A violência no dia a dia – e agora, José? | A TARDE
Atarde > Colunistas

A violência no dia a dia – e agora, José?

Confira a coluna AMAB em Foco desta sexta-feira

Publicado sexta-feira, 26 de maio de 2023 às 05:30 h | Autor: Josemar Dias Cerqueira*
Josemar Dias Cerqueira é Juiz de Direito e palestrante
Josemar Dias Cerqueira é Juiz de Direito e palestrante -

José é um jovem com trabalho regular, vivendo em um bairro da periferia e recebendo pouco mais de um salário mínimo. Ao sair de casa, viu no site X que quase 5 pessoas morreram por hora no Brasil em 2022, logo, uma a cada 12 minutos. Pegou o transporte achando que foram muitas mortes. José saltou do ônibus na central de transbordo, ainda pensando nos assassinatos. Ao entrar no ônibus lotado, sentiu um movimento no bolso, percebendo que levaram seu celular. Não conseguiu mais sair do ônibus, mas, pela janela, percebeu um homem  afastando-se rapidamente com seu celular e sumir na multidão. Ele já tinha visto o mesmo homem ser preso por seguranças no local, por duas vezes. Frustrado, sentou achando errado pagar as parcelas restantes por um celular que não mais possuía. Ao seu lado, alguém via no celular o site Y informar que quase dois celulares foram roubados por minuto no Brasil em 2021. O dado entristeceu mais o jovem que só pensava em uma coisa: “E o meu celular?”. Durante o expediente, resolveu que daria “queixa”, pois isto poderia ajudar a retirar o ladrão de circulação. Consumiu o horário de almoço no deslocamento e, após relatar os fatos, criou coragem para perguntar ao agente quanto tempo o homem ficaria preso se encontrado com seu celular. O agente sorriu e disse que o homem descrito já fora preso outras vezes, mas que a lei foi alterada em 2011 e que furto simples não permite mais prisão antes da condenação. Disse, também, que mesmo se for condenado, o homem ainda deve receber outra punição que não a prisão. Faminto e incrédulo com a informação, José voltou ao trabalho rapidamente, embora algo continuasse a martelar em sua mente: “E o meu celular?”. Ao chegar no trabalho, ainda assistiu na TV da recepção uma reportagem do Jornal Z, informando que a polícia, após vigilância, encontrou quase uma tonelada de drogas sendo colocadas em caroços de manga em um galpão, mas os envolvidos presos foram soltos. A Justiça entendeu, com base em decisões superiores, que os policiais não justificaram a entrada no local e estavam sem mandado. O jovem riu da menção às frutas, mas ficou se perguntando se as drogas encontradas não provavam o crime, não entendendo as justificativas dadas, voltando, novamente, a sua razão de viver: “E o meu celular?”. Tentou retornar às suas atividades, mas permaneceu aéreo, inclusive quando foi interrompido no telefone do trabalho por uma ligação de sua mãe para falar de amenidades. Tentando voltar ao trabalho, cortou a conversa e respondeu de forma automática, quando ela encerrou informando que ligasse ao descer do ônibus na volta, pois talvez tivesse “toque de recolher” no bairro. José acha que existe um desconhecimento da realidade entre os governantes, legisladores e julgadores sobre a vida no dia a dia e que tudo parece feito para a pessoa do criminoso não sofrer demais, enquanto temos mais vítimas e mais crimes. O que está sendo feito, portanto, não está funcionado. Assim pensando, desceu do ônibus perto de casa e viu um movimento de homens armados e ruas desertas. Lembrando das palavras da mãe, colocou a mão no bolso para ligar e deu pela falta do celular, pensando: “E agora, José?”

*Juiz de Direito; Mestre em Segurança Pública; Especialista em Ciências Criminais; Autor dos livros “Prisão em flagrante-Teoria, Prática e Questões de Concursos” e “O Município na Segurança Pública”; Coautor do livro “Princípios Penais Constitucionais”; Palestrante

Publicações relacionadas