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A Tarde Memória

Por Cleidiana Ramos*

ACERVO DA COLUNA
Publicado sábado, 30 de setembro de 2023 às 6:00 h | Autor:

A TARDE fez reportagens sobre instituições que combateram o racismo

Textos do jornal registraram momentos em que órgãos do Estado atuaram contra a discriminação racial

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O desembargador Lidivaldo Britto participou da última edição do projeto REC  A TARDE
O desembargador Lidivaldo Britto participou da última edição do projeto REC A TARDE -

Na edição de 4 de fevereiro de 1935 uma reportagem de A TARDE contou a história de Maria Ignacia Ribeiro dos Santos. Uma mulher negra, como o texto reitera, ela fez um protesto em frente a uma das sedes do Judiciário baiano. Mas não apenas isso. Ao alegar ter sido vítima de um golpe, Maria Ignacia revelou ser uma pessoa de prática religiosa afro-brasileira e considerou poder sensibilizar o juiz de órfãos João Mendes nesse sentido. Esse é um indício de que, mesmo em situações de perseguição, adeptos de religiões como o candomblé encontraram aliados em algumas instituições, inclusive as de Justiça.

“Agora que estou morrendo de fome com meus filhos venho procurar o juiz para fazer minha madrinha devolver o dinheiro e vou pedir uma casa do Estado para morar. Antes de me casar meu pae fez um trabalho para a "mãe dagua" que é minha madrinha do "côco” e ella mandou procurar o juiz que tem força dada por ella”. (A TARDE 4/2/1935, p.2).

O repórter chama o protesto de Maria Ignacia de comício, o que dá a dimensão de como ele foi potente. A imagem do protesto foi registrada no clichê que acompanha o texto. À reportagem, Maria Ignácia relatou que recebeu uma herança do pai e, depois, encontrou uma quantia na beira de uma estrada que reforçou suas economias. Esse valor, segundo a sua denúncia, foi tomado de empréstimo pela madrinha e o marido para investimento em um negócio de transporte de carga por meio da compra de um burro e de fumo.

“Comprou, fez o negocio, ganhou um dinheirão e não me pagou nada”. (A TARDE 4/2/1935, p.2).

O texto impressiona por dar os detalhes da história de Maria Ignácia, apontada como moradora da localidade denominada Alto do Abacaxi. Os nomes dos filhos também foram relacionados: Maria, Judith, Zelia Maria, Stellita Maria, Jandyra Maria e Antonio José. Talvez, ao se referir, a ter feito o “coco”, Maria Ignacia tenha indicado sua passagem por algum rito iniciático para Iemanjá ou Oxum, integrantes da complexa categoria mais genérica com o nome de Mãe D´água. Esta abrange as divindades de matriz africana, mas também as variações resultantes dos encontros culturais ocorridos no contexto brasileiro como as sereias, de origem europeia, e encantadas indígenas como a Iara.

É um dado importante a forma como se refere ao juiz João Mendes. Dá até para identificar uma certa ameaça no campo mágico. Ela adianta a sua disposição em tomar providências com os elementos que considera eficientes no campo da sua crença.

“Meu santo é quem vai pedir ao Juiz as casas do Estado para mim e "oro-bi-oro-bó'' se ele não der. Minha caderneta está aqui e depois que estiver nas casas faço um “"matú-mató d'agua doce" para minha madrinha”. (A TARDE 4/2/1935, p.2).

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Indício

Em 1935, o candomblé, a umbanda e outras religiões de matrizes africanas viviam como regra a condição de vítimas de perseguição inclusive do Estado por meio do seu braço policial. As invasões de terreiros eram constantes. Além disso, a prática religiosa ficou sob a tutela do Estado até 1976 por meio de órgãos como a Delegacia de Jogos e Costumes.

“O repórter, autor desse texto, foi muito feliz porque ele poderia ter reproduzido as informações técnicas do problema que ela estava vivenciando, mas ele inseriu ali algumas observações relacionadas à crença dela. Isso chama muito a atenção porque a história se passa em uma época em que havia repressão policial intensa aos terreiros de candomblé”, analisa o desembargador do Tribunal de Justiça da Bahia, Lidivaldo Britto. Autor do livro A proteção legal dos terreiros de candomblé: da repressão policial ao reconhecimento como patrimônio histórico-cultural, Lidivaldo Britto aponta que o II Congresso Afro-Brasileiro ainda não havia sido realizado. O encontro ocorrido em 1937 teve como resultado o protagonismo para lideranças das comunidades de terreiros. Maria Eugênia Anna dos Santos, conhecida como Mãe Aninha, fundadora e primeira ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá, Joãozinho da Goméia, dentre outros, estiveram em destaque nos temas debatidos. Na organização estava, além de Édison Carneiro, o babalaô Martiniano Eliseu do Bonfim. O congresso foi amplamente noticiado nos jornais de Salvador, inclusive A TARDE.

Outra ação importante apontada pelo desembargador é a política de alianças dos terreiros dando postos, como o do de ogã- o sacerdote que não entra em transe- para pessoas com influência nos diversos segmentos sociais de Salvador e a criação de instâncias, como o Conselho de Obás do Ilê Axé Opô Afonjá. “Essa distribuição não estava restrita apenas àqueles considerados intelectuais responsáveis por estudos na universidade, mas também pessoas que tinham proeminência junto às comunidades negras, como Miguel Santana”, diz Lidivaldo Britto.

Apoio

O desembargador também esteve nessa condição de aliado em momentos cruciais não apenas para as comunidades das religiões de matrizes africanas, mas também no combate ao racismo. Por nove anos, Lidivaldo Britto foi o titular da Promotoria de Combate ao Racismo, que assumiu também o enfrentamento à intolerância religiosa. Ainda no âmbito do Ministério Público, ele foi procurador-geral da instituição.

A atuação de Lidivaldo Britto como titular da promotoria especializada no combate ao racismo, fundada em 1997, de forma pioneira no Brasil, foi noticiada regularmente em A TARDE.

“Na realidade a polícia nem sempre dá a atenção devida aos crimes considerados por ela de menor importância, que costumam morrer logo após o registro de ocorrência”, assinala o promotor de justiça da Cidadania e de Combate ao Racismo, Lidivaldo Britto. Ele explica que a exemplo do que ocorre em relação a queixas de outros crimes, o inquérito de racismo deveria evoluir normalmente e, posteriormente, ser encaminhado a Central de Inquérito que, por sua vez, o remete à promotoria especializada para a denúncia. Embora careça de registros exatos sabe-se que na Bahia apenas um caso de racismo resultou em prisão, mesmo assim por somente oito dias”. (A TARDE, 15/8/1999, p.8).

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Uma das ações teve como foco a maior festa de Salvador: o Carnaval. A partir da denúncia de uma postulante a uma vaga em um bloco de trio, Lidivaldo Britto apresentou as evidências de discriminação racial no processo de compra de fantasias de entidades carnavalescas que utilizavam propagandas como “bloco de gente bonita”, dentre outras.

Na edição de 6 de março de 2001, A TARDE divulgou os resultados da atuação do então promotor.

“Nos dois últimos anos não registramos nenhum caso de discriminação racial durante o Carnaval”, assinalou satisfeito o promotor de Justiça da Cidadania, do Ministério Público, Lidivaldo Raimundo Brito. Para o promotor, o termo de compromisso, resultante do inquérito civil aberto para apurar o assunto em 1999, tem sido o principal responsável por terminar este tipo de comportamento. “Temos acesso a todos os blocos e podemos comprovar no ato da inscrição do associado se este problema está ocorrendo”, afirma ele. (6/3/2001, p.4).

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Outras vitórias foram contra a intolerância religiosa em uma ação que apurou ataques às religiões afro-brasileiras em programas que passavam ao meio-dia em emissoras de TV baianas. A atuação do Ministério Público causou controvérsia e intenso debate sobre os limites da liberdade de expressão com os programas retirados do ar. Outras ações nesse sentido conseguiram coibir as agressões das mais variadas formas, inclusive físicas, a membros das comunidades dos terreiros.

O orixá Xangô é o patrono da Justiça na tradição nagô
O orixá Xangô é o patrono da Justiça na tradição nagô | Foto: 14/09/1989 | Cedoc A TARDE

Agora no Tribunal de Justiça, o desembargador comemora conquistas na área de combate ao racismo. Por meio de um trabalho conjunto com a procuradora Márcia Virgens foi criada a Comissão de Direitos Humanos do TJ. Em uma das primeiras medidas ocorreu o aumento do percentual de cotas para negras e negros em concursos do judiciário. “O Conselho Nacional de Justiça estabeleceu 20%. O TJ-Bahia ampliou para 30% tendo se tornando o único no país com esse percentual”, acrescenta Lidivaldo Britto.

Com base no texto de A TARDE de 1935 é possível perceber que, mesmo em meio a um contexto adverso, os vários segmentos dos movimentos negros conseguiram encontrar caminhos para conquistar aliados. Isso porque na luta contra o racismo não há trégua, o que necessita de vigilância e articulação continuada.

*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia

*A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período.

Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE.

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