A SUBTRAÇÃO DA LUZ
Destaque na ‘Mostra SP’, ‘Ainda Estou Aqui’, de Walter Salles, denuncia assassinato
‘Ainda Estou Aqui’ aborda o assassinato de Rubens Paiva pela ditadura e eterniza a resiliência de Eunice Paiva à frente da família
Por João Paulo Barreto
Em Ainda Estou Aqui, filme em cartaz atualmente no Circuito SaladeArte e no Cine Glauber Rocha, o diretor Walter Salles constrói um mundo solar, iluminado, que, gradativa e dolorosamente, se torna sombrio e repleto de trevas.
Das areias brancas da praia do Rio de Janeiro, banhadas por águas refrescantes e receptivas e pelo escaldante sol carioca, a obra adentra de supetão em sombras que começam com as cortinas da casa com "varandão e parede de cobogó", como define o patriarca, o então ex-deputado Rubens Paiva (Selton Mello), e que são cerradas ainda com o sol lá fora. A mensagem de quem as cerram é bem clara. O mundo desabou.
“Pra mim, essa sempre foi a história de uma família que, em um momento turbulento da nossa história, foi roubada de um futuro possível. Da mesma forma como o país foi roubado de um futuro possível”, afirma Walter Salles, em entrevista para o jornal A TARDE. “Essa oposição entre a luminosidade inicial do filme e o ‘chiaroescuro’ que acontece depois do desaparecimento de Rubens, após a invasão da casa por policiais militares a paisana, foi, portanto, parte do conceito inicial de toda a narrativa", confirma o cineasta.
As trevas nas vidas daquelas pessoas começaram anos antes daquele janeiro de 1971, mas foi só ali, quando o governo militar assassinou Rubens Paiva, que a realidade dura de um país tomado pela tirania os atingiu para tirar sangue. Da limpeza floral daquela casa com gosto de salitre, para os fétidos corredores de tortura e morte, o caminho é tortuoso e o choque é grande. Quando vemos a família de Eunice Paiva (Fernanda Torres) ser destroçada pela ditadura, os sorrisos e o carisma daquelas pessoas começam a desaparecer.
“O estar no mundo da família Paiva no início do filme é pleno de possibilidades: na casa alugada do Leblon, havia o encontro de pessoas de gerações diferentes, discutindo política, ouvindo música", continua o diretor de Central do Brasil (1998) ao tratar dessa quebra de realidade entre aquele antes e depois.
“Os momentos em Super-8 do início do filme revelam a geografia humana e a geografia física de uma cidade, o Rio de Janeiro. Tanto a imagem quanto o som transmitem uma sensação de que, mesmo sob aquela ditadura militar, era possível sonhar com um outro país”, explica Salles.
Mergulho no abismo
A imagem materializada do momento em que as trevas alcançam os Paiva bate pesado no espectador. É quando as cortinas da casa são fechadas de modo abrupto pelos militares a paisana, e todo o aspecto de brilho solar e otimismo com o futuro se perdem de imediato.
Os planos simples de ir em família assistir a um filme no cinema são suspensos, uma rotina de sorrisos e brincadeiras em um lar saudável, cessa.
O diretor de Diários de Motocicleta (2004) define essa amputação dos aspectos cinematográficos de sua obra como um desenhar daquela inóspita nova realidade.
“A partir do momento em que Rubens é levado abruptamente para dar um depoimento no quartel militar, o filme, como um todo, é sujeito à subtração de elementos tanto visuais quantos sonoros. Quando as cortinas são fechadas, há uma ausência da luz natural. Ao mesmo tempo, os sons exteriores são abafados, a música cessa. Uma ditadura afeta tudo, a começar pela linguagem. A palavra não pode ser mais usada livremente. A partir dali, a narrativa se torna subjetiva, um personagem tenta entender o que o outro sente sem palavras. O filme se torna uma narrativa de não ditos", descreve Walter.
“Em outras palavras, para falar da ausência de Rubens, para retratá-la, era preciso sentir que a casa havia mudado, era necessário projetá-la na sombra, subtrair a luz, subtrair os sons externos, retendo, inclusive, a interpretação dos atores", crava o diretor.
Livro de Marcelo
A relação entre os espaços, a partir daquela nova perspectiva em transmitir uma sensação de sufocamento para a audiência, juntamente com a direção de arte que muda em 180 graus para exibir não mais a calorosa e receptiva casa para, sim, os círculos do inferno do quartel, se faz valer de maneira palpável através da câmera de Salles e pelo olhar do diretor de fotografia Adrian Teijido. É uma sensação de sufocamento agonizante e impotência que se faz presente.
O diretor de Linha de Passe (2008), nessa alteração de norte, detalha tais mudanças e como buscou esse diálogo com sua equipe. "A câmera deixa de ser fluida, há um alongamento da cada plano, e, também, uma outra compreensão do espaço. As lentes se tornam mais abertas, os planos mais estáticos. Essa parte do filme tem a ver com o trabalho do pintor dinamarquês chamado Vilhelm Hammershoi, que é, para mim, talvez um dos pintores que tenha melhor trabalhado a questão da falta e da ausência. Na conversa com o diretor de fotografia Adrian Tejido e com Lula Cerri, o incrível operador de câmera com quem trabalhamos, as pinturas de Hammershoi foram um ponto de partida. Compartilhei com eles um livro com o trabalho dele e construímos essa parte toda do filme a partir desse raciocino", salienta Walter Salles.
Baseado no livro homônimo escrito por Marcelo Rubens Paiva, Ainda Estou Aqui apresenta a maneira resiliente como aquela família orfã de pai passou ter em Eunice seu bastião. E como essa luta da personagem de Fernanda Torres espelha a vida de muitas outras viúvas que a putrefata ditadura gerou.
“À medida em que Marcelo foi arquitetando o livro, ele foi abraçando o ponto de Eunice. Ele abriu a possibilidade de falar da ditadura a partir do microcosmo da família. A partir do quarto dos filhos, da sala de jantar, do armário do pai. Eunice instaurou uma outra forma de resistência, que se soma a outras que são extremante importantes", reflete Walter Salles.
Quando arguído sobre essa análise de Brasil que recentemente passou por uma tóxica ascensão de uma extrema-direita oportunista que prefere jogar a sujeira dos militares para debaixo do tapete, o diretor fala sobre o que buscou trazer de reflexão sobre o país. "O filme oferece um reflexo possível do Brasil nos anos 1970, e acompanha a reinvenção dessa mulher e a forma de resistência que ela abraçou durante quarenta anos. O que podemos esperar é que o filme abra a possibilidade de entender melhor quem nós fomos em dado momento da nossa história e, com isso, entender melhor as opções que temos no presente e, quem sabe, no futuro", afirma.
Candidato do Brasil para uma possível indicação ao Oscar, Ainda Estou Aqui ficou em cartaz por uma semana em Salvador há dois meses, no intuito de se qualificar para a análise dos votantes da Academia Cinematográfica estadunidense. O diretor comenta.
“Em primeiro lugar, foi uma imensa honra estrear em Salvador, em um cinema de rua tão simbólico e que traz o nome de um dos maiores cineastas da historia, Glauber Rocha", celebra Salles.
“O nosso filme fala de reconstrução da memória de uma família, assim como fala da reconstrução da memória de um país, e de uma forma de resistência proposta por Eunice Paiva e pela família Paiva. O cinema no qual o filme estreou no país, em Salvador, é um símbolo da luta pela memória coletiva no Brasil. Da mesma forma que é um símbolo daquilo que o cinema brasileiro tem de mais criativo a invocar”, finaliza o cineasta.
Ainda Estou Aqui / Dir.: Walter Salles / Com Fernanda Torres, Fernanda Montenegro, Selton Mello, Valentina Herszage, Maria Manoella, Barbara Luz, Gabriela Carneiro da Cunha, Luiza Kosovski, Marjorie Estiano, Guilherme Silveira, Antonio Saboia, Cora Mora, Olivia Torres, Pri Helena, Maeve Jinkings / Salas e horários: cinema.atarde.com.br
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