Hipocrisia, narrativas e educação
Fenômeno das “narrativas” vem suplantando a hipocrisia como o "mal do século"

Há alguns anos, eu via a hipocrisia como uma espécie de “mal do século”. Me incomodava a abordagem cínica de eventos sociais de toda a natureza, com objetivos variados, a depender do pretenso indutor de determinadas interpretações, mas sempre com um interesse oculto de promulgar um “senso comum” distinto ao tradicionalmente conhecido na civilização ocidental. É evidente que, no mesmo contexto, pegavam carona pessoas e organizações interessadas em alcançar vantagens imediatas ou mascarar condutas ou posturas injustificáveis.
Dou aqui dois exemplos: o primeiro, quando se tenta atribuir a regimes autoritários, como o de Cuba, o caráter de democrático, quando às nossas vistas, cidadãos arriscam a vida em balsas improvisadas, para literalmente fugir daquele “paraíso da democracia”, rumo aos Estados Unidos; o segundo, quando, da direita à esquerda, algumas autoridades democraticamente eleitas para administrar um estado ou município, se atribuem a imagem de “cuidador de gente”, quando, na verdade, essa gente paga impostos para ver retribuição em serviços do Estado, como educação, saúde, e infraestrutura, todos eles incluídos nas obrigações do gestor, que, ao disponibilizá-los, nada mais faz do que sua obrigação, pela qual é regiamente remunerado. O cidadão não demanda cuidados, ao contrário, tem o direito de cobrar as entregas do Estado.
Cidades, guardadas as proporções, nada mais são do que grandes condomínios, cujos condôminos contribuem para contar com adequada coleta de resíduos; ruas asfaltadas; calçadas dignas; iluminação eficiente; e estável segurança jurídica em termos de Planos Diretores de Desenvolvimento Urbano, dentre outras servidões. Ao ampliarmos o escopo para os Estados e até para uma Administração Central, vão surgindo outros aspectos, mas, em síntese, o cidadão paga impostos e tem direito a serviços e infraestrutura, na mesma medida em que também tem seus deveres.
Nos dias de hoje, nos defrontamos com o fenômeno das “narrativas”. Originalmente o termo narrativa refere-se a “obra literária, geralmente em prosa, em que se relata um acontecimento, com intervenção de um ou mais personagens, em espaço e tempo determinados” - "narrativa", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2023, https://dicionario.priberam.org/narrativa.” Na interpretação corrente, passou a ser uma ferramenta a serviço de quem deseje influenciar pessoas ou grupos.
No “site” do Exército Americano “goarmy.com”, podemos encontrar a seguinte definição: “Psychological Operations (PSYOP) Soldiers benefit the Army’s missions by using unconventional techniques. Their intelligence, interpersonal skills, cultural sensitivity, and foreign language proficiency help sway opinions and actions of foreign governments, groups and individuals.” Em tradução livre: Soldados de Operações Psicológicas contribuem para as missões do Exército, usando técnicas não-convencionais. Sua inteligência, habilidades interpessoais, sensibilidade cultural e proficiência em idiomas ajudam a modificar opiniões e ações de governos estrangeiros, grupos e indivíduos. No Brasil, o Exército também não admite utilizar Guerra Psicológica no território nacional. Entretanto, infelizmente, vemos constantemente veículos de informação e até autoridades de relevo nacional fazendo abertamente uso de “narrativas”, com objetivos definidos. Já a mentira ganhou campo aberto e fértil com as redes sociais.
Recordo de um presente que dei a uma sobrinha, por ocasião do aniversário de seu filho. Um livro de contos tradicionais, com uma breve análise ao final de cada um, destacando os “valores” ali contidos. Na do conhecido “Chapeuzinho Vermelho”, era comentado, entre outros aspectos, sobre a importância de os filhos obedecerem aos Pais. Não havia lugar a dúvida sobre a existência de perigos, como o do famoso Lobo, matreiro, enganador, sempre pronto para engolir as vítimas.
Como sabemos, não seria novidade se hoje nos defrontássemos com outra versão dessa estória, desta vez retratando o personagem Lobo, como alguém maltratado pelos perversos humanos, durante décadas, tendo assim o direito de atacar as criancinhas que surgissem nos seus redutos. Nos comentários de alguns formadores de opinião sobre o conflito no Oriente Médio, podemos identificar interpretações que guardam alguma similaridade com o tema. Seriam exemplos da hipocrisia contida em “narrativas”, atuando no sentido de moldar o “senso comum” em prol de algum objetivo, causa, ou interesses específicos de grupos, ou organizações.
Li, há algumas semanas, um preocupante relato de um Pai, no qual ele dizia que sua filha estaria conversando no computador com um personagem virtual, movido a Inteligência Artificial, tentando influir na educação da criança, em termos de valores tradicionais. Seria um Lobo cibernético, aliando-se à nuvem de “narrativas” às quais somos submetidos vinte e quatro horas por dia, nos sete dias da semana. Ademais, por diversas razões, nem todas as nossas crianças têm acesso à Escola. As que conseguem, muitas vezes não encontram um ensino de qualidade.
Tendo sido contemplado com a oportunidade de conhecer a sociedade americana, vivendo por quatro anos naquele País, não tenho dúvidas de que boa parte do conjunto de fatores que fazem dos Estados Unidos uma Grande Potência reside na educação básica – a “Elementary School”. Nessas Escolas, públicas e acessíveis, mais do que conhecimentos formais, são transmitidos os valores que constituem o alicerce da cidadania. Desses valores, posso citar a importância da família; o patriotismo; a história vivida pelos antepassados; a convivência em comunidade; as regras de trânsito; os cuidados com os animais e a natureza; a disciplina; a limpeza dos ambientes; a ordem; a organização; o respeito aos mais velhos; a tolerância harmônica com os contrários; e o estímulo à leitura e interpretação de textos, dentre tantos outros.
Devemos seguir caminhando, sempre com otimismo, a despeito das ameaças trazidas pelas “narrativas” à nossa vida diária; aos nossos valores tradicionais; às nossas famílias; à nossa sociedade e ao nosso País. E qual seria o antídoto para tais ameaças? Não obstante a complexidade do tema, identifico a educação como o mais importante agente de defesa da sociedade, face aos fenômenos da vida moderna. Pessoas que tenham frequentado pelo menos uma “Elementary School” – nossa Escola Primária, desde que aprimorada e acessível a todos e todas - adquirem melhor capacidade de viver em coletividade e desenvolvem espírito crítico em nível que permita, no mínimo, discernir com racionalidade ao receber estímulos diversos; que não tenham dúvida da importância dos valores tradicionais; que tenham consciência da importância da cidadania e dos deveres e direitos como cidadão; e que sejam vacinados contra a hipocrisia e as “narrativas”. Mais livros e menos sensacionalismo.
Não importam as preferências ideológicas. Vamos conhecer nossa História e preservar a Verdade. Vamos exigir nossos direitos. Vamos cumprir nossos deveres. Vamos educar nossas crianças. Que prevaleça o “bem comum”.
*O autor é o General de Divisão R1 Racine Bezerra Lima Filho, que exerceu dentre outras as funções de Chefe da Representação do Brasil na Junta Interamericana de Defesa, em Washington, DC, EUA; Comandante da Sexta Região Militar; e Comandante Militar do Planalto.