois personagens no futuro. Mas o longa não cai na armadilha do psicologismo simplista e acaba retornando ao passado e à juventude de Sophie (interpretada por Frankie Corio) porque parece estar ali não a semente, mas o modo mais representativo de como se processou uma futura separação.
Aftersun lida, portanto, o tempo inteiro com a dualidade do dito e do não-dito (ou do que se mostra contra aquilo que se esconde). Não é um filme de respostas dadas, mas antes um estudo atmosférico a revelar a fragilidade das relações humanas e familiares, mesmo quando elas estão aparentemente bem. É realmente ótimo ver a química que os dois atores possuem entre si, o que se choca com as cenas de maior solidão que ambos vão enfrentar em momentos distintos do longa.
Imagens fugidias
A figura do pai, nesse sentido, é muito interessante de se observar em comparação à filha que está apenas saindo da infância e descobrindo o mundo adulto – o que não significa que ela não apresente uma perspicácia na maneira de interpretar o mundo ao redor.
Mas o pai, já crescidinho, parece mais fragilizado nessa situação porque, apesar de certa animação jovial – ele é ainda novo, a ponto de um dos hóspedes do hotel achar que ele e Sophie são irmãos –, é ele quem parece ter maior dificuldade de conexão emocional – há algo de uma sexualidade não bem resolvida e também uma propensão à depressão que apenas vislumbramos na trama.
Um dos recursos mais acertados de Wells para retratar essa situação são as gravações que eles fazem numa câmera digital de Mini-DV, muito comum nos anos 1990 (período em que a trama de passa), e que servem como estopim para reavivar a memória da Sophie. Essa imagem digital de pouca resolução, amadora e um tanto difusa é ideal para espelhar aquilo que se esconde nas frestas da relação pai e filha, tão perto e ao mesmo tempo tão distante.
Aftersun é o primeiro longa-metragem de Wells, uma grande estreia. É certamente um dos melhores filmes do ano, já celebrado desde que foi exibido em uma mostra paralela do Festival de Cannes. Wells usa uma trama aparentemente convencional, mas potencializa o seu fator emocional, sem nunca exagerá-lo ou torná-lo um melodrama sobre culpas e rancores. É mais sobre uma filha que revisita a imagem de um pai do passado que, dentro das suas crises, foi aquilo que melhor conseguiu ser.
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