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ENTREVISTA

João Carlos Salles: “Fazemos balbúrdia porque dizemos não à barbárie”

Reitor da UFBA concedeu entrevista exclusiva ao Grupo A TARDE

Por Gonçalo Júnior | Especial A TARDE

14/06/2022 - 6:10 h
Salles deixa a reitoria da UFBA em agosto deste ano, após oito anos de mandato
Salles deixa a reitoria da UFBA em agosto deste ano, após oito anos de mandato -

No dia 19 de agosto de 2022, uma sexta-feira, o filósofo João Carlos Salles deixa o cargo de reitor da UFBA, que ocupou por dois mandatos, durante oito anos, metade desse tempo em um dos momentos mais sombrios do conhecimento no Brasil. A instituição baiana, aliás, foi apontada pelo então Ministro da Educação Abraham Weintraub, no dia 29 de abril de 2019, como alvo de cortes de recursos por supostamente não apresentar desempenho acadêmico esperado e por fazer o que definiu como “balbúrdia”. O mesmo aconteceria nas também conceituadas Universidade Federal Fluminense (UFF) e Universidade de Brasília (UnB).

Além de enfrentar a crise que seguiu, Salles faz de seu novo livro – Ernst Cassirer e o Nazismo - E Outros Textos Sobre a Proximidade do mal (Editora Noir) – uma espécie de manifesto a favor da Universidade, que define como um valor tão universal quanto a democracia. A obra será lançada amanhã (15), no Campus de São Lázaro, a partir das 10 horas. O livro termina por traçar um paralelo entre a ascensão do nazismo na Alemanha (a partir do enfrentamento de um filósofo de origem judia e que foi reitor da Universidade de Hamburgo) e o Brasil de Jair Bolsonaro, com sua guerra declarada contra a educação e o saber, o armamento da população e ataques sistemáticos às instituições democráticas.

Nesta entrevista exclusiva para o jornal A TARDE, a seu editor, o jornalista Gonçalo Junior, o reitor da UFBA chama atenção para que a sociedade brasileira não subestime o avanço de ideias e ações obscurantistas que podem levar o Brasil a um dos períodos mais terríveis de opressão de sua história e a uma nova ditadura. Em especial, defende a importância de se preservar as funções essenciais da Universidade e os desafios que enfrentou durante a pandemia.

Que vínculo existe entre seu livro sobre um filósofo que enfrentou o nazismo e o contexto brasileiro atual?

No livro, procuro afastar a ideia de que o mal se dá apenas pela violência. É bem mais que isso. Quem faz o mal pode até não parecer violento e provocar o mesmo efeito. O mal opera destruindo laços, a possibilidade de as pessoas afirmarem sua identidade. É algo que, digamos assim, opera pelo negativo. Não necessariamente pela violência, enfim, mas pela negação sistemática e, às vezes, sutil.

O mal corrói até fazer o estrago, não é?

Sim, vai corroendo. Como se abolisse a possibilidade do diálogo, da ligação produtiva entre os indivíduos, da construção do coletivo. O mal faz interferir no tecido social uma ferida, uma cunha, uma separação do indivíduo, às vezes até de si mesmo e, por esse caminho, em relação ao outro. Eu diria que, se destacarmos esse aspecto do mal, temos um laço direto do artigo principal do livro, que é sobre Ernst Cassirer, filósofo de grande renome e primeiro reitor judeu de uma universidade alemã, e estes tempos obscurantistas que vivemos.

Por que você foi buscar tão longe esse paralelo?

Por meu interesse em certos temas da filosofia, sempre li Cassirer. Confesso que não valorizava tanto certos textos dele, talvez visse neles um trabalho de comentador mais amplo e menos minudente do que eu desejava. Não lhes dava assim o devido valor, até perceber que havia em sua trajetória intelectual, em seus trabalhos sobre temas e autores diversos, uma construção sistemática de um sujeito universal que procurava, a todo tempo, resistir ao particularismo, ao negativo, ao reacionarismo, ao racismo, às formas que o nazismo veio enfim a assumir e que é algo que, sim, pode nos acontecer no tempo atual, em nosso país. A ameaça existe e é palpável.

O que percebe nesse sentido?

Passamos a conviver com ataques a direitos individuais e a instituições, de sorte que um mal efetivo assumiu a forma de destruição de políticas públicas voltadas ao interesse do comum, de ataques sucessivos à educação, à ciência, à cultura e às artes. Em seu tempo, por seus meios, Cassirer resistia a tudo isso, e combatia o obscurantismo que se materializava em um provincianismo reacionário e racista, em um nacionalismo agressivo e resistente a medidas mais elevadas da cultura, em formas ideologizadas da cultura que resistiam aos valores da República de Weimar. A obra ganha novo sentido, quando a vemos testemunhar sua defesa do projeto de sociedade, na qual o ser humano é visto como fonte de direitos, um homem que só pode então ser considerado como uma finalidade e jamais como um meio. Afirmava-se assim, como judeu, certamente, mas sobretudo como participante da cultura alemã em sua feição mais universal.

De que modo Cassirer via a naturalização desse mal como política de Estado, intensa e devastadora?

Ele se colocou em franca resistência a tudo quanto ameaçava o estado de direito que caracterizava a República de Weimar. Aliás, como judeu, apesar de seu grande renome, ele tinha tido imensa dificuldade em encontrar um posto na universidade. Com o advento da República de Weimar e, então, com a criação da Universidade de Hamburgo, ele encontrou seu lugar, mesmo sabendo o forte contexto antissemita da nova instituição. Assim, Cassirer atua como um defensor do parlamento, do republicanismo, com o que podemos entender melhor o sentido de sua filosofia da ilustração, projetando um horizonte mais amplo e europeu para a reflexão filosófica.

Essa tendência opressora, tudo nos remete a uma sensação de que assistimos nos últimos três anos a imposição de ideias semelhantes?

Sem dúvida. Esse seu lugar e seu papel, ao lado de sua clareza acerca do que se passava na Alemanha, me fizeram refletir sobre seu gesto decisivo, o de pedir exoneração, em 1933, da Universidade que lhe ampliara o destaque intelectual e lhe concedera o primeiro posto acadêmico estável, tendo sido seu reitor em 1929. Sua carta de exoneração é um documento notável, que traduzi e analisei em meu livro. Cassirer teve a sagacidade de perceber a gravidade da ameaça nazista. E, infelizmente, que podemos ver, no que ele destaca, aspectos semelhantes ao que vemos no Brasil, por exemplo, com as ameaças feitas ao STF e às instituições da cultura.

Ele era reitor e você ocupa esse cargo na UFBA. A escolha dele para o livro se deu por isso ou foi coincidência?

Talvez tenha sido por isso. Não foi mera coincidência. Estando na reitoria da UFBA, ocupo um lugar que tem sido contínua e sistematicamente atacado. Analogias se avivam, mesmo sendo sempre importante destacar diferenças. De todo modo, resgato de Cassirer uma preocupação com a Universidade, que, como a democracia, comporta valores universais. No Brasil, o ataque à instituição tem sido um dos eixos fundamentais deste mal na política brasileira. Ou seja, passaram a visar algo que é exemplo de conhecimento, cultura e arte.

Existe a sensação de que o Brasil está paralisado diante de um governante que não conhece limites autoritários?

Essas investidas sistemáticas não podem ser subestimadas. É, talvez, uma das ações mais graves e perigosas já feitas no país para destruição da civilidade como condição mínima para um projeto de nação que não seja desigual, mas sim profundamente democrática. Por estar neste lugar, talvez tenha percebido analogias com dilemas enfrentados por Cassirer quase um século atrás. Sem dúvida alguma, foi isso que me estimulou a explorar um documento precioso que é a carta de exoneração dele e as razões que apresentou para isso, que são muito fortes.

O que fica claro na leitura do seu livro é que isso funciona também como elo para falar da sua própria vivência no mesmo cargo e também na condição de intelectual.

A experiência de Cassirer naquele lugar e tempo, a tragédia da cultura em função do nazismo que começava a se estabelecer, tudo isso traz lições para nossa experiência de resistência, neste nosso país, neste nosso lugar, em meio a ataques que, distintos ou assemelhados, têm a mesma força de um mal, mesmo quando assumem a forma de uma polidez destrutiva, ou seja, quando se valem de meios racionais para fins nada razoáveis. Talvez até valha corrigir a expressão que usei tantas vezes de uma “polidez destrutiva”, referindo-me a ações na área da educação posteriores às agressões da era Weintraub, que nos imputava a condição de só fazermos balbúrdia.

Por exemplo?

Podemos ver em episódios recentes que talvez a ação não seja tão polida, mas certamente é destrutiva. Refiro-me às ações do Governo Federal em relação às universidades, que assumem a aparente forma de decisões orçamentárias (em bloqueios e cortes), mas para realizar uma escolha que recusa a devida prioridade para a educação.

É uma ideologia que quer se impor de forma medieval pela destruição do conhecimento e até da lógica, do racional...

Sim, pela destruição do conhecimento por meios supostamente racionais, mas com uma finalidade absolutamente irracional, que seria a de destruir a universidade pública. Há aí um paralelo, um vínculo, uma análise sobre a experiência de Cassirer, sua reflexão sobre a tirania, às quais acrescento minhas anotações acerca de outras formas do negativo que hoje perpassa a vida pública. Assim, além de Cassirer, procuro refletir sobre a tirania, sobre a violência nas redes sociais, etc.

Uma parte do livro procura mostrar aspectos de necessária reação que a comunidade universitária tem apresentado, não é?

Exato, diante de tantos ataques, em meio a essa confusão entre pandemia e o pandemônio que experimentamos nos últimos anos. Enfim, arrisco no livro uma ponte final, faço emergir uma voz mais pessoal, que mostra a dificuldade da instalação da vida em sociedade, vista porém sendo uma marca pessoal e decerto intransferível, mas sem cujo sentimento talvez não conseguisse organizar minha experiência ou esboçar alguma reação perante, digamos assim, o mistério do mundo. E não é exatamente fácil reconhecer no corpo as marcas indeléveis deixadas pela proximidade do negativo. A sociabilidade, afinal, é ela mesmo um desafio, que precisamos renovar a cada dia.

Por quê?

A ligação do indivíduo com a sociedade é sempre desafiadora e, por vezes, é marcada por algum dano, uma marca, uma ferida. No meu caso, algo que me marcou fortemente, que foi o suicídio de minha mãe. É como se, perante o sofrimento, mesmo o coletivo, eu fosse levado a revisitar esse abismo, no qual identifico em mim uma marca primordial, um dano, dificuldade permanente, mas também imenso fascínio presente na experiência que me associa ao outro e me faz parte de uma sociabilidade. Uma dor profunda, mas tornada em testemunho de outras dores, que já passaram ou que ainda virão, servindo como chaga mas também como amuleto, para reconhecer manifestações sutis do mal e, quem sabe, a elas resistir. Em suma, talvez acredite ou queira fazer acreditar que não compreendemos a tirania e outro mal tamanho sem nos afastarmos da neutralidade ou da indiferença.

Em nenhum momento no seu livro você cita termos como Bolsonaro, bolsonarismo ou bolsominion. Mas o leitor percebe a sua sutileza ao longo dos artigos... Foi uma escolha fazer essa construção?

Mais que uma escolha, é talvez um estilo, um traço de minha intervenção na cena pública. Não posso todavia deixar de afirmar. A escolha do mal pelo país precisa ser passageira, ou nos separaremos do melhor que podemos vir a ser, afundando em um lodo de autoritarismo e exclusão que sempre acompanhou nossa história. E, para além da luta atual e urgente, há algo que talvez torne nosso livro uma obra de interesse mais duradouro. O livro é, em seu conjunto, uma reação específica (e, digamos, filosófica) a políticas imediatistas no ensino público. Essas são políticas de destruição e se traduzem no desmonte ao qual resistimos.

Entre outros temas que trata, encontra suas expressões nas redes sociais, certo?

É onde tem uma substituição aparente do diálogo por uma estrutura de polêmica, de destruição, uma combinação rara de muitas informações e pouca formação, de muitos dados e pouca reflexão. Tudo isso perpassa as redes sociais, tornando-as parte de um perigo. Elas são necessárias, sem dúvida. Mas se forem louvadas apenas como uma técnica podem se tornar um dos abandonos de uma cultura mais profunda, algo que, no seu tempo e com toda diferença da realidade atual, não deixou de ser percebido também por Cassirer.

Há uma proximidade com a banalização dos aspectos éticos e morais, seguidos da violência banalizada tanto lá atrás, na Alemanha, quanto no Brasil de hoje?

Parece que a permanência do mal o torna insensível às pessoas que se identificam com ele. Como se pudéssemos conviver, perdão pelo trocadilho, com o “mal necessário”. O mal se justifica a todo tempo. Faz parte de sua estratégia não ser mera violência. Além de força bruta, quer ser sedução. Ou, pior ainda, quer mostrar-se inevitável e, por isso, invisível. Parte do absurdo está em que as pessoas, de tão assaltadas e devastadas, passam a se acostumar com ele, como se, após ataques reiterados, pudéssemos conviver eternamente com ele.

A sensação é de que depois de 660 mil mortos da pandemia, o país não consegue ser sensível a uma tragédia tão imensa, fruto de uma negligência criminosa. Tudo precisa ser recomeçado depois dessa política de terra arrasada, não é?

Exatamente. Os perigos, neste momento, ainda são muitos. O país está em frangalhos. Se conseguirmos superar essa política atual de ataques às universidades e ao conhecimento, isso não significa que a resposta será tranquila. Caminhos mais obscuros podem ser seguidos, mesmo em ambiente mais progressista. Uma lição de Cassirer talvez esteja na afirmação de que o conhecimento é mais amplo, deve ser mais amplo, não pode ser apenas instrumental, não pode seguir apenas ao mercado, não pode ser apenas aplicado. É preciso cultivar valores da cultura que ultrapassam a mera aplicação.

A Universidade está sempre vulnerável à manipulação política?

Eu vejo, às vezes, similaridade em discursos opostos no aspecto político, mas que acabam concluindo que o importante na Universidade é a formação de pessoas para o mercado de trabalho. Isso é verdade, a instituição não pode descuidar disso. Entretanto, como universidade, devemos proteger saberes que não têm aplicação imediata, que são, por assim dizer, apostas de longa duração. Dentro da Universidade, o que é substituído pela pressa, pelo imediato, torna-se um grande perigo; significa priorizar o que tem aplicação imediata, o que vai dar emprego. Com isso, esquece-se que esse espaço precioso é uma aposta da humanidade. Essa é certamente uma lição de Cassirer, a universidade é uma grande e necessária aposta da cultura...

Do pensamento...

Do pensamento! A Universidade é lugar de refinamento, mas de um refinamento que deve estar aberto a toda a nossa gente. Tempos atrás, no contexto de um debate, eu disse que somente reacionários acreditam que excelência e requinte são prerrogativas das elites. A gente, afinal, quer uma Universidade para todos, mas quer uma autêntica Universidade, que de fato tenha essa capacidade formadora e não apenas instrumental. É um perigo imenso, sobretudo porque cheia de tentações e de justificativas, a mera instrumentalidade, a técnica bem-sucedida, que normalmente não reflete sobre sua aplicação. Podemos citar vários exemplos em que a técnica pode causar dano, destruir culturas, o meio ambiente e valores essenciais da humanidade.

Você tem a ciência e o mercado de trabalho e são frentes que a Universidade tem de cobrir, certo?

Precisa, sem dúvida, dialogar com o mercado de trabalho, a indústria; ao mesmo tempo, com as comunidades tradicionais, com os movimentos sociais, mas também com a comunidade científica internacional, com a ciência, a medicina. São muitas frentes e qualquer visão unilateral, mesmo que seja uma reação à política atual, pode ser danosa. Por isso, temos um grande desafio, a reflexão precisa continuar, mesmo quando afastarmos esse mal maior e imediato, esse lixo de valores, esse obscurantismo tosco e autoritário. Em suma, precisamos ter em conta uma dimensão de valores mais elevados, de modo que a Universidade seja uma aposta segura para contribuir com uma sociabilidade mais rica.

A pandemia atrapalhou o foco que se tinha em destruir a Universidade, uma vez que a busca pela vacina e medicamentos é justamente o papel da ciência formada nessas instituições?

Esse é um benefício imediato da Universidade, que consegue dar respostas precisas a certas perguntas. Mas há perguntas não formuladas que precisam ficar em gestação na Universidade, não é o lugar apenas onde se bate na porta em busca de uma resposta imediata. No caso da pandemia, a resposta urgente (em conhecimento e também em solidariedade) diante de uma grave questão sanitária foi fundamental. Temos que pensar, porém, que a Universidade é um valor em si mesmo, assim como a democracia. Repito como um mantra, também lembrando a forte expressão criada por nosso saudoso amigo Carlos Nelson Coutinho, que pugnou pela democracia como valor universal. Da mesma forma, temos que pensar que a universidade não é um mero instrumento.

Em que sentido?

A sociedade permite, exatamente por isso, que não seja uma mera repartição pública. Somos servidores públicos, sem dúvida alguma, mas a universidade é um espaço com autonomia, capacidade de reflexão, rebeldia natural e até mesmo balbúrdia. Não temos dúvida de que também fazemos balbúrdia, mas uma boa balbúrdia, no sentido de que pregamos o diálogo livre e desimpedido, a boa demonstração, a realização do indivíduo, a sua transformação em cidadão. Nossa balbúrdia está em que escolhemos a lógica e não a guerra, e assim o método por meio do qual chegamos a um consenso científico, por que alcançamos nossas verdades, em muito se assemelha à forma por que logramos deliberar sobre nosso destino e escolher os projetos que devem orientar nossa ação coletiva. Em todos esses casos, no ambiente da universidade, a palavra deve ter precedência sobre quaisquer outros instrumentos de poder.

É uma balbúrdia transformadora, no sentido positivo...

É uma balbúrdia transformadora, da cultura, de algo que não é somente instrumental, no sentido de organizar elementos da cultura de uma forma sofisticada. Por outro lado, a pandemia tirou a universidade da mobilização, impôs o trabalho remoto. Uma pandemia tem seu preço. Se a vida universitária é o lugar do encontro, esse encontro muito nos faltou. Aliás, muita e muita gente entrou na Universidade nesses mais de dois anos e ainda desconhece em muito esse espaço público. Afinal, um espaço público é sobretudo simbólico, não é um mero espaço físico. Por isso mesmo, é público se os comportamentos visam à constituição das condições de um diálogo desimpedido.

Essas afirmações não são um convite ao diálogo e ao debate, não é mesmo?

Não são. Se não temos oportunidade renovada de construção de consensos e divergências com qualidade, a medida da ação tende a ser individualizada. O interesse coletivo dá lugar à defesa nua e crua do interesse individual. Não por acaso, muitas vezes membros de nossa comunidade se colocam como clientes e não como cidadãos. Temos que restabelecer a boa balbúrdia do convívio, da confrontação das gerações, da vivência de experiências científicas e culturais diversas, de modo que, fazendo passear indivíduos e ideias, não deixemos espaço para a barbárie. Esse é um momento de reinvenção e, certamente, de muita luta; temos o grande desafio de fazer com que a imaginação recupere sua força. Ela é a melhor forma de combate a todos os tipos de males em todas as suas versões e em todos os níveis.

Na função de reitor, como você enfrentou e ainda enfrenta a pandemia?

Desde o início, percebemos que tínhamos de manter a comunidade unida, colocar o debate no centro – acho que esse é o legado mais importante da nossa gestão –, fazer com que se preservasse a vida. Decisões difíceis foram tomadas, no sentido de suspender o presencial (que é uma marca fundamental da vida acadêmica), mas manter atividades, criar condições de manter o vínculo com os estudantes, utilizar tecnologias para isso, tecnologias que foram e são fundamentais. Porém, ao mesmo tempo, tem sido importante evitar a mera idolatria diante de ferramentas todavia tão necessárias.

Existem riscos de se perder o controle sobre isso?

Muitos. Soluções emergenciais, muitas das quais jamais abandonaremos, não podem criar a ilusão de que a Universidade não é o lugar da presença, que ela pode acaso se transformar em espaço virtual de ensino, que pode se dar à distância sem o convívio, sem o benefício do desafio da alteridade e a superação, pela experiência de diálogo e formação, de exclusões e preconceitos. A universidade se amesquinha se deixa de ser um lugar, um espaço de confrontação e acolhimento, no qual se desenvolvem ensino, pesquisa e extensão de qualidade. E também o professor se desnatura, caso aceite tornar-se sobretudo uma espécie mais bem codificada de youtuber. A universidade é sim o lugar do encontro pedagógico e científico; e, naturalmente, mesmo com todas as diferenças, é o lugar de enfrentamento do obscurantismo. Preservar essa essência tem sido nosso grande desafio. E, acredite, venceremos mais essa batalha.

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