Artigo de historiador analisa contexto de epidemias
Ricardo dos Santos Batista é doutor em história e pós-doutorando na Casa de Oswaldo Cruz/FioCruz-RJ
Em 1919 uma epidemia de varíola assustou Salvador. Ela se seguiu ao drama da gripe espanhola em um contexto que lembra agora o surto da varíola dos macacos após a pandemia de coronavírus. As duas doenças são diferentes, mas o medo causado por elas é bem semelhante. Em artigo o historiador Ricardo dos Santos Batista, doutor em história pela Ufba e pós-doutorando na Casa de Oswaldo Cruz/FioCruz-RJ, analisa a epidemia de varíola em 1919 na capital baiana. Os desdobramentos desse caso em Salvador é o tema dessa semana do projeto multimídia A TARDE Memória, que tem conteúdos em canais do Grupo A TARDE como A TARDE FM (às sextas-feiras), no Portal A TARDE e no Jornal A TARDE (aos´sábados). A TARDE Memória tem conteúdo baseado no material que forma o acervo do Cedoc A TARDE.
A Era das Epidemias?: a varíola de 1919 e a varíola dos macacos de 2022
Ricardo dos Santos Batista
Desde
pelo menos meados do século XIX, até meados do século XX, uma série de
epidemias assolaram a Bahia. O cólera, a febre amarela e a varíola são algumas
que tiveram destaque. A varíola despontou epidemicamente, por exemplo, em
1897-1898 e em 1909, com alto índice de mortalidade. Sua emergência, no segundo
semestre de 1919, ocorreu imediatamente após a pandemia de “gripe espanhola” (influenza),
de 1918, que matou milhões de pessoas em todo o mundo.
Naquele
momento, vivíamos um modelo liberal no Brasil, no qual cabia ao Estado intervir
apenas em casos de calamidade pública. Isso contribuiu para que os poucos
hospitais existentes na cidade de Salvador, como o Hospital Militar e o
Hospital da Santa Casa de Misericórdia não comportassem o número de enfermos
que os procuravam. A responsabilização do Estado pela construção de
instituições públicas de saúde só começou a partir de 1920, com uma legislação
federal que respeitava as prerrogativas do federalismo, implantado com a
Constituição de 1891.
Provavelmente,
a epidemia de varíola de 1919 começou com o retorno de alguns militares que
atuavam na região de Barreiras, no mês de junho, e apresentaram sintomas
compatíveis com a enfermidade. Segundo os professores Christiane Souza e
Gilberto Hochman, no mês seguinte ela atingiu bairros como Brotas e Pilar. Em
agosto, começou a se alastrar pela cidade e infectou os moradores dos distritos centrais – Paço, Taboão,
Santo Antônio, Santana e Sé –, alcançando, posteriormente, o subúrbio de
Salvador.
Um dos
motivos que contribuíram para que a varíola se espalhasse foram as condições de
vida das pessoas. Os bairros operários estavam situados na Cidade Baixa. As
condições de trabalho, de alimentação e de moradia eram precárias, incluindo um
contato íntimo entre pessoas que moravam em pequenas casas, que compartilhavam
roupas, objetos íntimos e se expunham a gotículas de saliva.
Assim
como a gripe “espanhola”, a varíola infectou pessoas de diferentes classes
sociais, como noticiado em edições do jornal A Tarde de 1919. A segunda
década do século XX, e as epidemias que nela grassaram, foram importantes para
a construção de uma “consciência sanitária” entre as elites. Percebeu-se que as
chamadas “doenças que pegam” não atingiam apenas a população pobre que vivia em
condições precárias no pós-abolição. Se não fossem construídas estruturas
sanitárias, todos continuariam a se contaminar, mesmo que as elites econômicas
tivessem maiores condições de manter acompanhamento médico.
A varíola
foi avassaladora para os baianos! Em Salvador, pessoas doentes perambulavam pelas
praças e, em determinado momento, não havia meios de transportar os cadáveres
até os cemitérios. Houve dias em que foram enterrados mais de 68 corpos no
cemitério da Quinta dos Lázaros.
Embora
já se utilizasse um tipo de vacina para a varíola desde pelo menos o início do
século XIX, ela estava em falta na Bahia no pico da epidemia de 1919. A vacina
já havia sido alvo de controvérsias em alguns lugares do país, como a revolta de
1904, no Rio de Janeiro. Mas é preciso compreender, como demonstra o
historiador Sidney Chalhoub, que a enfermidade se relacionava à crença da
população afro-brasileira no ancestral africano Xapanã (também conhecido como
Sapona), senhor das doenças contagiosas, que simbolizava a própria doença e, ao
mesmo tempo, a sua cura. Acreditava-se que intervir na enfermidade, com a
utilização da vacina, poderia causar a ira do seu ancestral e levar o paciente
à morte. Xapanã remete, na tradição afro-brasileira, aos Orixás Obaluaê e Omolu.
Durante
a epidemia de 1919, os ritos religiosos eram frequentes, o que incluía recorrer
a babalorixás e a ialorixás para pedir intercessão para a cura da varíola. Em
alguns casos, os representantes da medicina oficial, que ainda se encontrava em
construção, tentaram perseguir os praticantes do candomblé, reivindicando um
conhecimento científico sobre a enfermidade. Mas a crença da população
afro-brasileira naqueles a quem sempre recorriam para solucionar problemas
espirituais e físicos era mais forte.
Procissões
percorriam a cidade pedindo aos santos católicos São Roque, São Lázaro e São
Francisco Xavier que intercedessem frente àquela catástrofe sanitária. No mês
de novembro de 1919, a antiga imagem de São Roque desceu do seu altar na Igreja
do Bonfim e São Lázaro saiu da sua igreja, no bairro de São Lázaro, para ser
exposta à adoração dos fiéis na Igreja de Nossa Senhora da Barroquinha.
Vivemos
na eminência de uma epidemia, talvez uma nova pandemia: a de “varíola dos
macacos”, que se diferencia da varíola erradicada no mundo em finais da década
de 1970, com a cooperação entre diferentes países. A varíola dos macacos é uma
zoonose viral transmitida pelo vírus monkeypox e tem sintomas muito
parecidos com os da varíola. Recebeu esse nome pela sua descoberta em macacos, em
1958, em um laboratório dinamarquês.
A recorrente emergência de epidemias está relacionada a um momento de grande ação depredatória do homem em relação à natureza. Os altos índices de desmatamento contribuem para que micro-organismos inofensivos a outros animais, que viviam isolados de nós, se tornem verdadeiras ameaças à nossas vidas, nos impondo uma série de restrições. Se não houver uma reflexão e novas ações para estabelecer um (re)equilíbrio do nosso ecossistema, poderemos viver permanentemente reféns de vírus e bactérias que se tornarão epidêmicos e pandêmicos. Parafraseando o historiador Eric Hobsbawn, poderemos viver uma “Era das epidemias”, e não fazemos a mínima ideia de quando e se ela acabará. Atotô Ajuberô!
Ricardo dos Santos Batista é doutor em história pela Universidade Federal da Bahia (Ufba) e pós-doutorando na Casa de Oswaldo Cruz- FioCruz- RJ