Luzdivina, uma vida de firmeza, fé, alegria e esperança
Olhar observador, agudo e direto. Desnudava rapidamente as características principais da figura que estivesse diante dela. Ainda que sobressaíssem os defeitos, de fato o que temos de mais vistoso, ela procuraria ângulo mais favorável ao predicante. Ver qualidades é dom necessário quando se quer gostar de alguém; sobretudo se tivermos de ser muito seletivos ao franquear nossa proximidade.
Lola foi uma mulher dedicada à família, educada para comandar suavemente, quando possível, e energicamente, quando imprescindível. Nunca teve dificuldades de se acostumar a decidir. Colecionava juízos e não tinha problemas em se adequar a eles.
Desde cedo aprendeu a se adaptar. Afinal, sair de seu lugar e lançar-se ao mundo não era nada fácil.
A casa onde vivera até os 6 anos com a família fora erguida pelo pai. A casa, o cruzeiro (símbolo do apego à fé) e o hórreo. Uma típica casa galega campesina ficara para trás. Sabino, Marina, Saladina e os pais, Felícia e Ruperto, chegaram a Salvador, há 90 anos, para aqui ficarem em definitivo.
A família dedicava-se a vários negócios: uma pequena fábrica de café, construção civil, a pastelaria que abastecia várias pastelarias e outros afazeres. Eram galegos muito inventivos. A Marina, irmã mais velha, se atribui a criação de iguaria tão baiana quanto o acarajé ou o abará: foi da pastelaria da rua Nova de São Bento que saiu o baianíssimo pãozinho delícia.
A menina Lola, por sua vez, já se encaixava na vida do Novo Mundo. Embora as saudades fossem doídas, a vida escolar lhe trouxera amizades e novos interesses. Ao tempo em que se abria a novas experiências, já deixava a marca da personalidade em decisões inarredáveis que tomaria ao longo da vida. O tifo levara a irmã Saladina, causando-lhe imensa tristeza e a obrigação do luto severo por dois anos. A cor associou-se à dor. Decidiu, então, nunca mais usar preto enquanto vivesse – e assim o fez até o fim de seus dias.
A família Seabra se distinguia do destino comum dos migrantes. Era remediada; mais até para abastada. Possuía boa moradia e o patriarca já construía em várias áreas da cidade. Sabino, o filho, para estranhamento dos conterrâneos, estudou na Faculdade de Medicina e viria a ser médico, coroando esta trajetória incomum.
Por esses tempos, Lola conhecera Manuel Suarez Meijon; jovem que lhe despertara curiosidade. Um retorno à Espanha natal mudaria o rumo da vida dela. Reencontrara Manolo, com quem trocara poucas palavras nas festinhas da colônia, em Salvador. Lá, o assunto tornou-se sério e, embora as famílias pudessem até pensar diferente, se escolheram um ao outro e voltaram casados à Bahia, seis meses após terem partido.
Foram morar no edifício Seabra, no Castanheda, onde Lola teve os três primeiros filhos: Ana Maria, Carlos e Mário. Os tempos, que já eram difíceis, se tornariam muito duros quando a pastelaria de Manolo, no bairro da Calçada, pegou fogo e a família perdeu o negócio. Uma decisão de Lola daria um novo rumo aos destinos da família. Nunca mais fariam pães e artigos de pastelaria; fariam coisas duradouras – fariam prédios, como fazia seu pai, Ruperto. A família prosperou e vieram os filhos Manuel e Fátima. Com a filha mais nova, dizia Manolo, a fortuna enfim lhes sorrira. Claudinha juntou-se ainda a eles, pois o coração era grande.
Lola enxergava e via a beleza das coisas. Tinha alma de artista. Era ceramista e veio a ser figurinista da companhia de dança da filha Fátima. O ofício renovava as amizades.
Para todos era a Lola, ou a Lolinha, que fazia mágica para contar nos figurinos as histórias dos espetáculos anuais que aconteceram por décadas em diversos teatros de Salvador.
Quase centenária, nunca se apegou a preconceitos, parecia pronta para dobrar o tempo. A vida era para a frente. Dizia que não se devia ter grandes ambições sobre a vida. Viver já era o grande prêmio. O importante era permanecer e, aos pouquinhos, juntando gentes e afetos, era possível, então, chegar longe.
Dos afetos, ressaltava as qualidades. Além dos filhos muito amados, dedicou-se a colecionar agregados e filhos postiços, nunca faltando a estes um gesto de amor, uma palavra de carinho e o conforto de sua alegria. Excelente amiga, não se furtava em tomar partido e estar ao lado dos seus.
Embora fosse muito vaidosa, o que correspondia a sua beleza, costumava se apresentar de forma impecável, também em respeito às outras pessoas. Foi assim até os últimos dias, vencendo as adversidades e olhando em frente. Crédula e devota de N. S. de Fátima (uma invocação da luz), Lola fez da fé uma forma suave de esperança. Netos e bisnetos foram luz em sua vida. Uma vida lúcida até o fim. Luz para si e luz para quem teve o privilégio de privar de sua adorável companhia.