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A Tarde Memória

Por Cleidiana Ramos*

ACERVO DA COLUNA
Publicado sexta-feira, 12 de agosto de 2022 às 5:00 h • Atualizada em 12/08/2022 às 20:08 | Autor:

A TARDE detalhou ritos da Festa de Nossa Senhora da Boa Morte

Em 1913, 1917 e 1919 o jornal fez referências à celebração sediada na Igreja da Barroquinha

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A Festa de Nossa Senhora da Boa Morte, realizada em Cachoeira, reconhecida como bem cultural do estado desde 2010 pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac), começa hoje, 13 de agosto, atraindo para a cidade localizada a 120 quilômetros de Salvador uma multidão que acompanha avidamente os cuidadosos ritos coordenados por uma instituição formada exclusivamente por mulheres negras. Nos dias da celebração elas levam para as ruas a encenação dos complexos dogmas marianos da dormição e assunção de Nossa Senhora aos céus, ou seja, seu triunfo completo sobre a morte. Essa comemoração com outras características, mas também sob a direção de mulheres negras já ocorreu em Salvador na Igreja da Barroquinha. Em A TARDE foram feitos três registros que ajudam a preencher as lacunas ainda existentes sobre a Festa da Boa Morte soteropolitana. O primeiro deles foi publicado em 1913, ano seguinte à fundação do jornal:

“Antehontem, às 4 horas da tarde, realisou-se a procissão de Nossa Senhora da Boa Morte, com a pompa e solennidade que revestem estes actos publicos da egreja. Após o percurso das ruas do costume, recolheram-se as imagens à Igreja da Barroquinha, havendo por esta occasião bençam do Santíssimo Sacramento. Hontem às 10 horas da manhã celebrou- se a missa festiva, com acompanhamento de cânticos e orchestra, pregando ao Evangelho o padre Luiz da França. À tarde houve bençam do Santíssimo”. (A TARDE, 16/8/1913, p.2).

Embora curtas, as referências nesse texto publicado na edição de 16 de agosto de 1913 são preciosas porque a maioria expressiva dos registros da igreja e da importante Irmandade do Senhor Bom Jesus Martírios que funcionou no espaço, hoje um centro cultural sob a gestão da Prefeitura Municipal de Salvador, desapareceu durante as fases de abandono do templo que inclui até um incêndio. O que se sabe sobre a Devoção da Boa Morte na Igreja da Barroquinha foi registrado em trabalhos de Pierre Verger, Odorico Tavares e João da Silva Campos. Este último concentrou-se em detalhar a festa em seu livro Procissões Tradicionais da Bahia onde aponta 1935 como o último ano da celebração em Salvador.

“Deixou-se de fazer a procissão de 1930 a 1934. Saiu no ano seguinte. Nem de longe assemelhou-se à dos tempos passados. Mínimo o cortejo, e modernizado. Mocinhas de véu. Criancinhas vestidas de anjo. Cadê os negros todos prosas, metidos no fraque e no croazê? Cadê os benditos? Cadê a multidão melanoderma, que se comprimia azougadamente em derredor do esquife? Desapareceu tudo. Tudo...”. (Procissões tradicionais da Bahia, João da Silva Campos, p.362).

O tom nostálgico adotado por Silva Campos é o de alguém que presenciou esta última realização da festa:

“Quando o cortejo se moveu, curto, mesquinho, sorumbático, despido da menor imponência, na tarde nevoenta, triste e fria, mal a meu grado senti-me acicateado pela lembrança das procissões que na meninice ali vira, e, tomado de funda melancolia, apressei-me em me afastar...Agora, mortos Bibiano Cupim e Aninha, baluartes da Devoção de Nossa Senhora da Boa Morte, da capela da Barroquinha, esta procissão está positivamente morta” (Procissões tradicionais da Bahia, João da Silva Campos, p.362).

As referências do texto são para Bibiano Cupim, um importante personagem nas articulações de manifestações negras e que esteve muito vinculado à Igreja da Barroquinha, mas de quem ainda se sabe pouco, e Maria Eugênia Anna dos Santos, a fundadora do Ilê Axé Opô Afonjá. Mãe Aninha e outras mulheres negras de prestígio, ligadas ao candomblé, assim como aconteceu com a Irmandade da Boa Morte de Cachoeira, estavam vinculadas a esse culto que é uma das invocações à Nossa Senhora dos católicos.

Autor do livro O Candomblé da Barroquinha-Processo de constituição do primeiro terreiro baiano de keto, o doutor em antropologia e professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Renato da Silveira traçou neste trabalho um panorama do complexo mundo de africanos, crioulos, mestiços escravizados e libertos na ocupação da Barroquinha. “Ali foi um ponto de efervescência da cultura afro-brasileira”, destaca Silveira.

No livro, Silveira mostra como as irmandades, instituições do poder português, hospedaram outras experiências culturais de base africana. De acordo com o antropólogo, organizações como a Ogboni e Geledé, além de cultos a divindades africanas e à ancestralidade, com outras interpretações sobre a morte, estavam inseridas no contexto da Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Martírios, que funcionava na Barroquinha desde 1764. Mas Silveira defende que, embora Pierre Verger tenha afirmado que na Barroquinha estava uma Irmandade da Boa Morte, tratava-se de uma devoção. “Isso porque a irmandade tinha uma estrutura legal mais complexa do ponto de vista civil e canônico. Tanto a de Salvador como a de Cachoeira estão em um status mais simples, informal e isso de certa forma servia também para driblar a fiscalização e controle do poder colonial”, explica o antropólogo.

A TARDE fez três importantes registros sobre a Festa da Boa Morte de Salvador, com detalhes pouco conhecidos
A TARDE fez três importantes registros sobre a Festa da Boa Morte de Salvador, com detalhes pouco conhecidos | Foto: Cedoc A TARDE

Imponência

A Festa da Boa Morte da Barroquinha parece realmente ter sido impressionante. Além das referências de Silva Campos, ao descrever a festa na edição de 15 de agosto de 1919, A TARDE lamenta a perda da opulência. O texto compara a Festa da Boa Morte e a de Nossa Senhora das Angústias celebrada no mesmo período no Mosteiro de São Bento, às celebrações para o Senhor do Bonfim e Sant´Ana, padroeira do Rio Vermelho.

“Vão-se as tradições. Hontem não houve sequer um simulacro das festas da cidade religiosa de N. Senhora das Angústias e da Boa Morte que tinham até 18 annos passados o mesmo esplendor das do Senhor do Bomfim e de Senhora Sant´Anna no Rio Vermelho. Ao entardecer desfilava a procissão da Barroquinha. Todas as ruas apinhadas de povo e as creoulas apresentavam-se no fausto das suas saias de seda em becca, exibhindo pannos preciosos da Costa, os braços circundados de ouro”. (A TARDE, 15/8/1919, p.2).

Com base nas afirmações de Silva Campos e dos três registros em A TARDE é possível apontar que a Festa da Boa Morte em Salvador ocorria no dia 14, com uma procissão à tarde, e uma missa no dia 15, quando acontece a Festa da Assunção ou de Nossa Senhora da Glória.

“Na egreja da Barroquinha, realisa-se hoje, a festa em louvor de Nossa Senhora da Boa Morte. À tarde haverá procissão”. (A TARDE, 14/8/1917, p3).

Também se encontra nessas referências o trajeto da procissão, que percorria as ruas próximas à Barroquinha e seguia por outras vias do centro da cidade. As integrantes da devoção carregavam o esquife de Nossa Senhora até as imediações da hoje Praça Castro Alves quando eram então substituídas pelos membros da Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Martírios. Outras irmandades negras também participavam e a procissão seguia fazendo a volta pelo São Raimundo, Rua Direita e Portão da Piedade. Ao descer a Ladeira de São Bento, a procissão da Boa Morte encontrava a de Nossa Senhora das Angústias e, na chegada à Barroquinha, as integrantes da devoção retomavam o esquife para entrar com ele na igreja como no início.

Segundo Silva Campos havia, depois da procissão, um banquete. A festa que se seguia, ao que parece, desagradava segmentos mais conservadores do catolicismo aos quais Silva Campos em muitos trechos da sua obra indica pertencer.

“Era então de ouvir-se, dentro da igreja, uma algazarra de mercado, entresachada de risotas, de palavreado e de gestos nada pios. No adro, vendedeiras mercadejavam doces e comidas. Malandros dedilhavam violões e cavaquinhos. Ouviam-se modinhas. Sambava-se e batucava-se. Ao som de berimbau, capoeiras ciscavam, dançava de velho, e davam aús e rasteiras. Lá em cima, no consistório, a assistência em volta da mesa ia-se renovando até tarde”. (Procissões Tradicionais da Bahia, João da Silva Campos, p.362).

A trajetória da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte em Cachoeira seguiu por outros caminhos e se mantém firme. Em Salvador, a devoção a Nossa Senhora da Boa Morte na Barroquinha foi extinta em 1935. Por isso os registros dessa manifestação em A TARDE podem contribuir para a reunião de mais informações desse rico contexto das heranças culturais negras da Bahia.

*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia

**A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período.

***Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE

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