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Articulação deu à Constituição da Bahia conquistas à população negra

Na legislação baiana, direitos para os afrodescendentes estão organizados em seção específica

Publicado sábado, 17 de setembro de 2022 às 05:00 h | Autor: Cleidiana Ramos*
Sodré foi o interlocutor entre os segmentos
Sodré foi o interlocutor entre os segmentos -

Após 21 anos de ditadura militar foi necessária uma nova Constituição para o Brasil de forma a garantir direitos e evitar, como possível, a vigência de uma estrutura de estado violenta contra o povo brasileiro. A Constituição Federal de 1988 é considerada, mesmo com algumas críticas, a mais avançada que se conseguiu fazer no país, inclusive reconhecendo a necessidade de combater o racismo. Na constituição brasileira foram estabelecidos diversos direitos para a população negra, mas de uma forma difusa e distribuídos por seções diferentes. Já a Constituição da Bahia, promulgada em 5 de outubro de 1989 foi mais além, com a seção denominada “Do Negro”. A cerimônia de promulgação da constituição baiana ocorreu em 5 de outubro de 1989, um ano após a solenidade de oficialização da federal.   

"Diferente dos procedimentos passados — porque entendemos que a Constituição não deva ser, como, de resto, qualquer lei, um pacto das oligarquias ou o conluio entre as classes dominantes —, buscamos fazer a nova Constituição de baixo para cima, com a participação efetiva dos diversos segmentos da sociedade civil. Foi assim que o presidente da Assembleia Legislativa Constituinte, deputado Coriolano Sales, resumiu ontem, em seu discurso no final da solenidade de promulgação da nova Constituição do estado, a diferença marcante entre aquela Carta e as constituições que a antecederam”. (A TARDE, 6/10/1989, p.10). 

Um ano antes, os movimentos negros, que não podiam se manifestar de forma direta sobre a questão racial durante a ditadura militar, fizeram uma extensa campanha denunciando o quanto de esvaziada das ações concretas teve a abolição da escravidão. “A campanha se chamava 100 anos Sem Abolição e reuniu vários dos grupos de luta, como o Movimento Negro Unificado (MNU)”, conta Samuel Vida, ogã de Xangô do Terreiro do Cobre, professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e coordenador do Programa Direitos e Relações Raciais, que funciona na universidade.

Doutorando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), Samuel Vida está pesquisando os avanços da constituição baiana quando comparada a outras legislações a partir do protagonismo da sociedade civil negra organizada em diversos movimentos. “É o que pode ser conceituado como constitucionalismo negro, ou seja, uma série de mobilizações de pessoas negras para ser reconhecidas como cidadãs do estado e mobilizadas nos mais variados grupos que nem sempre são caracterizados como movimentos de mobilização política, mas o são. Estão nesses grupos os blocos afro, os terreiros de candomblé, dentre outros.  Esses movimentos atuam há 250 anos nessas articulações mais nítidas”, aponta Samuel Vida. 

Uma das mais conhecidas mobilizações apontadas por Samuel Vida nessa luta para estabelecer cidadania a quem esteve refém da violência brutal que foi o sistema escravocrata é a Revolta de Búzios. Também conhecido como Conjuração Baiana ou Revolta dos Alfaiates, o levante ocorrido em Salvador a partir de 12 de agosto de 1798 não apenas propôs a República Bahiense inspirada nos ideais de fraternidade, igualdade e liberdade, como, diferentemente da Inconfidência Mineira, tinha na pauta a abolição. 

Foi também de uma revolta negra, que resultou na Independência do Haiti, ocorrida a partir de 1791 e consolidada em 1804, a herança da primeira constituição no mundo em que se reconheceu a cidadania de pessoas negras. “A Constituição do Haiti estabeleceu a abolição, a cidadania negra, inclusive para estrangeiros que pisassem em seu território. A primeira constituição dos EUA não fez isso”, diz Vida. 

Parâmetros

As lições históricas e políticas estavam à disposição para a articulação dos movimentos negros brasileiros. A Assembleia Nacional Constituinte teve em sua composição Benedita da Silva, Carlos Alberto Oliveira dos Santos, conhecido como Caó, Edmilson Valentim e Paulo Paim. Esses parlamentares atuaram como ouvintes das demandas dos movimentos. 

Os resultados são conquistas inéditas para a população em uma constituição brasileira de uma forma contundente, como o combate às desigualdades sociais, a toda forma de discriminação e preconceito, liberdade religiosa e uma questão que, na análise de Samuel Vida, foi bastante ousada: a combinação do racismo ao terrorismo como motivo para o repúdio nas relações internacionais.

A TARDE registrou detalhes da sessão para promulgação da Constituição da Bahia
A TARDE registrou detalhes da sessão para promulgação da Constituição da Bahia |  Foto: Cedoc A TARDE
 

“Estava em pauta toda a discussão sobre o apertheid e Desmond Tutu esteve visitando o Brasil. Isso demonstra a força das articulações e atenção que estava sendo dada àquele momento de uma nova Constituição pelos movimentos negros”, completa Samuel Vida. 

A Constituição Federal de 1988 também assegurou a liberdade de culto, sem ressalvas como atenção aos bons costumes e moral, o que estava na de 1946 e, que, de certa forma, continuava vinculada aos atos discriminatórios em relação às religiões afro-brasileiras com mecanismos como a Delegacia de Jogos e Costumes da Bahia, que tinha o papel de fiscalizar, ou seja, controlar de alguma forma o candomblé, por exemplo. Outras conquistas foram inseridas no campo da Educação, do Trabalho, com a proibição de discriminação, mas há uma questão crucial: estas pautas estão presentes na Constituição, mas de forma difusa. “Para a Constituinte da Bahia a articulação veio de uma forma que permitiu a combinação dos direitos com uma abordagem mais nítida”, analisa Samuel Vida. 

Alianças

Na Constituição Baiana, a partir do artigo 286 até o 290 foram assegurados direitos em campos como combate ao racismo, educação e posse da terra. Em seguida vem uma seção dedicada aos povos indígenas. O primeiro artigo estabelece uma punição severa para os crimes de racismo. 

“Art. 286. A sociedade baiana é cultural e historicamente marcada pela presença da comunidade afro-brasileira, constituindo a prática do racismo crime inafiançável e imprescritível, sujeito a pena de reclusão, nos termos da Constituição Federal”. (Constituição do Estado da Bahia- Edição Comemorativa de 30 anos, p.115). 

Há ainda uma antecipação em relação ao que se tornaria uma das principais bandeiras dos movimentos negros brasileiros a partir dos anos 2000: as ações afirmativas conhecidas principalmente pela reserva de cotas nas universidades brasileiras. A constituição baiana em seu artigo 289 reservou cotas para negros na publicidade estadual a partir da existência de duas vagas nas seleções. “Essa foi uma proposta do deputado Alcindo Anunciação, que não estava próximo a este movimento de articulação das organizações negras, mas que naquele momento teve a percepção de mapear aquelas movimentações”, analisa Samuel Vida. 

A chapa organizada por segmentos do movimento negro para as assembleias constituintes federal e baiana foi a formada, respectivamente, pela doutora em sociologia Luiza Bairros (1953-2016) e pelo técnico em administração e servidor da Petrobras, Luiz Alberto. “Como os dois não foram eleitos, uma articulação que teve Jaime Sodré como protagonista trouxe o então deputado Emiliano José para esse papel de proponente das nossas demandas”, diz Samuel Vida. 

O jornalista e ex-deputado Emiliano José destaca alguns dos lances dessa batalha, mas principalmente o vigor e a disposição incansável de Jaime Sodré, sobretudo em relação aos interesses das comunidades de terreiros de candomblé.  Um dos grandes intelectuais da Bahia e xicarangoma do Terreiro Tanuri Junsara, Sodré morreu em 2020. Doutor em Educação, ele era professor do Instituto Federal da Bahia (IFBA), da Universidade do Estado da Bahia (Uneb),  designer, compositor e autor de livros como A influência da religião afro brasileira na obra escultórica do Mestre Didi,  Da Diabolização a Divinização- A criação do senso comum, Ebomi Cidália, a enciclopédia do candomblé, dentre outros. Foi também articulista de A TARDE.  

“Especialmente na parte religiosa, a ajuda, orientação e formulação vinham de Jaime Sodré. Era dele a assessoria e a interlocução com os movimentos negros. Um dos momentos mais emocionantes dessa época foi uma reunião com a presença de várias religiosas e religiosos de candomblé. E, no geral, foi uma articulação fantástica de uma participação comovente. Cerca de 80 pessoas estavam ali atuando na assessoria dia e noite e sem receber um centavo”, diz Emiliano José. 

Uma extensa articulação política foi o que possibilitou tantas conquistas, mas que ainda estão longe de se tornar mais constantes, como a regularização fundiária dos terreiros de candomblé e dos quilombos. “Há um déficit do Estado baiano em fazer cumprir o que está assegurado na sua lei máxima para as populações negras e indígenas. Isso quando se estabeleceu que muitas daquelas conquistas precisavam estar em prática no período de um ano”. 

Destacar essas características da Constituição da Bahia, como tem demonstrado a pesquisa de Samuel Vida, talvez, seja uma inspiração para retomar a disposição e entendimento de quanto a construção dessa legislação foi especial. Isso ficou registrado na reportagem de A TARDE sobre a sua promulgação a partir do discurso do então presidente da Assembleia Constituinte, Coriolano Sales: 

“No pronunciamento que fez, sem usar a tribuna, o presidente da Constituinte ressaltou que, pela vez na história política da Bahia, realizou-se um processo aberto, franco e democrático na elaboração da Lei Maior do Estado”.  (A TARDE, 6/10/1989, p.10). 

Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em Antropologia

*A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período. 

Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE

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