A TARDE registrou momentos da trajetória de Cleonice Alakija
Ela foi a terceira mulher negra a conseguir um diploma na Faculdade de Medicina da Bahia

Em 1931, Cleonice Assumpção Alakija se tornou a terceira mulher negra, na Bahia, a conseguir um diploma em medicina. Ela juntou-se a um seleto grupo até então formado apenas por Maria Odília Teixeira e Itala Silva de Oliveira. O protagonismo de Cleonice Alakija foi registrado em A TARDE em textos como o publicado na edição de 13 de outubro de 1931:
“A doutora Cleonice de Assumpção Alakija é médica. Conhece bem todas as tramas e todos os escarninhos do arcabouço vivo dos animaes que pensam. E, no entanto, não é, nem geratriz de fatores fataes. Atravessou a soalheira ingrata do curso médico, ao ritmo embalador de sua tenacidade e duas tendências evidentes, para deslumbrante e complexa arte de Trousseau”. ( A TARDE, 13/10/1931, p.2).
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Dados da biografia da médica foram abordados no artigo Cleonice Assumpção Alakija – A trajetória de uma das primeiras médicas negras de Salvador (1910-2000) do historiador, mestre e doutorando em História, Sivaldo Reis. O artigo resultou de um desdobramento da pesquisa para a sua dissertação intitulada Como negro que sou: a trajetória e militância de um africano na Bahia, Maxwell Assumpção (1871-1933), defendida em 2020 sob a orientação da professora Wlamyra Albuquerque.
Maxwell Assumpção era o pai de Cleonice Alakija. Em 2021, Sivaldo Reis publicou o livro intitulado Maxwell Assumpção Alakija- A trajetória e militância de um africano na Bahia (1871-1933). Natural de Lagos, Nigéria, Maxwell Assumpção graduou-se pela Faculdade Livre de Direito da Bahia e construiu uma rede de relações, inclusive na imprensa. Casou-se com a parteira Ignez Selene Assumpção e teve três filhos: Delhi Maxwell Assumpção (1908-1949); Cleonice Assumpção Alakija (1910-2000) e George Alakija (1921-2005).
Todos os filhos de Maxwell Alakija conseguiram diplomas de ensino superior: Delhi era engenheiro agrônomo e Cleonice e George se tornaram médicos. A família Alakija restabeleceu, em suas atividades, os laços entre a Bahia e a Nigéria e está vinculada ao movimento dos agudás. O termo é utilizado para um grupo de africanos que manteve relações culturais e comerciais especialmente com a Bahia em um trânsito constante via o trânsito pelo Atlântico.
Laços
Esse movimento de retorno aos territórios da África foi iniciado a partir dos desdobramentos da Revolta dos Malês, ocorrida em 1835 e que teve como uma das consequências a perseguição a africanos, inclusive os libertos, que estavam à frente dos principais serviços na capital baiana. A volta passou, em um primeiro momento, a ser uma estratégia de sobrevivência. De acordo com Sivaldo Reis, a família Alakija é a de característica agudá que mais conseguiu produzir memórias sobre os seus descendentes.
“Ao longo de sua trajetória em Salvador, Maxwell conseguiu construir uma ampla rede de sociabilidade com pessoas de diferentes classes sociais; militares, engenheiros, advogados, jornalistas, professores, mas também mascates, estivadores e lavradores fizeram parte do seu diversificado círculo social. Essa capacidade de se relacionar com pessoas de diferentes classes sociais foi apenas uma de suas características pessoais, outro detalhe importante de sua trajetória na cidade foi a iniciativa em demonstrar publicamente sua origem africana”. (Maxwell Assumpção Alakija- A trajetória e militância de um africano na Bahia- 1871-1933, Sivaldo Reis, pp. 22-23).
Impressiona, portanto, o entendimento de Maxwell de dar à sua filha, a mesma oportunidade de ingressar no ensino superior ofertada aos seus irmãos. Ignez Selene Assumpção, a mãe de Cleonice foi parteira, uma habilidade com formação técnica, o que demonstra o entendimento da família sobre novos caminhos a partir da educação formal.
Inserção social
Outros registros de A TARDE mostram uma interação constante de Cleonice nos movimentos da Faculdade de Medicina, integrando comissões. Na edição de 9 de junho de 1931 tem um registro da sua participação na comissão de formatura. O nome de Cleonice também está registrado no quadro de dirigentes da Sociedade Beneficente Acadêmica em texto da edição de 1º de agosto de 1931. Essas informações dão uma medida da rede de relações que ela conseguiu manter. Além disso, impressiona a idade que tinha quando ingressou na Faculdade de Medicina: 16 anos. Após formada ela continuou a manter uma trajetória surpreendente.
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“É muito interessante como ela construiu a sua carreira. Após a formatura em 1931, Cleonice passou a lecionar na Faculdade de Medicina outra coisa que era rara de acontecer para uma mulher e especialmente uma mulher negra. Além disso, ela manteve seu consultório na Rua Chile”, aponta Sivaldo Reis.

As conquistas de Cleonice Alakija impressionam porque no período em que ela estava em formação e depois concluindo o curso, as batalhas pela emancipação das mulheres ainda buscavam conquistas mais concretas. O movimento feminista, por exemplo, tinha uma pauta centrada no voto. A educação básica não era de fácil acesso. E, para uma mulher negra, tudo era ainda mais difícil, afinal, mesmo sendo a maioria da população de Salvador, esse segmento liderava os índices de analfabetismo.
De acordo com Sivaldo Reis, a rede de proteção familiar, liderada por seu pai, Maxwell, foi fundamental para estas conquistas de Cleonice Alakija.
“O pai dela, George Maxwell, foi um dos primeiros negros com ingresso na Faculdade de Direito da Bahia. Passou a lecionar inglês, francês e latim em Salvador. Além disso, ele acessou uma rede de jornalistas, inclusive os de A TARDE. Na década de 1920, ele chegou a oferecer um banquete para jornalistas. É interessante como Cleonice aparece nessa rede do jornal A TARDE, por exemplo”, diz Sivaldo Reis.
Na avaliação do historiador essa consolidação das redes estabelecidas por Maxwell Alakija foram fundamentais para dar a Cleonice o suporte em um contexto que apresentava muitos obstáculos para uma mulher negra. Era uma sociedade fortemente patriarcal em que a capacidade intelectual das mulheres era constantemente contestada. Longo no início do texto de saudação à formatura de Cleonice, por exemplo, há uma crítica a esse tipo de afirmação. Em seguida as virtudes da homenageada são enumeradas.
“Eis médica. Na otorrinolaringologia se solida e culta. O segredo das sinusites tem para tua ciência o prestígio infantil de um brinquedo. Com a luz de tua lâmpada frontal levas a cura e o bem estr. Que mais queres? Tens um magnífico lugar na ribalta”. (A TARDE 13/10/1931, capa).
O texto não está assinado, mas Sivaldo Reis não descarta que o autor pode ter sido o pai de Cleonice. Era comum a publicação de textos comemorativos às formaturas com elogios aos formandos. Neste caso, havia realmente muito a comemorar.
Cleonice Alakija morreu em 2000 aos 90 anos. Manteve a sua carreira no campo da otorrinolaringologia inclusive integrando as sociedades médicas da área. Sivaldo Reis, na pesquisa para obtenção do seu título de doutor, ocupa-se agora da biografia de George Alakija, o irmão da médica, com ampliação para mais registros da trajetória da família Alakija. Essa investigação é importante para compreender, de forma mais ampla, os desafios e conquistas de africanos e seus descendentes no enfrentamento das barreiras impostas pela tragédia da escravidão. A reconstrução de pontes, inclusive para preservar as redes de memórias familiares, tem muito a ensinar sobre antídotos contra um dos mais terríveis resquícios coloniais que é o racismo.
*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia
*A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período.
Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE.
Para saber mais:
Cleonice Assumpção Alakija: a trajetória de uma das primeiras médicas negras de Salvador (1910-2000)- Sivaldo Reis- Revista Ágora, v.32, n.1, 2021. Disponível na Internet.
Maxwell Assumpção Alakija- A trajetória e militância de um africano na Bahia – 1871-1933 (Sivaldo Reis, Belo Horizonte, Caravana, 2021)
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