CIRCUITO DA DIVERSIDADE
Mano Brown transforma a folia em quebrada paulista
Por Gilson Jorge

Menina e menino se encararam ao lado da corda do trio Afropunk, no sábado de Carnaval. Sobrancelhas eriçadas, dedos indicadores direitos em riste na cara do outro, nenhum sorriso. Corpos a poucos centímetros de distância, podia ser uma acalorada discussão. Mas eles dizem frases como “meu melhor Marvin Gaye, sabadão na marginal. O que será, será e nós vamo até o final”. É Mano Brown cantando Vida Loka e os jovens recitando cada verso como se tirassem do âmago seu próprio discurso. Antes de a música acabar, vem o beijo quente, apaixonado, e depois cada um segue para um lado. Mas de alguma forma estão todos na mesma direção. Ninguém solta a corda de ninguém.
No ano em que a discussão sobre apropriação cultural e fantasia ameaçou levar a atriz Alessandra Negrini às cordas, depois que ela se pintou de indígena em São Paulo, os Comanches do Pelô trouxeram à Bahia o cacique Raoni e representantes de outros povos indígenas do Brasil. A representação étnica em fantasias gerou discussão nacional. Em Belo Horizonte houve até guia com recomendações de se evitar o uso de perucas black power e adereços que pudessem ser vistos como ridicularização de uma comunidade.
No Carnaval de Salvador, homens continuaram se vestindo de mulher, apesar dos protestos contra blocos travestidos, e a representação indígena, que havia entrado em decadência após o surgimento dos blocos afros, voltou a ganhar conotação política. “Não me incomoda que as pessoas se vistam de índio. Estamos juntos”, afirma Tlaka Kariri, durante o desfile do Comanches, enquanto posa para fotos profissionais e de foliões em busca de selfies. Tlaka fez parte do grupo de indígenas alagoanos trazidos a Salvador pelo bloco especialmente para o desfile no Campo Grande.
Mistura
Se a Mangueira é o lugar onde o Rio é mais baiano, o rapper paulistano conseguiu trazer para a cidade do axé um tiquinho das quebradas de Sampa, em pleno sábado de Carnaval. “Assim como nós, o Racionais e Mano Brown falam pelo coletivo”, defende José Macedo, líder do Afrocidade, um dos destaques da nova geração de músicos baianos que, tal como o seu convidado ilustre no trio Afropunk, fez sua estreia no circuito. A banda camaçariense havia se apresentado em palcos em anos anteriores.
O Afropunk, que desfilou usando o trio elétrico Nave Pirata, do BaianaSystem, é um aperitivo para a versão soteropolitana do renomado festival Afropunk, criado em Nova York. Depois de passar por Londres, Atlanta e Paris, grandes cidades com relevante comunidade negra, o festival aporta na capital baiana em novembro deste ano.
Macedo define o grupo como um movimento de uma comunidade, não marcada por um território específico, mas pelos negros de forma geral, os remanescentes indígenas da região e as periferias como um todo. “Estamos ligados à rede de quilombos. Através da música e da dança lutamos contra o racismo, o machismo, a homofobia”, declara, enfatizando a importância de se colocar na pele do outro.
As estreias de Raoni, Mano Brown e Afrocidade no circuito ratificam. Esse foi um Carnaval diferente. O discurso a favor dos direitos humanos esteve por quase todos os lados. Nos meninos do Afrocidade metendo dança na avenida, nos milhares de corpos tatuados com hena, afirmando que não é não, pedindo o fim das discriminações ou reafirmando o direito de existir. Com a mesma naturalidade com que reafirma seu direito a não ter seu corpo tocado pelo assédio, a moça fantasiada segura o braço do rapaz e sinaliza, na camaradagem, que ele está no caminho da fila de policiais que se aproxima. Mensagens políticas deixadas na pele e na voz dos jovens que ajudaram o paulistano líder dos Racionais a transformar, por alguns minutos, parte do Circuito Dodô em uma quebrada.
Dentro e fora do bloco, homens, mulheres, negros, brancos e índios buscam uma nova forma de celebrar a vida, protestar, brigar por direitos e enxergar quem ajuda a levar adiante o seu Carnaval e quem empurra a corda contra a multidão
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